domingo, 24 de agosto de 2014

A realidade pré-fabricada de Horário Eleitoral


Que experiência gratificante é viajar por Horário Eleitoral! Um pedacinho do paraíso, quase uma ilha, perdida em meio a realidade desbotada e nada pomposa de Mundo Real. Todos os candidatos a medalhas e troféus adoravam a seu povo. Nisso sempre concordavam Situação e Oposição. Preocupavam-se com o futuro de seu povo. Sofriam pelos males do povo. Comoviam-se com a história do povo. Lutavam com unhas, garras e golpes baixos, para serem sustentados nos próximos anos por esse povo. Apenas uma pequena coisa desagradava a esses abnegados candidatos em Horário Eleitoral: o povo! O povo real, de carne e osso, não fazia boa figura nesse mundo colorido e perfumado. O povo de verdade, não é capaz de arar a terra, sob o sol escaldante, mantendo um sorriso satisfeito nos lábios e sem derramar uma gota de suor. Os operários do mundo real, não chegam ao final de um árduo dia de trabalho e sorriem satisfeitos por estarem contribuindo para o crescimento do país. As mães da vida real são completamente incapazes de manter sua prole de cinco filhos, todos limpinhos e comportados, como em comercial de margarina. Ao povo, de Mundo Real, faltavam dentes. Faltava estudo. Faltava o discurso arrumadinho e semanticamente perfeito. Faltava comprometimento social. Faltava paciência. Faltava saúde. Enfim, faltava classe e boa forma a esse povo, que não era digno de Horário Eleitoral ou de seus candidatos.
Não é fácil amar um povo longe das câmeras, do circo, e do photoshop. Por isso, era preciso criar um novo povo. Um povo, que até o povo real goste de ver na televisão. Um povo sofrido, de um sofrimento comovente, quase poético. Um povo miserável de uma miséria romântica. Um povo analfabeto, daquele analfabetismo catártico dos intelectualóides freirianos. Um povo que, mesmo dormindo nas ruas, tenha engajamento social e esperança no futuro. Um povo, que castigado pela seca, cavoque a terra árida com a confiança que só esse povo pré-fabricado é capaz de ter. Um povo que, doente e desassistido, esbanje sorrisos e otimismo. Um povo de sorrisos onde não faltem dentes. Um povo que trabalhe, não para seu sustento, mas para construir o futuro de uma Nação. Um povo de casa sempre limpinha, crianças arrumadinhas e fogão reluzente. Um povo de todas as cores e etnias, como rege a lei dos politicamente corretos. Um povo repleto de esperanças e onde não falte futuro. Um povo cheio de futuro, mesmo onde não há esperança. Um povo que sempre sorria, mesmo quando deveria chorar. Um povo que agradeça o que não recebeu. Que valorize quem não tem valor. Que comemore, como dádivas, todas as parcas migalhas recebidas e que sempre lhe foram de direito. Um povo digno de seus representantes em Horário Eleitoral.
Para um povo assim, tão perfeito, é preciso candidatos a altura. E, em Horário Eleitoral, eles existem. Perfeitos como outdoors de creme dental. Sempre tão sorridentes, em meio ao povo. Tão afeitos aos beijos e abraços. Como são afetivos nossos candidatos! Beijam mães, filhos, cachorros e até postes. Abraçam velhos, mendigos, maltrapilhos e corruptos! Corruptos abraçam-se sempre, mas a cada quatro anos é conveniente abraçar ao povo que os sustenta também. É o que ditam as regras dessa maratona quadrienal. E como são domésticos e caseiros esses candidatos. Todos sabem cozinhar um filezinho, churrasco ou um bacalhau de domingo. Cozinham, é bem verdade, com menos desenvoltura do que vendem ilusões, distribuem propinas ou emendas parlamentares. Mas a prática transforma amadores em profissionais e embusteiros em representantes eleitos pelo povo. Essa é a lógica e o objetivo de Horário Eleitoral.
É uma lástima que esse povo, e esses candidatos, só existam em Horário Eleitoral. Que sorte seria se, em Mundo Real, houvesse um povo minimante crítico ou conhecedor de seus diretos. Um povo que não aceitasse como benção, ou graça, o respeito a sua dignidade e seus direitos constitucionais. Um povo capaz de valorizar o caráter, a decência e a ética, como deveriam valorizar todos, principalmente seus candidatos. E candidatos que fossem capazes de respeitar a seu povo, como esse se apresenta. Sem cultura, dentes ou ideologias. Mas, nosso povo, não é capaz de fazer bonito em Horário Eleitoral, mas é gratamente capaz de digitar parcos números em uma urna eletrônica. Um povo desassistido de saúde, educação e segurança pública, e que assiste todo dia ao fantasioso mundo de Horário Eleitoral, onde até mesmo o povo e a realidade são uma grande obra de ficção. E na ficção, até a desgraça, o desrespeito e desfaçatez são coloridos e têm agradável trilha sonora.

Um comentário:

  1. Oi Katia

    Brilhante.
    Continue assim.
    Será que vai mudar?

    Um abraço
    Um abraço

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