sábado, 23 de fevereiro de 2013

Poliana, a rainha de torcida


Tudo voltara a normalidade no antigo castelo real. Os mesmos bobos da corte, os mesmos pajens e, enfim, a mesma rainha. A resplandecente Poliana trouxera seu brilho de volta ao reino. O período de pasmaceira e monotonia chegara ao fim. A jovem e destemida rainha, revigorada pelos dias de afastamento forçado, voltara com ainda mais ânimo e ímpeto do que antes, obrigando sua vasta corte a arregaçar as mangas e colocar mãos a obra. No amplo salão real o seleto grupo de aduladores de sua majestade já demonstrava sinais de estafa.
- Credo quanta tralheira. Eu não pensei que tivéssemos que carregar tantas coisas nessa mudança da Poliana da torre de volta ao castelo. – reclama um companheiro
- Nem me fale. Eu fiz três viagens só trazendo as necessaires dela. Onde será que ela enfia tanto creme e perfume? – se pergunta um dos bobos, acalorado.
- E os bombons de amarula, então?! Lotaram a minha Kombi todinha! – informa impressionado um líder do SindiPelego.
- O pior foi preparar a redoma da rainha do jeitinho que ela aprecia. Vocês sabem como sua alteza é temperamental e sujeita a fricotes. Nós passamos o final de semana todo deixando tudo como ela gosta. Cor de rosa e perfumado. O vidro fume bem nebuloso, com a melhor e mais distorcida visão do reino possível. Assim ela não precisa ser incomodada com o que ocorre lá fora, em Mundo Real. Deu um trabalhão danado. – queixa-se um dos pajens.
- Que trabalheira infernal. Tudo por causa daquela miserável da Justiça. Se ela não tivesse se metido onde não devia, nada disso teria sido necessário. Poliana nunca teria deixado o castelo e nós não perderíamos tanto tempo. E dinheiro. – reclama outro bobo.
- Também pudera. O que se podia esperar daquela velha cega, surda, muda e além de tudo esclerosada! Não sabe nem mais o que diz a coitada. Já é mais do que hora de alguém aposentar Justiça. O nosso mundo seria muito melhor sem ela. – afirma outro indignado companheiro.
- É a pura verdade. Que falta faz um paredão por aqui! Com Justiça e Imprensa Livre perfiladas dava para fazer uma faxina. Aí sim, esse reino ia pra frente. – concorda o outro sonhador.
- Justiça é uma mentecapta, isso sim. Louca e histérica. – exalta-se outro.
- Como vocês ousam dizer um absurdo desses, seus ignorantes! – grita Poliana adentrando no recinto. – Eu nunca mais quero ouvir nenhum de você dirigindo qualquer palavra desrespeitosa para Justiça, ouviram bem!? – ordena com seu conhecido timbre esganiçado pelo destempero. – Onde já se viu tamanho absurdo. Falar dessa forma de uma senhora tão distinta e coerente!
- Você está brincando, né Poliana? – questiona um dos pajens um tanto assombrado.
- Eu estou falando seriíssimo. Eu sou uma monarca aclamada pelo povo e não vou permitir que ninguém em meu reino ouse difamar Justiça.
- Mas Poliana, nós fizemos passeata, carreata e bandeiraço contra Justiça. Você proferiu dezenas de discursos reclamando da bruaca! Você endoidou de vez?
- Eu fiz? – pergunta Poliana com ar pensativo – Pois não me lembro mais. Tudo que fiz, fiz movida pela paixão. Coisa de momento. Vocês sabem como sou emotiva. – esclarece.
- Você não pode ter esquecido toda a humilhação que Justiça lhe fez passar rainha. Toda a perseguição desmedida. Não só contra você, mas esse complô dela contra os membros mais sérios e notórios de nosso clã. – indigna-se uma velha estrela.
- Foi só um pequeno lapso de Justiça. Coisas de velha caduca. Mas ela já se redimiu. Isso não vai se repetir. Justiça está do nosso lado agora. – garante Poliana
- Será? – duvida um dos presentes
- Claro que sim. Nossos articuladores na sede do poder central já garantiram. Justiça joga no nosso time. – afirma sua majestade muito segura de si.
