domingo, 29 de março de 2015

Popularidade rumo ao pré-sal


O clima entre o seleto grupo de companheiros que aguardavam a Rainha Mãe na sala de estar do Palácio Real, era de comiseração. E medo. Medo dos números que traziam em planilhas, e da reação de sua alteza quando se visse em frente a eles. Sentados em torno da mesa, circulavam dígitos e faziam cruzamentos de dados. Tentavam de todas as formas ajustar a curva. Não havia jeito. Não havia mais curva, era um precipício estatístico.
Alheia a fisionomia abatida de seus assessores, a monarca adentra à sala, com seu andar militaresco, mas com a fisionomia alegre, e anuncia satisfeita:
- Eu perdi mais um! Mais um! Não é uma maravilha? - comemora radiante, enquanto seus vassalos trocavam olhares sem entender.
- Mais um ministro, rainha?
- Não! Claro que não! Desses eu já perdi três, e só ganhei dor de cabeça.- recorda-se a rainha já fechando a cara.
- Então... perdeu mais um embate com o congresso?
- Não, seu estúpido! Esses eu perco uns três por semana. Isso que eles só trabalham de segunda a quinta. Malditos aliados. - queixa-se sua alteza, revoltada. E esclarece rápido, para evitar mais especulações constrangedoras dos presentes: - Eu perdi mais um quilo! Não é fantástico? Essa dieta está me fazendo sentir outra pessoa. E é tão simples! É como economia. É só gastar mais e reduzir o que entra. Devia se chamar dieta Mantega. - conclui a Rainha Mãe, mostrando como seu profundo domínio da área econômica vinha afundando Gigante Adormecido. - Mas o que é essa papelada aí? Nossa quantos números. - observa a rainha, detendo-se em um valor circulado em vermelho. - Caiu! Que beleza! 2,7! A maior queda do dólar nos últimos 20 anos!
- Na verdade, magnânima, 2,7 não é a última cotação do dólar. - começa a esclarecer um companheiro, tentando ganhar tempo.
- É o PIB! Nossa, que Pibão! Precisamos comemorar. - entusiasma-se ainda mais, a sempre fora de órbita, Rainha Mãe.
- Também não é o PIB. Este, pelas previsões, não poderá ser visto a olho nu. - completa o outro assessor.
- Então o que diabos é esse número? Cês parem de me enrolar! - ordena a monarca.
- Esse é um dos dados de uma pesquisa encomendada sobre sua popularidade em seu novo reinado. 2,7 de bom e ótimo. - desembucha logo o companheiro.
- Isso já era esperado. - rebate prontamente a Rainha Mãe - Todos nós sabemos que essa elite endinheirada, que faz panelaço nas varandas gourmet , batendo panelas Le Creuset, não me tem em muito alta conta. Não se conformam com minha popularidade entre os pobres.
- Creio, rainha, que quem ganha até dois salários não deve ter dinheiro para comprar Le Creuset.
Claro que não. São uma fortuna essas panelas. Eu comprei uma dezena aqui para o meu palácio, no meu último enxovalzinho básico. Mas quem pagou foram os contribuintes. Eu jamais pagaria, com o meu dinheiro, um preço absurdo desses por uma panela. - explica a rainha de forno e fogão.
- Esse número da pesquisa, alteza, 2,7, é de quem ganha até dois salários.
- Até dois salários? Mínimos ou de deputados? - questiona, tentando como   sempre, se agarrar em sonhos e fantasias.
- O Mínimo. Dos mortais. Só maior que o dos aposentados.
- É que nós valorizamos muito, no meu reinado, o mínimo. Então, ganhar dois mínimos, chega quase a ser um máximo, não é mesmo? É preciso que cês entendam isso, meus queridos. E com todo nosso investimento em educação, essas pessoas passaram a frequentar universidades. E a melhora do grau de instrução sempre cria um povo mais crítico, exigente e mais...
- Até a quinta série: 3,6. - continua o outro, quase impiedoso.
- Até a quinta, é? - falseia um pouco – A qualidade de nosso ensino melhorou muito, principalmente no ensino fundamental. A quinta série já é quase uma pós-graduação. - fala, direto de Marte, a Rainha Mãe de Gigante Adormecido. - Vocês não têm nenhum dado bom nessa porcaria de pesquisa?! - grita, perdendo a paciência.
- Esses, rainha, são os dados bons. Eles ficam ainda piores nas demais camadas sociais e níveis de escolaridade. Pela margem de erro, em alguns deles, sua popularidade pode ser negativa. - conclui o companheiro, enquanto a desiludida rainha folheava outro calhamaço de papéis.
- Também pudera!Só pode que meu povo tenha uma imagem negativa de mim! Olhem só essas reportagens absurdas desmoralizando minha política econômica, criticando minha cegueira seletiva na petrorroubalheira e me acusando de ter mentido para o povo na última campanha. Essa mídia golpista é comprada por Oposição!
- Na verdade, magnânima, esses aí são jornais estrangeiros. - informa o outro, constrangido.
- Mesmo? Que coisa. - constata, com expressão reflexiva. - A partir de que série o inglês é ensinado nas escolas?
- Depois da quinta. - assegura o assessor, para evitar outra torrente de desculpas esfarrapadas.
- A boa notícia, alteza, é que seu novo reinado está só começando. Não completou nem noventa dias! Temos 45 meses para mudar o cenário. - consola outro assessor, tentando ser otimista.
- 45! Detesto esse número. - rosna, contrariada. - Falta tudo isso para eu me livrar desse pepino? - questiona, abatida, com cara de final de prorrogação.
- Nós já temos estratégias, magnânima. Propaganda ilusória! Marketing, blogs sujos, milícia virtual, robôs... E controle da mídia, claro. A nacional, ao menos.
- Acrescentem controle das pesquisas de opinião também. Já que não podemos acabar de vez com a liberdade de opinião. - ordena a Rainha Mãe, erguendo-se, pronta para retirar-se da sala. - E eu gostei da ideia dos robôs. Podiam colocar um desses no meu lugar, nos próximos e longos 45 meses. Pelo menos quando for para falar em público ou negociar com o parlamento. - fala por sobre o ombro, antes de abandonar o recinto.
- Não seria má ideia. - sussurra um dos assessores – Até o Robocop consegue ter mais jogo de cintura e carisma que nossa adorada rainha. E talvez conseguisse impor um pouco de respeito com nossos aliados.
- Que fase! - suspira o outro – Já começo a acreditar que perder a votação foi uma estratégia de Oposição para nos aniquilar de vez. E se continuarmos nesse ritmo, atingiremos o pré-sal antes mesmo do Natal. - conclui o outro, enquanto deixavam a sala real. Levanta a mão para o interruptor a fim de apagar a luz da sala que ficaria vazia. Muda de ideia antes de concluir a ação. O último a sair apagaria as luzes. Uma coisa era certa, se o cenário desastroso não conseguisse ser revertido, a Rainha Mãe seria deixada sozinha para apagar as luzes e enfrentar a escuridão. Assim ensinou a velha estrela dessa constelação, o Ilusionista, eterno rei da covardia, que continuava escondido e tramando contra sua própria criatura, na penumbra.

