domingo, 24 de julho de 2016

Macaquinhos Olímpicos

E Gigante Adormecido estava em contagem regressiva para o início dos jogos mundiais. Os holofotes do mundo inteiro, em breve, voltar-se-iam para o reino e seu mais belo cartão postal. O povo suspendia a respiração em expectativa. E temor. O povo dessa terra tinha orgulho de suas belezas naturais, suas festas e do seu jeito alegre e cordial de ser. Mas, mesmo essa gente tão acolhedora e festiva, temia o ridículo. Habituaram-se com a violência, a insegurança e a sujeira. Há muito não estranhavam obras superfaturadas e estruturas que não funcionavam, ou até mesmo desabavam sob seus pés ou sobre suas cabeças. Faziam, como nenhum outro povo seria capaz, piada e graça de sua própria desgraça. Muito mais que a malandragem da qual também conseguiam se orgulhar, essa era marca de Gigante Adormecido: rir de si mesmo. Era o seu modo de seguir em frente.
 
Mas havia vergonha também, por trás do riso fácil. A certeza de que as coisas não deviam ser como por aqui são, fazia com que esse povo temesse suas mazelas diárias expostas aos olhos do mundo.  O medo do ridículo era maior que o dos atentados terroristas que inquietavam outros povos. Para quem já liderava o ranking mundial de homicídios, o terror era cotidiano e sair ileso merecia medalha.
 
Enquanto os estrangeiros temiam o famigerado mosquito transmissor de doenças exóticas, os nativos temiam doenças, qualquer delas, que os arremessassem no moribundo sistema de saúde local. Agonizar em macas ou estendidos em acomodações improvisadas no chão de emergências superlotadas era o desafio diário de milhares de doentes. Sobreviver era a grande conquista.
 
Aqueles vindos de fora, torciam o nariz para a fétida lagoa, onde peixes disputavam espaço com dejetos e perdiam a batalha. O povo de Gigante Adormecido já não sentia mais o cheiro, acostumado que estava com a imundície de um lugar onde o acesso a saneamento básico também era coisa para campeão.
 
Os atletas do mundial, cercados de todo aparato militar jamais visto por essas bandas, sentiam-se inseguros nas acomodações novas e repletas de problemas da vila especialmente construída para eles. O resto da plebe sentia-se insegura em suas próprias casas, vias públicas e no transporte coletivo, todos os minutos do ano. Insegurança em tempo integral, mais um recorde de nossa gente.
 
Em breve, eles por aqui chegarão. Seremos novamente vistos pelo mundo. Mostraremos aos mais desavisados que não somos uma imensa selva tropical povoada por macacos. Que eles sejam críticos dos nossos defeitos, sarcásticos com nossas qualidades e benevolentes com nosso comodismo e inércia. Se tudo correr como o esperado, ao partirem levarão consigo a imagem de um povo simpático, carismático e alegre, que faz graça com seus próprios dejetos, feito macaquinhos de zoológico. E nós, os macaquinhos, não precisaremos mais temer o fiasco. Seremos o que aceitamos ser: ridículos, mas na medida certa.
 

 