- Não sei não alteza. Vai que ela muda de ideia novamente.
- Não vai mudar. O jogo agora é nosso. Oposição que fique emburrada assistindo nosso time jogar. Pra ela que gosta tanto de ataque vai se surpreender com nossa retranca. – gargalha Poliana.
- Nós não vamos ganhar no tapetão?
- Não. Na enrolação. Basta um bom zagueiro que segure firme a bola para arrastar o jogo e levar a galera à exaustão. Se precisar nós temos tarimba e manha de argentino. Caímos no campo, simulamos falta, imploramos impedimento. Nesse jogo com Justiça vale tudo.
- Vale até dedo no olho? – pergunta um companheiro, malandro.
- Isso não adianta nada, queridinho. A Justiça já é cega.
- Mas será que ela é burra? – pergunta outro ainda preocupado.
- Isso nós estamos pagando pra ver. E veremos. Avante torcedores! Vamos logo seus molóides. Vistam essas camisas de nossa torcida organizada e vamos vencer esse joguinho. – ordena a imperatriz Poliana, vestindo seu novíssimo traje de animadora de torcida. Na camiseta baby look , um enorme coração vermelho salpicado de estrelas e a frase “Eu amo Justiça!”

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013

Triunvirato de Circunstâncias


Os três homens que agora descansavam no largo da praça, sob a sombra das árvores e observando o tremular da grande bandeira, ainda chamavam a tenção dos transeuntes que passavam no largo nesse final de tarde. Três conhecidas personalidades da política local. Três imponentes figuras que ainda mobilizavam os ânimos e o cenário político nesse pequeno e pitoresco reino. Décadas de história foram escritas por essas mãos. Muitas páginas, vários rascunhos e inúmeros equívocos foram construídos enquanto eles haviam sido soberanos desse império. Cada qual deixara sua marca. Mas nenhuma marca poderia causar mais assombro ou desconforto do que ver esses três homens hoje juntos. Juntos, mas até quando?
- Que festança eles fizeram, hein? Parecia que a luta tinha se encerrado de vez. Eu confesso que me deu um frio no estômago quando ouvi todos aqueles foguetes e fogos. Achei que Justiça tinha sido definitiva. – relata Chucrute com a voz um tanto mais arrastada que o habitual.
- Quanto foguete! Que dinheirão jogado fora. Literalmente queimado. Não entendo como as pessoas desperdiçam dinheiro com essas bobagens. – lamenta Zangão, abanando a cabeça, inconformado.
- A luz luxuriante dos fogos e o ruído fragoroso dos foguetes não ocultarão por demasiado tempo o fato de que Justiça ainda não se posicionou em definitivo. – exclama, eloquente, o Alquimista, enquanto os outros dois o olhavam como que hipnotizados.
- O que importa agora é que a campanha está, pelo menos temporariamente, suspensa. Nós não podemos mais continuar nossa caminhada ou Justiça se voltará contra nós. – informa Zangão, o sisudo, abrindo um jornal e iniciando sua leitura.
- É uma pena. Eu estava gostando tanto da companhia dos amigos. – lamenta Chucrute, passando os braços sobre os ombros dos outros dois sentados ao seu lado - Cada passo dessa caminhada foi um aprendizado para mim. Lembro-me até hoje de quando você, Alquimista, me iniciou nesse rumo da política. Lembro-me como se hoje fosse e ao me lembrar turvam-me os olhos de lágrimas. – continua comovido, provocando um rosnado de desagrado em Zangão.
- Eu também me recordo bem. – rememora o Alquimista com o olhar no horizonte e a voz firme e cadenciada que lhe caracterizava - Você era, Chucrute, ainda inexperiente. Carregava consigo a impetuosidade da juventude e a ânsia insaciável e pueril de aprender. Estava sempre me questionando, curioso. Por isso eu lhe mandava para os recôncavos mais distantes do reino, assim eu gozava de um pouco de sossego e podia governar em paz.
- Você criou o monstro, Alquimista! – debocha Zangão, com um meio sorriso, sem tirar os olhos do jornal. – De um moleque perguntador, virou um beijoqueiro chorão. Que bela fórmula.