domingo, 22 de março de 2015

Solução para momentos de crise: promessas requentadas


No palácio da Rainha Mãe, na sede do poder central de Gigante Adormecido, o clima era de apreensão naquela ensolarada manhã dominical. Nossa monarca e seus bobos da corte mais próximos e fieis, desde cedo agrupavam-se na sala em frente à televisão, aos notebooks, tablets e iPhones. Era um pelotão de enfrentamento de crise, diziam os que estavam de fora. Visto de dentro, mais parecia um grupo em corrente de orações. Suplicavam que tudo fosse menor do que prometiam as tais redes sociais. A medida que as horas transcorriam, a máxima se confirmava: nada estava tão ruim, que não pudesse piorar. O povo fora mesmo às ruas. Protestava. Aos milhares. Em todo imenso território de Gigante Adormecido. Não havia como negar. Era impossível fingir não enxergar. O verde e amarelo cobria ruas, travessas e avenidas em grandes e diminutas cidades. E o nome da Rainha Mãe, de seu clã estrelado e seus aliados, era bradado, em democrático coro. Mas eram brados de revolta e indignação, não os brados de apreço de tempos longínquos.
- Creio, adorada rainha, que a senhora precisará se pronunciar, como monarca, para acalmar os ânimos dos insatisfeitos. - aconselha, um dos bobos reais, no final da tarde.
- Eu?! Cê tá louco! Com esse povo todo ouriçado, é só eu aparecer na TV que vai voar panela por todo o reino! Eu já estou traumatizada. Essa gente tresloucada vaia até a televisão. Desde meu último pronunciamento oficial, não passo nem perto da cozinha com medo que as panelas se revoltem sozinhas e se atirem na minha cabeça. Nem pensar! Vocês que falem por mim, meus bobões. - desliza a soberana.
- E vamos dizer o quê? - indaga o Bobo da Justiça, sabendo que a bomba acabara de cair em seu colo.
- Vamos dizer a verdade! - exalta-se um dos companheiros mais ortodoxos e braço esquerdo da rainha. – Que trata-se de um ato golpista, de pessoas ligadas a Oposição, e que não se conformaram ainda com a derrota do último pleito.
- Vai ser um pronunciamento em rede nacional, companheiro. Para todo o reino. Não um evento dos Companheiros Unidos no Trambique (CUT). - lembra a rainha. - Quem é que vai cair numa conversa mole dessas? Oposição não reunia meia duzia de gatos pingatos em seus eventos, em plena acirrada disputa eleitoral, e agora, sem mais nem menos, consegue reunir milhões?! Milhões! Só nossa militância consegue acreditar nessas baboseiras, e esses não estavam nas ruas hoje, estavam, como nós, bem escondidinhos. Precisamos enrolar os insatisfeitos. Os nossos, serão sempre nossos, por mais estúpidos e incoerentes que consigamos nos mostrar.
- Vamos prometer um pacote de medidas.- sugere um companheiro mais moderado.
- Isso! Um pacote! O povo adora pacotes. Desde que não sejam econômicos. Vamos prometer um pacote com embrulho bem vistoso! - entusiasma-se um pouco, a abatida monarca.
- Prometeremos reforma política e o fim do financiamento privado de campanha! - acrescenta outro assessor real, seguindo a cartilha de seu clã para momentos de revolta popular, artigo primeiro, parágrafo único.
- Perfeito! Reforma política, ninguém, nem mesmo nós, conseguimos explicar o que é, ou definir como fazer. O povão não vai entender nada, mas vai achar o título interessante. E o importante é a embalagem, não o conteúdo. - aprova a Rainha Mãe.
- E o financiamento público de campanha é uma bandeira nossa, que precisamos vender a todos os insatisfeitos. As campanhas eleitorais precisam sair dos bolsos dos contribuintes. São as contribuições declaradas da iniciativa privada que geram e estimulam a corrupção. Com o fim da contribuição privada, não haverá mais corrupção eleitoral. Esse é nosso mote principal.
- Mas... As empresas vão deixar de contribuir para nós? E para nossos aliados? Ou para quem tiver mais chance de entrar no poder e ajeitar uma boquinha para elas? Assim, vamos a pique! - reclama a rainha, preocupada com o futuro dos políticos.
