domingo, 25 de agosto de 2013

O cultivo de feridas do democrático clã da rainha

Reunidos em assembléia, o seleto grupo do clã de Poliana, debatia assuntos de relevância para o reino e o futuro de Gigante Adormecido. Em prol de um debate qualificado e desvinculado de preconceitos ou visões estereotipadas, o democrático e coeso séquito, reuniu somente membros umbilicalmente unidos a velha e estrelada doutrina do grande clã. Com platéia assim tão adestrada, era impossível não se chegar ao consenso. E um consenso barulhento e revoltado, era sempre mais coerente e justo que o silêncio daqueles que não foram convidados a se manifestar. Assim se faz democracia no reino de Poliana e de seus aliados. Quem discordar tem pleno direito de se calar.
- Precisamos nos unir, companheirada, para acabar de vez com a oligarquia asquerosa dos curandeiros em Gigante Adormecido! Essa gente maquiavélica que por séculos tem enriquecido à custa das moléstias de nosso povo! Como se políticos fossem, os infames! Filhinhos de papai, que se aproveitam da miséria e da falta de saneamento básico de nossa população para ascender socialmente! – bradava empolgado um membro do Movimento Só Tramóia e Trago (MSTT).
- Apoiado, companheiro! Uma gentinha mercenária que se recusa a trabalhar onde ninguém, nem mesmo nós, ousamos nos afundar, merece todo nosso desprezo, de defensores do povo oprimido por políticas públicas demagógicas. – concorda um representante dos movimentos sociais.
- Eu, como curandeiro vinculado ao grande clã, tenho que concordar. Saúde pública se faz só com boa vontade e um aparelho de pressão. Recursos, remédios e tecnologias são para nossos pares, não para nosso povo. Quem quiser qualidade e resolutividade, que tenha dinheiro para pagar. Como nós! – afirma o coerente e centrado doutor.
- Muito bem companheirada! Temos de acabar de vez com essa categoria nefasta para a sociedade e para nosso socialismo desbotado e mal cheiroso. Precisamos mostrar ao povo que se a saúde agoniza, há anos, é por culpa exclusiva dos curandeiros desumanos, mercenários e corporativistas. A falta de hospitais, leitos, exames e remédios, é unicamente conseqüência de uma conspiração ardilosa dessa classe odiosa e maquiavélica que se uniu para deteriorar e difamar todo o investimento que nós, políticos, não fizemos em prol dos doentes. – defende, com a eloqüência dos palanques, o deputado Torresminho.
- Esperar o que dessa elite classista?! São pessoas endinheiradas, que tropeçaram em uma vaguinha na faculdade como quem pisa em merda de cachorro! Muito diferente de nossa classe política, que tem que suar a camisa e se embuchar de pão com lingüiça e repolho para se eleger, a cada quatro anos. Isso sim é desempenho e mérito! Os malditos curandeiros ganharam sempre tudo de mãos beijadas. Não conhecem o trabalho árduo e o sofrimento. Não sabem o que é sujar as mãos em propinas. No máximo sujam as mãos de sangue. E sangue, qualquer água oxigenada barata tira. Propina mancha pra vida toda. – conclui rubro da mais pura indignação, um dos companheiros da câmara de vendilhões.