- Não seja implicante, Zangão. No fundo, no fundo, você até que gosta de mim. – retruca o alemão, rindo e apertando mais o braço em torno do sisudo.
- Estou me acostumando com você. – responde o outro, arrumando os óculos no nariz. – É como esses óculos. Um dia tive de me acostumar com eles. Sofri um pouco no inicio, mas afinal me rendi. E torço para que eles funcionem bem, como torço por você.
- Um curto e objetivo resumo dos fatos! – comenta o Alquimista – Bem a sua cara, Zangão. – completa e ergue-se do banco - Mas, não sem pesar, preciso me despedir dos amigos. Com esses novos ventos que Justiça soprou por aqui, preciso trilhar meu destino.
- Tudo bem, amigo. Já sabe que caminho seguir? – pergunta o ariano.
- Sigo, como sempre segui, o caminho claro e iluminado de minha consciência e minhas convicções. – responde o outro com firmeza, apertando a mão de Zangão. – Até breve!
- Até. Se você tiver alguma dificuldade para dormir, por causa da consciência, eu tenho uns remédios aqui. Também preciso tomar, de vez em quando. – oferece Zangão.
- Não vai ser necessário, Zangão. Obrigado pelo oferecimento. Mas como Alquimista, eu tenho lá minhas poções.
- Me dá cá um abraço, Alquimista. – ergue a voz o alemão, apertando o homem com força e tacando-lhe um beijo na careca - Terei de me conter para não chorar ou o sisudo aí vai ter um ataque cardíaco. – continua, com os olhos marejados – E na idade dele não podemos arriscar, não é?
- Lá vem você de novo com essas piadinhas sem graça. – resmunga Zangão para Chucrute e antes de voltar ao seu jornal, acrescenta para o Alquimista: - Dê lembranças a Poliana.
- Eu darei. Até mais meus amigos! Espero que nos encontremos novamente nessa, ou em outra prodigiosa jornada. – despede-se, cruzando com o olhar altivo e passos decididos, a praça.
- Será que ele volta? – pergunta Chucrute
- Depende do vento. – responde Zangão, seco - Eu também tenho de ir. Nós nos veremos, com quase certeza. Você não vai me deixar em paz tão cedo, pelo que já aprendi.
- Claro que não vou. – gargalha o outro - Eu sei ser insistente. Acompanho você até seu carro.
- Eu não vim de carro. Vim a pé. Você já viu o preço do combustível?! Mais dinheiro para ser queimado, literalmente. – queixa-se o Zangão.
- Eu me diverti muito esses dias com sua sovinice. – zomba o Chucrute.
- Espero que tenha aprendido com ela. Para o caso de você virar rei. – aconselha o outro com ares de professor.
Enquanto Zangão e Chucrute se despediam, o Alquimista se aproxima retornando ao grupo.
- O que foi amigo? Esqueceu alguma coisa? – questiona o alemão.
- Fiquei sem transporte.
- O carro enguiçou? – pergunta Zangão – Tomara que não seja nada sério. O valor que estão cobrando nas oficinas hoje em dia são de arrepiar os poucos cabelos que me restam.
- Não é o carro. É a montaria. – responde Alquimista. – Não quer voltar de onde veio.
- Você veio a cavalo?! – surpreende-se Zangão
- Explica bem isso. Começa do inicio Alquimista. Que história é essa de montaria? – indaga Chucrute, questionador como sempre.
- É uma história longa, mas vou resumir pois a noite já está a espreita e eu tenho de retornar. Há décadas eu montei um potro selvagem. Um alazão estradeiro, viril e indomável. Juntos trilhamos os mais áridos caminhos. Vencemos as mais árduas batalhas. Com o tempo o animal foi perdendo o viço, o vigor e, entre tropicões e desvios, esqueceu o rumo de sua morada. O potro selvagem de minha mocidade, fogoso e destemido, corajoso e audaz, transformara-se com o passar dos anos em um capão submisso. Sem cerne e sem serventia. Com o peito sufocado, mas minha consciência tranquila, tomei a mais dolorosa escolha de toda minha humilde existência.
- Matou o pobre animal, foi? – pergunta Chucrute, que a essas alturas soluçava copiosamente no ombro de Zangão.