sábado, 16 de julho de 2016

As boas e matemáticas escolhas de Poliana

          Poliana sentia-se exilada. Quase tanto quanto sentira-se no curto período em que, por perseguição de Justiça, fora injustamente afastada do trono. Felizmente, Justiça, aquela velha caquética, esquecera de Poliana e sua turma nos últimos tempos. Méritos da monarca e sua corte, que aprenderam com os diversos puxões de orelha e já não se atiravam feito porcos em lavagem em qualquer migalha de dinheiro público. Passaram a ser discretos, ao menos. Afinal, nem todos os feitos de sua alteza precisam chegar aos ouvidos de Imprensa Livre.
          Desta vez o isolamento de Poliana era de próprio arbítrio. A nova missão da rainha seria garantir a sucessão do trono para os seus. Tarefa que parecia fácil, agora. A maior preocupação de Poliana era que a companheirada não aceitasse o papel de estrelas de segunda grandeza. Temor que, por obra de seus companheiros, não se justificava mais. Atolado em escândalos de corrupção por toda vastidão de Gigante Adormecido, o clã estrelado contentava-se com qualquer naquinho de poder que ainda conseguisse manter. Para contentamento de Poliana, que inquietara-se com a possibilidade de ter de bancar, novamente, Golesminha para o trono. O passado de Golesminha como o conhecido radical da seita vermelha, Golesma Bonder, seria uma pedra no sapato da monarca em época de nacionalismo e moralismo exacerbados. Entupir fechaduras de empresas com supercola não era visto com bons olhos em tempos de crise e desemprego. Para sorte de Poliana a retórica cansativa de golpe não vingara por essas bandas, e a companheirada aceitara servil e interesseiramente apoiar uma representante da Irmandade do Fogo na disputa em Horário Eleitoral.
          A exemplo do messias do grande clã estrelado, o Ilusionista, duas vezes rei de Gigante Adormecido e que conseguira a façanha de emplacar um poste como sucessora, Poliana também fizera uma difícil escolha. Entre o maior ângulo entre duas retas concorrentes, optara, como seus conhecimentos de matemática exigiam, por ela: Obtusa - a virginal. Uma doce, meiga e carismática escolha, apesar de um tantinho limitada de raciocínio – reflete Poliana, com um meio sorriso de satisfação. A vaidade de Poliana não permitia que apoiasse alguém que pudesse lhe fazer sombra algum dia. Desta forma, Obtusa era a escolha perfeita. E com a ajuda inesperada de Oposição, que prometia dormir até o final da disputa, Poliana pretendia fazer facilmente sua sucessora. Mais fácil que isso, só roubar doces de crianças, ou arrecadar propinas de grandes empreiteiras, assim aprendera com seus companheiros. E para promover sua escolhida, Poliana optara por ocupar o plano de fundo. Todos os holofotes - e photoshop - estavam há meses focados em sua, de Poliana, criatura. Por enquanto, a estratégia estava dando certo. A virginal Obtusa posava muito bem para as fotos. Não tanto quanto a dinâmica e adorada Poliana, é claro! – retrucava a, ainda rainha, empinando o orgulhoso nariz com despeito. “Com photoshop até porongo tem conteúdo. Quero ver minha escolhida argumentando e debatendo em Horário Eleitoral!” – irrita-se a, já um tantinho rancorosa e enciumada, monarca. Tomara que a fala mansa e os discursos populistas e fantasiosos; abraçar velhinhos e beijar crianças mijadas continuem sendo a moeda preferida pelo povo. Pelo visto, ainda eram. Sorte de Poliana e de suas acertadas escolhas. Sorte ainda maior a de Oposição, que teria sempre as melhores justificativas para eternamente hibernar. A sorte cai sobre esse reino mais do que chuva e granizo. Só alguns poucos não conseguem enxergar tamanha ventura. Azar o deles, retruca Poliana - a rainha das boas e convenientes escolhas.

 

 

 

sábado, 9 de julho de 2016

O não de Zangão

E no reino de Poliana, um não é sempre visto como talvez. Pelo menos em se tratando da disputa pelo trono. Agora era definitivo, Zangão, o tetra campeão, batera o martelo e dissera NÃO!  Estava aposentado. Aposentadoria, aliás, já exaustivamente anunciada há vários anos. Desde que entregara a coroa à Poliana. Mas Oposição ainda sonhava em ver o velho Zangão calçando seus kichute, vestindo seu abrigo Adidas azul marinho com listas na lateral, e se aquecendo para entrar em campo e encarar o adversário. Certas coisas nunca mudam por essas bandas. O velho, era sempre a grande esperança de Oposição. Senão a única. Pois, o velho Zangão, optara por calçar pantufas, vestir um confortável chambre e dedicar-se as palavras cruzadas. O campeonato em Horário Eleitoral não era mais como fora em seus gloriosos tempos, alegara incontáveis vezes. E o populismo palanqueiro não era, definitivamente, o seu perfil. Justa e merecida aposentadoria, isso até mesmo seus desafetos concordavam.
 
          E o não de Zangão obrigava Oposição a sair irremediavelmente do bolorento armário onde hibernava há anos. Quem há vários meses anunciava mais de uma dúzia de pré-candidatos à disputa, corria o risco de não conseguir um único atleta que se dispusesse a jogar nesse time de pernas de pau. Todos querem a coroa, mas poucos têm a coragem de encarar o jogo, suar a camisa, dar a cara a tapa e talvez fracassar. O medo da derrota engessava Oposição. Zangão tinha razão, as coisas não eram mais como dantes. Algo faltava aos jogadores desse time. Coragem. Vontade. Hombridade. Faltava cerne. Uma geração de mimados, incapazes de competir por temerem o fracasso. Como se o fracasso não fizesse parte do jogo e da vida. Mas os mimadinhos de hoje queriam os prêmios sem o desgaste da disputa. Esperavam que a coroa caísse do céu sobre suas iluminadas cabeças. Não sabiam, os pobres, que do céu só cai chuva, raio e merda de pombo. Todo o resto se conquista
 
          E enquanto Poliana já terceirizara o reinado e os holofotes para a sua escolhida à sucessão ao trono, e Oposição choramingava como criança ranhenta, Zangão tricotava. Dedicar-se as artes manuais era o destino dos aposentados, o velho aprendera. Entre um resmungo e outro – e resmungos eram a marca de Zangão, o sisudo – já confeccionara dezenas de toucas. Nenhuma para a campanha do agasalho. Todas para Oposição, que preferia dormir de touca. Fazer o quê? – pensa o aposentado. Quando os jovens não têm vontade, aos velhos resta o tricô, o crochê e o bordado. E as lembranças de outros tempos e posturas. De outros modelos e convicções. As disputas são para os fortes. Aos fracos, dessa geração de mimados, resta apenas a covardia – lamenta o velho, entre um ponto e outro de tricô.