- E para acabar com essa corja corporativista local, companheiros, temos de defender a importação de curandeiros de Cuba! A ilha da fantasia produz e exporta curandeiros como charutos! Embalados, aos milhares, em caixas! E são muito mais palatáveis e maleáveis que os nacionais. E não precisaremos nos preocupar com taxa de importação e aquelas balelas de leis trabalhistas! – defende o eterno defensor dos proletários explorados e líder do SindiPelego.
- É a pura verdade! Como são humanistas e desprovidos de interesses capitalistas, esses abnegados curandeiros cubanos! Aceitam deixar aquele maravilhoso paraíso socialista, para vir trabalhar nos confins do mundo, sem qualquer estrutura, e por pouco mais de um salário mínimo. São o sonho de consumo de qualquer governo ineficiente e desprovido de escrúpulos. – concorda, emocionado, um militante.
- Graças a Che e a revolução, podermos contar, nesse mundo moderno e capitalista, de gente tão socialista e caridosa. Os curandeiros daqui só querem saber de qualidade de vida, de condições de trabalho e remuneração justa. Os tais cubanos, como não conhecem nada disso, aceitam o que vier. E pedem benção a Fidel! – emociona-se uma matriarca do clã.
- São realmente generosos os cubanos. Largar aquele paraíso socialista, onde ganhavam uma cesta básica e quase quarenta dólares por mês, sem contar o rum e os charutos, para virem se enterrar nesse capitalismo selvagem e cruel, ganhando dez vezes mais e sem direito a cigarros, a exames, macas ou leitos! É um tapa na cara dos mercenários doutores locais. Essa asquerosa elite golpista! – brada outro companheiro.
- A corja de curandeiros locais já esta tremendo nas bases, apavorada com a concorrência caribenha. Não querem perder suas benesses elitistas.  Chega a ser patético vê-los esperneando em agonia. Temem perder as regalias de solicitar e não dispor. De indicar, sem conseguir. De precisar e ter de esperar por meses. De perder e lastimar. Essas criaturas cruéis receiam deixar seus postos de algozes para os cubanos, muito mais preparados que eles a sofrer sem se queixar e a ver um paciente morrer pela desestrutura estatal, sem ousar questionar. – acrescenta outro vendilhão.
- E mais importante de tudo, companheirada, precisamos atender a demanda de centenas de companheiros nossos que foram treinados em curandeirismo na ilha. Não podemos deixar nossa gente na mão! – lembra outro militante das causas sociais.
- Muito bem, turma. Como coordenador e promotor desse produtivo debate, tenho de resumir nossas democráticas e imparciais constatações para serem divulgadas na mídia. Depois de longa e participativa discussão, me parece consensual e inquestionável, que o povo todo clama pelos curandeiros cubanos!
-Apoiado! – gritam todos em euforia.
-E que declaramos guerra aos odiosos e peçonhentos curandeiros nacionais.
- Muito bem! – delira a cativa platéia.
- E eu, como membro do parlamento e influente junto ao poder central, vou sugerir a Rainha Mãe, um programa de exportação forçada de nossos curandeiros para Cuba. Tenho certeza que uma temporada na democracia de lá, vai fazer com que voltem muito mais adestrados, cabresteados e aptos a aceitar, sem reclamar, todas as mazelas sociais e o descaso pela saúde em nosso país. É de profissionais assim que nosso país precisa. – anuncia um dos políticos.
- É isso aí! – bradam todos os presentes, aplaudindo fervorosamente a ideia. – Mais curandeiros! Menos cérebros questionadores! Abaixo a resistência burguesa!