- Não. Troquei por uma mula. E aí esta a raiz do meu problema. O diabo da mula empacou e não quer sair do lugar. Será que vocês tem alguma ideia de como se desempaca uma mula? – pergunta Alquimista com pressa.
- Já tentou as taquaras? – pergunta Zangão
- Taquaras?
- É. Aqueles taquarões da Poliana e do Golesmina. Você pode montar no bicho e segurar uma taquara na frente dela, com as folhas a mostra. Assim ela vai tentar alcançar os brotos e caminhar. Ela vai seguir o rumo que você quiser. Como se faz com o povo em época de eleição. - sugere Zangão ao Alquimista, enquanto Chucrute assoava o nariz e secava as lágrimas.
- Boa ideia. Não sei como não pensei nisso antes. Vou fazer isso. Adeus novamente. – despede-se Alquimista apressando o passo.
- Eu sempre me emociono quando ouço ele falar. – diz Chucrute – Ele é melhor que você nos discursos.
- É. E você é bem melhor que nós dois nos beijos. – afirma Zangão.
- Um elogio! Vindo de você, sempre tão econômico! – alegra-se Chucrute
- E eu já venci vocês dois. Você, venci mais de uma vez, se não me falha a memória.
- Eu sabia! Não podia ser um simples elogio. Você não dá ponto sem nó, né sua raposa velha?! – gargalha Chucrute acompanhando o outro na caminhada.
- Dar ponto sem nó é um desperdício de tempo e trabalho. E você sabe quanto custa um rolo de linha?! – continua o sisudo provocando outro acesso de riso no ariano.
Enquanto os dois homens se afastavam da praça uma forte rajada de vento varre o local, levando consigo as bandeiras vermelhas e os restos da festa que há poucas horas movimentara o largo. No outro extremo da rua, o Alquimista seguia seu caminho. Ereto em sua nova montaria, empunhando firmemente sua taquara, cantarolava com voz de barítono e um rasgo de nostalgia, uma melodia que embalara muitas de suas cavalgadas de outrora: “Vento negro, campo afora, vai correr! Quem vai embora tem que saber.... é viração!”

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

Por decisão de Justiça foi prorrogado o carnaval no reino


Neste reino tão pitoresco as coisas pareciam, aos olhos menos míopes ou cegos por interesses, cada vez mais fora de foco. E de forma. Nada andava nos eixos nos últimos tempos. Até o carnaval chegara atrasado este ano. Pelo menos era o que entenderam os baratinados súditos da magnífica e recomposta rainha: Poliana!
Em frente ao palácio real o desfile era completo, com abre-alas, mestre-salas e dezenas de porta-bandeiras. Uma multidão festiva cercava Poliana. Até os antigos bobos e pajens reais, que nos últimos dias tentavam desgrudar suas figuras da então deposta monarca, saltitavam e sambavam como se o futuro de seus carguinhos dependesse disso. O povo que passava nas ruas olhava sem entender como é que um desfile carnavalesco podia estar ocorrendo no meio da tarde de uma sexta feira. Justo neste reino onde as festividades carnavalescas nunca foram lá muito tradicionais. Tradicionais estavam se tornando, isso sim, as orgias com dinheiro público. Mas não parecia ser este o caso. Não dessa vez, ao menos.
- Enfim vencemos Justiça! Colocamos a recalcada reacionária de joelhos, beijando os pés de sua alteza. – gritavam os companheiros agitando suas bandeiras.
- Viva Poliana! Bem vinda ao trono, magnífica rainha! – gritavam em uníssono.
Uma lacrimejante Poliana acenava para os súditos. Menos súditos e mais militantes, que abandonaram a suada campanha a sucessão e correram para bajular a nova antiga rainha que agora reassumia seu lugar no trono. Até Golesminha cercava sua majestade com sua eterna postura servil. Parecia até aliviado. Adular Poliana era infinitamente mais fácil que ter que suar a camisa e mostrar a que veio, isso Golesminha aprendera nesse curto período. Tomara que Justiça não mude novamente de ideia, pensa o companheiro, ainda em estado de choque. Se eu tiver que dar mais uma entrevista ao vivo na TV, largo essa vida de vez e vou procurar um emprego de verdade - reflete Golesminha, traumatizado com sua recente experiência televisiva.