- Claro que não, magnânima! Isso é o que queremos que todos pensem e acreditem. É óbvio que a relação fraterna entre corruptos e corruptores sempre continuará sólida e firme. Só não será oficialmente declarada. Teremos ainda mais dinheiro em nossas campanhas. O dinheiro compulsório do contribuinte otário, e o mesmo dinheiro da iniciativa privada, agora por debaixo dos panos.
- Menos mal. - suspira a Rainha Mãe, aliviada.
- E devemos anunciar medidas de combate contra a corrupção. Já que essa tal corrupção anda na boca da plebe. - Sugere outro assessor para obviedades.
- Perfeito! Vamos começar dizendo que nunca antes na história da humanidade, um reinado se empenhou tanto e deu tanta autonomia aos poderes para que a corrupção fosse investigada e punida.
- Isso mesmo! Vamos mentir para o povo que quem deu poder para a polícia e o Judiciário não foi a Constituição de mais de 25 anos atrás. Que a autonomia dos poderes só começou em nosso democrático reinado. Que antes de nós, a polícia e o judiciário eram uns cachorrinhos adestrados. A polícia e o Judiciário nem se ofendem, eles nos veneram por nossa postura ética. - concorda a Rainha Mãe, alienada, como quase sempre.
- Vamos decretar que corrupção passará a ser crime!
- Mas, já não é crime? - pergunta a rainha, confusa.
- Não. Quer dizer... acho que sim, mas vamos dizer que seremos, a partir de agora, intolerantes. Será crime hediondo.
- Crime hediondo, é? O povão vai gostar. Mas isso não dá cadeião?
- Na teoria, rainha, deve dar.
- Mas, se for assim, quem é que vai legislar ou governar nesse reino? Vou ter de criar imediatamente o programa Minha Cela, sua dívida. Caso contrário vai faltar acomodações dignas para tantos digníssimos representantes do povo. - inquieta-se a rainha.
- São só promessas rainha! As mesmas que fizemos após as manifestações de dois anos atrás. São só para enrolar o povão e acabar com a rebelião popular. Não é para serem levadas ao pé letra. - esclarece o Bobo da Justiça.
- Entendi. Acho que deve funcionar novamente. Então, preparem-se meus bobos, a TV os espera. Tentem dar uma arrumada nessas caras e roupas amarrotadas. Vocês parecem ter sido pisoteados por todo aquele povo lá fora. Enquanto vocês me representam no panelaço em rede nacional, eu vou fazer uma ligação. Preciso ouvir conselhos de quem realmente entende de crises.
- Vai falar com seu criador, nosso guru, o Ilusionista, alteza?
- Não. Vou consultar o Passarinho?
- O milico?! Da ARENA?!! Pelo amor de Guevara, não basta nós termos adotado políticas neoliberais, agora vamos trazer a extrema-direita para nosso reinado! - revolta-se ainda mais o companheiro radical.
- Não é esse passarinho, seu estúpido. É o passarinho do Maduro, lá na Venezuela. Aquele que o falecido e saudoso Hugo Chávez usa para se comunicar do além com o atual presidente bolivariano. De como conter manifestações populares e tentativas de golpe, o Huguito era doutor. - esclarece a Rainha Mãe.
- Boa ideia! - vibra o companheiro xiita. Nesse pacote, podemos incluir, a exemplo da Venezuela, a liberação do uso de armas letais contra manifestantes golpistas, e a permissão para a rainha governar por decreto, sem o parlamento. Seria perfeito!
- Fala baixo! - inquieta-se o Bobo da Justiça, com bem mais jogo de cintura, preocupado com a postura do outro em frente as câmera, logo mais. - E nada de repetir essas coisas na TV. Tente ser um pouco simpático. Vamos falar de democracia, respeito a liberdade de opinião e manifestação... - sabatinava o Bobo da Justiça, tentando evitar um desastre.
     Não funcionou. Bastou pegar o microfone, para o assessor da Rainha Mãe rosnar para os presentes, falar em descontentamento das urnas, golpismo, intolerância e o blá, blá, blá de palanque do SindiPelego. O que ele disse, ninguém, mais ouviu. O som das panelas se sobrepuseram as asneiras. Com assessoria assim, tão desqualificada e sem senso de ridículo, só resta a nossa Rainha Mãe bons conselhos de passarinhos, já que de outros animais mais estúpidos, seu reinado está lamentavelmente infestado.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Eu quero falar de uma coisa: de 15 de março