E assim termina mais um participativo debate do clã de Poliana, onde a unanimidade sempre impera e o rancor e o ranço são a o alicerce e a tônica para todas as convicções e certezas. 

domingo, 18 de agosto de 2013

O controle de Justiça no tráfego de bobos da rainha

Comodamente sentada em seu trono, com sua fiel comitiva de vassalos a lhe cercar, Poliana tricoteava sua manta em mais uma fria tarde de inverno. Não era tarefa fácil, essa, para sua alteza, pouco acostumada a dar ponto sem nó. Já tivera de refazer o trabalho dezenas de vezes. Quase tantas vezes quanto tivera de afastar algum de seus adoráveis bobos e mascotes por imposição de Justiça. Justiça! Que criaturinha mais detestável e irritante. Sempre a perseguir Poliana e sua adorável e inocente corte. Poliana ainda não entendia como, com toda aquela venda nos olhos, a mentecapta ainda conseguia enxergar as sutis artimanhas da rainha. Talvez fosse pelo olfato, pensa a perspicaz Poliana. Numa coisa, ao menos, tinha que concordar com Justiça. Seus bobos eram mestres em  chafurdar nos próprios dejetos. O cheiro nauseante, não percebido por quem o exala, talvez fosse inoportuno para outros.  Precisaria investir mais recursos públicos em perfumes para sua turma, conclui a sempre prática monarca. Quem sabe assim, conseguisse despistar Justiça de uma vez por todas.
- A tática era perfeita! Não sei como foi falhar. – lamenta um dos bobos, pesaroso com o recidivante afastamento de seu companheiro de time. – Ele saía pela porta da frente, com o cativante discurso de manter o bom nome do reinado de Poliana, de não embolar o meio de campo e não obstruir Justiça. Depois voltava pela porta dos fundos e Justiça nem ia se dar conta. Era tão simples!
- É. Bem mais simples que direcionar licitação. – comenta Poliana, um tanto ácida.
- De novo não, rainha! Você não vai nos perdoar nunca por isso? Não foi culpa nossa, foi coisa de Imprensa Livre. Ela que melou nosso negocinho!
- Negocinho, não. Negocião! Não tem um dia da minha vida que eu não vá lamentar todo dinheiro público que deixei de embolsar naquela nossa jogada estratégica e lucrativa do controle de tráfego.
- Nós também não. – entristece-se um companheiro, nostálgico. - Fiquei tão traumatizado com aquele negócio naufragado, que me emociono cada vez que passo por um pardal ou lombada eletrônica. E não assisto mais TV nas noites de domingo! É minha forma de protestar contra a Imprensa Livre golpista que acabou com nosso sonho capitalizado de consumo.
- Imprensa Livre teve sua participação decisiva ao trazer a tona o nosso rolo antes que nós tivéssemos tempo de pôr em prática todo esquema. Na verdade, ela nos salvou isso sim! Já pensaram se tudo tivesse vindo a público depois de toda negociata de multas e pardais já estivesse armada e funcionando? Seria uma catástrofe ainda maior do que o fiasco que fizemos em rede nacional e horário nobre.
- Isso é verdade, sábia rainha! Uma intenção de crime é bem mais branda, para a temível e intransigente Justiça, que um crime consumado. – concorda outro companheiro.
- Ainda mais com a estupidez de vocês, seus molóides! Deixam sempre a bola picando onde até a mentecapta cega consegue marcar! – exalta-se a desportista rainha. – Conseguiram direcionar até os erros de português de nossa concorrência fraudulenta. Vocês são tão vadios e preguiçosos que não se deram ao trabalho nem de mudar a ordem das frases. Só faltou acrescentarem o emblema da empresa que pretendíamos que vencesse o processo. – ironiza Poliana.
- Na verdade, alteza. – começa um dos eternamente enrolados, com mais salário que cérebro, bobos da corte real. – Nós bem que tentamos digitalizar o tal emblema, mas era muito complexo para nosso restrito conhecimento de informática. Não conseguimos! Por isso só reproduzimos, na íntegra, o manual de nossa empresa parceira de tramóias e locupletações financiadas pelos motoristas otários.
- Nós não temos culpa daquela gente da tal empresa não saber português e ortografia, Poliana! – indigna-se outro bem remunerado assessor. – Nós estamos aqui para fazer rolo e contribuir para o clã! Se eu quisesse passar a vida trabalhando, lendo e estudando, teria sido professor! Mas quem que vive com um salarieco daqueles?! Tenha dó, rainha!
- Eu devo mesmo agradecer pela ignorância de vocês nos recursos da informática. – ironiza a monarca. - Não fosse por isso, estaríamos todos nós, hoje, em lençóis ainda mais sujos. Sorte minha, que a capacidade de vocês não vai além do facebook!
- Nós somos fera no Face! – vangloria-se um companheiro.
- São umas feras! Mas quando Justiça entra em cena viram logo uns gatinhos. – continua a rainha, ainda mais irônica. – Imprensa Livre divulgou semana passada! Por decisão de Justiça, se não estou enganada. Alguns de nossos simpatizantes, mais simplórios e ingênuos que vocês, seus incompetentes, pedindo perdão à Justiça. Tendo de admitir que ofenderam Justiça por pura falta de cérebro. Que curtiram por cacoete ideológico. Compartilharam, por total ausência de bom senso. E que comentaram por falta de coisa melhor para fazer. Um espetáculo! Sorte que as letrinhas eram pequenas e quase ninguém lê jornais nesse reino. Nem vocês, que, desconfio, mal sabem juntar as letras!
- Você está sendo cruel, alteza! Nós não merecemos esse tipo de tratamento! – ofende-se um dos presentes.
- Vocês é que não merecem os carguinhos que ocupam. E as trapalhadas de vocês ainda podem custar a minha cabeça e as mordomias de toda a corte. Não se esqueçam que meu pescoço ainda esta na guilhotina, só esperando Justiça acordar e se mexer na cadeira. A última coisa que preciso é que vocês fiquem cutucando a velha. – continua a rainha, com o cenho preocupado.
- Não se preocupe alteza! – conforta um assessor. – Tenha fé em nosso clã. Nós somos muito bem relacionados. Temos convicção absoluta de que nesse seu caso especial Justiça vai dormir longamente. Como se diz no dialeto de nosso clã, nós vamos seguir lewandowski com a barriga por muito, muito tempo. Podemos ter falhado na negociata do controle de tráfego, mas ainda somos excelência no tráfego de influências! – afirma, com a arrogância nata dos desprovidos de vergonha.