Mas nem tudo era festa entre o grupo de companheiros. Embaixo de tanto confete e serpentina havia muitos conflitos de interesses. Poliana e Golesminha eram de facções rivais dentro do grande clã. Vários seguidores de Golesminha ambicionavam derrubar o grupo de Poliana e assumir a chefia da quadrilha. Com essa nova intromissão de Justiça seus planos ficavam, pelo menos temporariamente, suspensos.
Se até entre companheiros, bobos da corte e militantes do clã as coisas estavam confusas, na ala especial de Oposição o negócio desembestou de vez. A correria era infernal. Era um tal de guarda bandeira, pega outra bandeira. Tira camisa, veste a velha camisa. Esquece esse discurso e volta ao discurso anterior. Tinha crente rogando aos céus que alguém iluminasse suas escolhas ou acabaria queimando na fogueira das vaidades eternamente. Quem nunca aposentou a coerência, não tinha com que se preocupar, mas quem alugara apoio em troca de poder e carguinhos, temia acabar de mãos abanando. Mas não era tarde para correr, vestir velhas mas coloridas fantasias, e pular saltitantes no colo da poderosa Poliana. Afinal, é carnaval. E nesse exótico reino o carnaval prometia durar meses. Ou anos!

De frente com Golesminha


- Por toda a propina que nos sustenta! Pelas centenas de carguinhos que nos mantém! Por todos os rolos e enrolos com Justiça que ainda conseguimos acobertar! – grita Poliana com o rosto ruborizado e esganiçando o tom de voz - Nunca mais deixem o Golesminha dar entrevista ao vivo na televisão! – berra ainda mais transloucada, nos seus conhecidos ataques de destempero.
- Relaxa Poliana. Você anda muito estressadinha ultimamente. Toma aqui uma caixa de bombons de amarula. – oferece um membro do MSTT (Movimento Só Tramóia e Trago), sem dar nenhuma importância a TPM da antiga monarca. – Eu particularmente prefiro minha caipira. – acrescenta, sorvendo um longo gole da sua bebida.
- Caipira! Caipira parecia o Golesminha na TV! O que foi aquilo afinal? Vocês se venderam para Oposição?
- Eu achei que ele foi bem. – retruca o outro, sempre fiel a cartilha de seu clã.
- Claro que achou. A entrevista foi depois do almoço. Você já devia ter tomado cinco taças de vinho a essas alturas! O homem foi uma desgraça! Como foi que vocês transportaram ele até o estúdio? Dentro duma britadeira? – pergunta Poliana.
- Claro que não, né Poliana. De carro. Em comitiva, cercado de militantes e bandeiras, como manda a tradição.
- Então devem ter andado por todo o centro do reino. Trepidando em todas aquelas ruas esburacadas. Só pode ter sido isso! O homem não parava de se chacoalhar na frente da câmera! Parecia aquelas birutas de posto de gasolina. – relata Poliana, imitando os movimentos desordenados de seu companheiro Golesminha.
- Credo Poliana. Nem foi assim. – defende um dos amigos tentando segurar o riso.  – Mas pensando nisso, nós podíamos mandar fazer umas birutas com a forma do Golesminha. Ia ficar engraçadinho na campanha.
- Não tem graça nenhuma! Nós temos de encagaçar Oposição, não matá-la de rir! – irrita-se ainda mais a monarca deposta – E o que vocês passaram na boca dele?
- Nada, ora bolas. O pessoal da maquiagem usou brilho labial e um pouco de pó, eu acho, misturado com óleo de peroba, é claro. A maquiagem básica, a mesma que nosso adversário também usou.
- Mas devem ter feito alguma coisa com a língua do homem. Ele ficava se lambendo todo, que nem um boi Zebu. Aquela língua pra cima e pra baixo. Um horror!
- Tava mais pra lagartixa. Uma lagartixa branca. – acrescenta outro militante, tirando sarro.
- E vocês embriagaram o coitado?! Ele já não diz coisa com coisa sóbrio, que dirá bêbado. Vocês deram cachaça pra ele antes da entrevista, seus inúteis incompetentes! - acusa Poliana.