          Há 30 anos, em 15 de março de 1985, quem subiu a rampa do Palácio do Planalto para receber a faixa presidencial, não foi quem devia ter sido. Este, jamais a subiria. Como quase tudo no Brasil, nada parece ser como devia ter sido. Os milhares de brasileiros que haviam marchado Brasil afora clamando por Diretas Já, e perderam, também invadiram às ruas em comemoração a eleição indireta de Tancredo Neves. E esse não assumiu como o primeiro presidente civil, após longo jejum. Por mais de dois meses, Tancredo agonizaria em prolongada enfermidade, sob orações e perplexidade diária de seu povo. Em 21 de abril, o Brasil parou em comoção, pela morte de Tancredo Neves. Milhares de brasileiros choraram a morte daquele que foi seu presidente sem jamais ter sido de fato. E milhares de brasileiros foram às ruas acompanhar o cortejo fúnebre. A democracia, recém-nata, estava em risco, acreditavam muitos. Não foi assim. A democracia havia sido semeada, pelo povo que se manifestara nas ruas. A democracia se faria plena, cinco anos depois, com as primeiras eleições diretas. Em um 15 de março, cinco anos depois, assumiria um presidente eleito de forma direta. Dois anos depois, esse mesmo presidente renunciaria, frente aos fortes protestos populares que pediam seu impeachment, por indícios de corrupção. A democracia havia fincado raízes em solo brasileiro. O povo, nas ruas, mostrara e exigia isso.
          Entre percalços, infortúnios, desgovernos e corrupção: sobrevivemos todos. Sobrevive a democracia. Em trinta anos, crescemos e amadurecemos. Como povo e como país. Precisamos crescer e amadurecer muito mais. Mas, o povo pacífico nas ruas é, e sempre será, democracia.
“Há que se cuidar do broto
Pra que a vida nos dê flor
Flor, e fruto.” Milton Nascimento, Coração de Estudante