sábado, 10 de agosto de 2013

Velho Pai

Sorvendo o seu chimarrão, o velho se aquecia em frente ao borralho, nessa fria manhã de domingo. Desde cedo, sua casa já recendia o aroma de pão e cuca sendo assados. Sua véia, parceira de meio século, saracoteava e troteava pela casa como se ainda tivesse seus vinte anos. Também ralhava e brigava com ele com o mesmo vigor da mocidade. Certas coisas não mudam com o tempo, pensa o velho matreiro. As crises de mau humor das mulheres, diziam os médicos, na juventude eram explicadas pela oscilação dos hormônios. Na meia idade, pela falta desses. Aos setenta anos, deviam ser força do hábito, concluía o velho. Melhor não provocar a fera, aprendera nesses cinqüenta anos. Uma Jaguatirica é sempre uma Jaguatirica, não importa a idade.
Hoje era um domingo especial. Era dia dos pais. Seus filhos e netos viriam todos para o almoço. O velho esperava, com a ansiedade e a impaciência próprias de criança, por esse dia. Como eram raras, atualmente, as oportunidades de ter seus filhos reunidos em casa novamente. Sentia saudades dos tempos em que podia segurá-los no colo e apertá-los junto ao peito, como a protegê-los e afastá-los de todo o mal. Embalá-los no sono e espantar os fantasmas, a Cuca, o Bicho Papão e o Homem do Saco. Quando uma luz acesa, na noite escura, afastava todos os males de suas pequenas e frágeis vidas. Tinha saudades da algazarra e das peraltices do criaredo nos almoços de domingo, hoje tão distantes. Saudades até das broncas e dos castigos que era obrigado a impor para corrigir-lhes o rumo. Agora, quem diria, eram eles que se achavam no direito de lhe puxar as orelhas! Tem coisa que filho nunca entende. Filho é sempre filho. Não importa a idade ou o tamanho que tenham. Para um pai, é, e será eternamente, o mesmo pirralho que até há pouco tempo andava e choramingava todo mijado pela casa. Visão de pai, não muda com a idade. Preocupação e zelo também não. Assim como a teimosia e a impertinência dos filhos, reflete o idoso, sorrindo.
A maturidade de um pai traz consigo uma nostalgia diferente e inoportuna. Uma saudade esquisita de tudo que deixou de ser feito ou vivido. E certo sentimento de injustiça, também. Quando eram pequenas, as suas crianças, o trabalho e as responsabilidades diárias lhe deixaram pouco tempo para as brincadeiras e a atenção que gostaria de ter dado a elas. Hoje, homens feitos, à distância, com seus trabalhos e responsabilidades, são seus filhos que já não tem tanto tempo para este velho pai. O tempo se esvai entre os dedos e afasta pais e filhos com uma ironia traiçoeira, suspira o idoso, sorvendo seu mate. Preparam-se os filhos para a vida, e os pais para as lembranças. Só não se prepara aos pais para a saudade, pensa o velho cabisbaixo. Mas, para compensar e alegrar a um velho pai havia os netos! Não tantos quanto desejava este pai-avô, era verdade. Parecem muito pouco afeitos a reprodução os mais jovens, hoje em dia. Coisas desse mundo moderno! Os netos trazem os filhos de volta ao colo de um pai. E em colo de pai cabem todos. Não importa o tamanho.

Olhando o relógio, o velho levanta-se com a presteza que só um pai-avô tem. O tempo tinha passado, rápido demais como sempre. Precisava, ainda, limpar o balanço e desencaixotar os brinquedos. Afinal, suas crianças, finalmente, estavam voltando para casa, anima-se o velho correndo satisfeito para o pátio. Tomara que meus filhos não se esqueçam de trazer bons agasalhos. Com esse frio, podem pegar um resfriado. Eram sempre muito avoadas essas suas crianças! – preocupa-se o velho pai, como de hábito, balançando a cabeça contrafeito.