- Claro que não! Você acha que nós somos burros?! Com toda essa Balada Segura pelo reino, ele era o único não tinha tomado nada no almoço, então foi dirigindo.
- Alguma coisa vocês devem ter dado pra ele tomar. O homem tava enrolando a língua no fim da entrevista. Parecia um pau d’agua como vocês do MSTT!
- Ah! Deve ter sido o tiner. – lembra-se um companheiro, despreocupado.
- Tiner! Vocês deram tiner para ele cheirar! – grita Poliana e se atira desesperada no divã – Chaparam o plasta do Golesminha! Justo quando ele ia aparecer num programa de grande audiência da TV. Ao vivo para todo o reino. Onde é que vocês estão com a cabeça, seus estúpidos!
- Nada disso, Poliana. Nós usamos tiner na boca dele. Era preciso para ele conseguir falar, lembra?
- Como? – questiona Poliana, devorando nervosamente seus adorados bombons de amarula.
- Nós tínhamos colado a boca do companheiro Golesminha com Super Bonder para ele parar de pregar a palavra de Marx e não espantar os eleitores. Ele só ficava andando nas ruas com roupa de padre e ao lado dele um carro de som enorme com a sua voz Poliana. Está lembrada agora?
- Claro que sim. Vocês estão tentando fazer com que o Golesminha pareça um clone meu. Como se fosse possível um absurdo desses! Eu tão arrumadinha e altiva e ele todo desarranjado. Uma infâmia, isso sim. – desdenha Poliana – Pegaram tudo que era meu e estão colando no Golesminha. Copiaram todas as minhas propostas! Todos os meus discursos! Os mesmos jargões! As mesmíssimas frases feitas e slogans. Até os escorregões nos erres são idênticos!
- Claro Poliana. O que você esperava? Se colou uma vez, pode ser que cole de novo! E depois, ia ser difícil inventar tanta lorota nova em tão pouco tempo.
- Mas vocês estão usando até as minhas fotos! Isso é um ultraje a minha imagem de monarca perseguida pela desumana e intransigente Justiça.
- É essa a ideia Poliana. Como o Golesminha é um mosca-morta que ninguém conhece e quem conhece quer manter distância, nós usamos a sua carismática e popular figura de rainha para enrolar o povão. Como a maioria do povo nem está sabendo direito o que está acontecendo no reino, vão pensar que tem que votar novamente em Poliana. Dessa vez para Garota Verão. Pura estratégia de marketing. 
- Eu sempre quis ser Garota Verão. – acrescenta Poliana sonhadora, mas retornando ao foco da discussão com rapidez. – Chega de conversa fiada. Vocês ainda não esclareceram o negócio do tiner e da chapação do Golesma!
- Antes da entrevista tivemos de descolar a boca dele. E a tal da super cola não sai sem muito tiner. Por isso que ele estava com a língua meio pastosa. Acho que exageramos na dose.
- Vamos ter de repensar essa estratégia. Não podemos correr o risco de outro fiasco desses ao vivo. – reflete Poliana.
- Vamos parar de colar a boca dele e correr o risco de espantar nossa chance de retomar o trono?!
- Claro que não. Não vamos mais deixar ele dar entrevistas, é lógico. Nada mais de TV para o Golesminha em Mundo Real. Onde já se viu esse negócio de entrevista ao vivo, sem edição, montagem ou photoshop. Quem foi o idiota que inventou essa baboseira de confronto de ideias, opiniões e debates? Coisa de gente reacionária e desocupada. Só pode ter sido invenção de Oposição. – afirma Poliana entediada.
- Coisa de Imprensa Livre, é claro! Deve estar armando alguma arapuca, a arruaceira.
- Com certeza algum golpe midiático. Mas não podemos nos deixar arrastar para o temerário e perigoso campo das ideias. Precisamos nos manter no campo das ilusões de ética. Esse é o nosso campinho. Nele somos imbatíveis. – declara a antiga monarca erguendo-se e parando em frente ao espelho da sala - Então está decidido. Nada mais de entrevistas. Muito menos debates. Ainda mais mediados por essa Imprensa Livre golpista. Entrevista só em canal fechado que o povão não assiste mesmo, e se for na hora da novela. Ou para veículos democráticos e descomprometidos, como a Carta Capital.