sábado, 7 de março de 2015

FALA SÉRIO! O golpe dos diferentes


São todos iguais. Sempre foram assim. Desde Cabral. Não há remédio. Não há solução. Que estranha lógica rege esse país. Eles, todos eles, são eleitos por nós. Devem satisfação de seus atos, corretos ou fraudulentos, a nós, todos nós. E somos nós que devemos exigir que eles, todos eles, sejam diferentes. Devemos fazer isso através do voto. Podemos fazer isso manifestando publicamente nosso repúdio e insatisfação, constrangendo-os por serem o que são. Recursos perfeitamente aceitáveis em qualquer democracia.
Mas, no Brasil de hoje, quem pretender sair às ruas em manifestações de indignação com a corrupção e a imoralidade, é acusado de golpista. Golpe? É golpe bradar contra o roubo do dinheiro dos nossos impostos? É golpe demonstrar nossa revolta com a indecência e promiscuidade de nossos representantes? É golpe se indignar com a sangria da Petrobras? É golpe pressionar nossos governantes para que honrem suas responsabilidades para com seu povo? É golpe que descontentes com nossa presidente gritem por seu impeachment? É golpe exigirmos que eles, os iguais, sejam diferentes? Não. Não é. É nosso direito e, talvez, nosso dever. Nosso, dos diferentes deles.
Existem resquícios e descontentamentos da recente campanha eleitoral? Evidente que sim. Existem golpistas infiltrados, buscando surfar na onda de indignação? Evidente que sim. Existem iguais, tentando parecer diferentes? Evidente que sim. Mas é mais do que evidente, a qualquer um que se proponha a enxergar, que a insatisfação e a revolta são coletivas. Não tem cor. Não tem partido. Não tem líder. Não tem classe social, como tentam imputar alguns. Tem apenas indignação e inconformismo de uma parte significativa da sociedade.
Àqueles que alardeiam a ideia de que manifestações populares pedindo o impeachment da presidente são tentativas de golpe, cabe algumas singelas lembranças. Mesmo na remota hipótese de centenas de milhares de brasileiros irem às ruas pedindo a saída da presidente, nem mesmo assim, nossa presidente democraticamente eleita despencaria, da noite para o dia, da rampa do Palácio do Planalto. Não ocorreu assim no afastamento do ex-presidente Collor, também democraticamente eleito. Fato histórico, que aliás, nunca foi visto como golpe, e sim como exercício da democracia. Um impeachment é um recurso legal, previsto na Constituição Federal, e que requer critérios e trâmites plenamente democráticos e republicanos. Não se dá na calada da noite. Se faz à luz da Constituição. Não é golpe, portanto. Nem hoje, nem antes.
Aos que apelam pela intervenção militar: deixem as Forças Armadas onde estas devem ficar. Zelando por nosso território, nossa soberania e nos protegendo de inimigos externos. Os inimigos internos, que nós elegemos, são responsabilidade nossa. É assim que se faz um Estado Democrático de Direito. E não podemos perder o Estado de Direito de vista. Seria de uma indignidade e covardia extremada esperarmos que outros limpem a sujeira que, de uma forma ou de outra, é de todos nós brasileiros.
Quem pariu os iguais, que os embalem. Quem não os pariu, e os arrependidos, que os pressionem, de todas as formas legítimas, a andar na linha reta traçada por nós. E no próximo pleito, que lhes mostremos, todos nós, os diferentes, de um só golpe, a porta da rua.