domingo, 4 de agosto de 2013

O peso da culpa

Sentado no banco da praça, o velho observa, com os olhos já cansados pela idade, mas ainda atentos pelo hábito, o movimento diferente que ocorria no largo. Homens e mulheres, vestidos de branco e com faixas negras nos braços, distribuíam panfletos e argumentavam com os transeuntes. Médicos em paralisação nacional. O velho pensara que já havia visto quase tudo, mas, pelo visto, muito ainda havia a ser visto e lamentado em suas mais de oito décadas de vida. Quando médicos, unidos, resolvem parar, é por que quase tudo estava demasiado próximo do fim. Não lhe parecia ser muito afeita a manifestações coletivas e paralisações a tal classe médica. Na verdade, a dita classe, sempre lhe parecera excessivamente silenciosa com todas as agruras por que passava o povo em momentos de doença. São muito cínicos e práticos esses profissionais. Pairavam sobre-humanos, alheios a dor e sofrimento de seus doentes. Essa ao menos, era a visão que vendia a grande mídia e, atualmente, os governos. Médicos são seres insensíveis que visam apenas o lucro e demonstram somente desprezo pelo sofrimento alheio. Corporativistas. Nada mais do que isso.
Para esse velho ignorante que mal frequentara a escola, os bancos da vida ensinaram quase tanto quanto os universitários. Seres humanos não deixam de sofrer com a dor de outros seres humanos, por mais que tenham estudado e se preparado para isso, conclui o idoso. Ninguém, mesmo uma bem paga e elaborada mídia, convenceria a esse ancião que um médico, por mais cínico que seja, consiga passar imune em uma emergência lotada. Não parecia, a esse idoso senil, que um ser humano, por mais frio que possa parecer, consiga dormir tranqüilo, o sono dos justos, ao perder um, e outro, e mais outro paciente, por falta de recursos e infra-estrutura. Esse velho, que já perdera toda uma lavoura pela impiedosa e inevitável estiagem, ainda hoje lembrava a dor pungente da perda. Nem ousava pensar se fossem vidas humanas perdidas. A perda de vidas devia ser ferida dolorosa que jamais cicatriza. Mesmo para essa gente, vestida de branco, e que parece flutuar acima do bem e do mal. Quem acredita no contrário, deve viver em outro planeta, onde robôs fazem o papel de médicos, pensa o ancião. Não lhe parecia certo e justo que todo o peso da falência crônica do sistema de saúde fosse simploriamente imputado aos profissionais da área. As manchetes de jornais e TV nas últimas décadas eram claras: pessoas agonizavam em emergências, aguardando leitos para internação, exames e cirurgias. Notícias de grandes capitais do país. A esse velho senil parecia óbvio, não se tratava de falta de médicos apenas, como fazia crer a propaganda estatal. Faltava estrutura. Leitos, remédios e exames. Imputar a qualquer trabalhador de saúde o peso da culpa por um sistema falido por gestões inconsequentes e financiamentos irrisórios ou corrompidos, além de criminoso, era no mínimo imoral. Mas imoralidade não é crime, reflete o velho cabisbaixo. Moral se aprende em casa. Assim como o valor de uma vida. Não em bancos universitários ou em cadeiras de congressistas e governantes. Quisera, soubessem nossos governantes, o peso da responsabilidade de ter de escolher quem, dentre uma centena, terá direito ao único leito disponível em um dia de plantão. Quem, dentre os necessitados de uma cirurgia, será o próximo a ser operado. Quem, dentre os infartados, será o único a receber o necessário e adequado tratamento em UTI. Quisera, nossos eleitos governantes, tivessem a coragem e o profissionalismo diários de voltar às costas para os que ficaram sem o tratamento digno, igualitário e gratuito que prega nossa Carta Magna e, ainda assim, persistir. Se tivessem, nossos bem remunerados políticos, que escolher todo dia, quem vai e quem fica, quem ganha, e quem perde, quem vive e quem morre nas desumanas e putrefatas emergências desse país.  Se, soubessem eles, reles mortais imorais, eleitos pelo povo, como bem sabem os médicos desumanos e cruéis, o peso perene da responsabilidade diária na lida da saúde pública, o fardo da culpa seria mais bem distribuído, pensa o idoso, acendendo um palheiro. Quem sabe esse seu vício - reflete o ancião tristonho, entre uma tragada e outra do palheiro, condenado por seu mercenário cardiologista - me leve mais rápido do que a vergonha que sinto de tudo que ainda vejo e não posso mudar, e de todos que ainda se iludem com promessas vazias sem ao menos questionar. - reflete o ancião voltando com passos curtos para casa.