- Então está resolvido. – concordam todos, voltando para suas caipirinhas
Enquanto isso, Poliana demorava-se em frente ao grande espelho. Mirava-se de todos os ângulos possíveis fazendo caras e bocas. Decorridos vários minutos vira-se decida para o seleto grupo no recinto e pergunta com um sorrisinho coquete.
- Será que essa decisão arbitrária de Justiça de me manter oito anos em isolamento, sem disputar o trono ou ganhar um carguinho público, também me impede de disputar o Garota Verão?
- Ah, não! – suspiram seus companheiros
- Ela exagerou de novo nos bombons de amarula! Alguém aí, faz um café bem forte, antes que ela nos faça pagar outro mico.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

O reino sob a doutrina do clã


- Nossa, nunca pensei que eu fosse sentir tantas saudades de Horário Eleitoral. Aquilo sim era lugar bom de se viver! - queixa-se um dos militantes do clã desabando em uma poltrona.
- Nem me fale companheiro. Lá não fazia calor, nem tinha esse sol escaldante. Tudo era tão colorido e fresquinho em Horário Eleitoral! Aqui em Mundo Real a gente tem que suar a camisa de verdade, companheirada.
- É, não tinha asa também. - acrescenta Poliana adentrando ao recinto com o nariz franzido de descontentamento.
- Eu já estou com os braços dormentes de tanto abanar bandeirinhas, e ainda estamos longe da reta final. Se continuarmos nesse ritmo, vou ter que me encostar. – reclama um honorário representante do SindiPelego.
- Se encostar em quem? – pergunta Poliana, sarcástica - Vocês já nasceram encostados. Nos últimos anos andaram todos encostados em mim e em meu reinado de oportunidades. Se não fosse pelo meu regionalíssimo PAC (Programa de Acomodação da Companheirada) não sei o que seria de vocês.
- Nós nos acomodaríamos em outros lugares, pode ter certeza. O PAC vigora em todo território nacional. – afirma indolente um dos membros da FarsaSindical.
- Eu confesso que estou até achando divertido ver vocês tendo de trabalhar só para variar um pouco. Andando de casa em casa. Subindo e descendo morro. Arrebanhando o povo. Tudo isso sem ajuda do mágico photoshop! – exulta Poliana.
- Nem me fale Poliana! Que falta o photoshop faz! Com ele uma dúzia virava centenas. Agora estamos trocando seis por meia dúzia. Uma calamidade. Verdadeira conspiração matemática! – reclama um representante dos movimentos sociais.
- Mas ainda estamos usando nossa antiga tática da multiplicação de bandeirinhas. Cada um de nós carrega cinco bandeiras, assim nós sempre parecemos mais numerosos e nossas caminhadas mais robustas e impressionantes.
- É, mas eu sinto falta da estrela e da cor vermelha nas bandeiras. Fico um pouco constrangida com essas bandeiras com tanto azul e branco. Às vezes tenho até a impressão de ver um tucano voando junto com a gente. Pelas barbas de Fidel! – ultraja-se uma velha matriarca do clã abanando-se com as saias.
- Pobrezinho do companheiro Golesminha! Chega a estar com a testa reluzente com esse solão na moleira todo dia. – tripudia a maquiavélica Poliana – E o Chucrute então? Já deve estar um Chester de rosado. Os dois vão terminar essa maratona com as panturrilhas durinhas de tanto subir ladeira. – delicia-se a antiga e popular monarca.
- E com as mãos calejadas de tanto aperto e saudação. – acrescenta outro companheiro.
- O Chucrute vai fazer é calo nos beiços de beijar velhinha, isso sim. – continua Poliana irreverente. – Mas não importa o que eles façam, nem quantos quilômetros andem. Nenhum dos dois jamais terá minha classe na hora de segurar criança mijada. Minha desenvoltura ao desfilar e lançar beijos aos súditos. Minha postura decidida e carismática ao caminhar entre o povão. Minha categoria ao degustar pão com linguiça e salada de repolho, sem jamais torcer o nariz ou eliminar os gases. Ninguém nesse reino irá superar a magnífica e eterna rainha das multidões: Poliana!
- Você fazia isso com o bom e velho photoshop, né Poliana! Com edição, montagem, colagem e muita, mas muita maquiagem! Quero ver você lá, no meio do povão, com o desodorante vencido, isso sim! Logo você, cheia de fricotes. – retruca um dos militantes mais antigos e impertinentes.
- Já chega desse assunto. Vamos mudar o tema! - ordena Poliana, como sempre pouco aberta a críticas ou contestações - Como estão as pregações de nossa nova obra de ficção: o pastor Golesminha paz e amor?
- Ele parece estar pregando bem a palavra divina. Só não sei se o povão entende bem o significado da palavra, mas ele repete centenas de vezes, como um mantra.
- É verdade Poliana. – confirma outro companheiro – O Golesminha está se esforçando como pregador. Ele repete mesmo a palavra divina. Assim como mandam as escrituras. Aliás ele não fala outra coisa, chega a ficar monótono. É sempre a mesma ladainha.
- Nós até ficamos pensando Poliana, se não seria bom nós termos alguns projetos de governo. Algumas promessas fajutas, sabe como é? Dessas só pra enrolar os otários. É que ficar só na palavra, não sei não... Quem sou eu para questionar as escrituras de nosso clã, mas sei lá. É uma palavra meio complexa para nosso povo tão ignorante.
- Pera aí! – empertiga-se Poliana na cadeira – De que raios de palavra divina vocês estão falando? A ideia era fazer o xiitão do Golesminha parecer um tranquilo, e digno de confiança, servo de Deus. Não era para ele ler a Bíblia para o povo, até por que ele nem deve ter capacidade para isso. O que vocês andam aprontando seus molóides ?!
- Não é nada disso Poliana! É claro que ninguém está lendo a Bíblia pro povo. Nós não somos estúpidos. E é contra a doutrina de nosso clã ler qualquer coisa que não seja editado ou recomendado por nossos sensores, você sabe disso. Dizem que há trechos muito reacionários nessa tal Bíblia e claros indícios de perseguição a nossa ideologia libertadora. – informa um dos companheiros, ofendido com a falsa acusação.
- O Golesminha está pregando o que diz nas escrituras de nosso clã, Poliana. – esclarece outro – A palavra, só isso.
- Mas que diabos de palavra!? – exalta-se Poliana, já começando a demonstrar sinais de destempero.
- Alinhamento!
- Ah, bom. Mas nós estamos usando essa palavra há tanto tempo que chega a estar gasta. Mas é um excelente mote! Eu mesmo deitei, rolei e me esbaldei nesse tal alinhamento e deu certo. O povo caiu como patinho. Nisso o Golesminha está coberto de razão. Vamos dizer que nosso alinhamento com a rainha mãe, a Escolhida, é fundamental para que o reino continue a existir. Aliás, vamos continuar insistindo que o reino não existia antes de nós chegarmos ao trono. Uma mentira dita muitas vezes acaba virando verdade, esse fato nós mesmos já comprovamos.
- Então, está bem. Vamos seguir pregando o alinhamento e evocando o nome e a doutrina dos apóstolos.
- Nada de apóstolos! Não quero saber de nenhum de vocês falando em Mateus, João ou Pedro. Eu já disse para vocês não entrarem no terreno sério dos evangelhos. Vocês são tão bitolados que são capazes de transformar a Via Crucis na Intentona Comunista. – exalta-se Poliana já prevendo um desastre.
- Mas Poliana, nossos apóstolos são outros. São os apóstolos do alinhamento. Os sacerdotes do fisiologismo. Doutrinários da corrupção. Gente como a gente! Fieis discípulos dos mensaleiros. Genoíno, Calheiros, Sarney, Fernandinho...
- Deus todo poderoso! – alarma-se Poliana caindo de joelhos e unindo as mãos em louvor – São Inácio, nos dê apoio. Santa Dilma, nos dê recursos. São Barbosa, nos dê sossego. - clama a fervorosa rainha deposta – E qualquer outro Santo, me dê paciência para aturar essa cambada de estúpidos que me cercam. Eu juro, por toda a propina que me é sagrada: eu nunca mais coloco minha foto em nada. Que Justiça me perdoe e afaste de mim esse cale-se! – implora a pecadora e cada a vez mais desesperada, Poliana.