domingo, 1 de março de 2015

Trânsito interrompido nos neurônios reais


No Palácio Real da Rainha Mãe, sede do poder de Gigante Adormecido, os bobos da corte confabulavam, aos sussurros, preocupados. Se as coisas, há muito não andavam bem, nos últimos dias não andavam nada. O reinado de sua alteza sofria de um gigantesco e alarmante bloqueio. E não era o contínuo, persistente e teimoso bloqueio de nossa monarca e sua corte, que imobilizava a economia, estagnava o crescimento e causava insatisfação popular. Não era, sequer, a conhecida imobilidade, descaso e lerdeza do parlamento em aprovar medidas necessárias ao povo e ao reino. Dessa vez a situação era verdadeiramente séria. Alarmante. Aqueles que realmente fazem falta, resolveram se rebelar. Aqueles que têm serventia. Aqueles dos quais todo povo sente na pele a ausência, em poucos dias de paralisação. Os que transportam o crescimento e a riqueza do país nas caçambas. Tão diferentes daqueles que carregam o suado dinheiro surrupiado do povo em suas cuecas. E o drama da companheirada, era o maior dos dramas. Como explicar à Rainha Mãe a dramática situação. Todos os mais próximos asseclas de sua alteza eram sabedores das conhecidas dificuldades da rainha em entender, e que dirá, aceitar, qualquer percalço, contratempo ou crise em seu fantasioso reinado. Por isso, suavam em bicas, os bobos da corte da rainha, como nunca algum dia tiveram de suar trabalhando.
- A situação está um pouquinho preocupante, magnânima. Os caminhoneiros resolveram parar e a produção está estacionada nas estradas. Já há indícios de desabastecimento em alguns locais.
- Ora, meu querido, não tenho tempo para essas picuinhas de movimentos classistas nesse momento. Tenho um importante loteamento do Minha Caixa, Eterna Dívida para entregar em algum lugarejo desse enorme reino. Preciso pensar na minha popularidade, cê sabe! - responde a monarca, com ar de enfado.
- Mas é que a crise parece séria, rainha. Há ameaça de falta de combustíveis no reino.
- Falta de combustíveis?! Que bobagem! - exaspera-se a Rainha Mãe - Como é que cês caem numa conversa dessas. Nós temos o pré-sal, capaz de produzir centenas de barris de petróleo em .... 20 anos! Jamais faltará combustível nesse reino. Eu garanto! Nem que a vaca tussa!
- Mas, rainha, os caminhoneiros estão parados há dias nas estrada.
- Obras do PAC?
- Não. Eles querem redução no preço do frete e do diesel. Queixam-se do aumento dos combustíveis...
- Olha aqui, queridinho - rosna sua alteza - eu acho que vocês e esses caminhoneiros tem algum probleminha, pois não houve nenhum aumento de combustível no meu reinado. Não sei de onde vocês tiram umas notícias ridículas dessas. Deve ser das propagandas enganosas de Oposição.
- Na verdade, alteza, houve um pequenino aumento do valor nas bombas e...
- Não teve aumento!- corta rispidamente sua majestade - Houve um reajuste! E reajuste não é aumento! - irrita-se ainda mais a rainha, deixando seus assessores temerosos e confusos.
- Claro, claro, magnânima. - contemporiza um dos bobos, para acalmar o ânimo real. - Nós sabemos, mas a senhora sabe como o povão é ignorante e não entende nada de economia. Mas precisamos dar um jeito de acabar logo com essa manifestação para que não acabe prejudicando sua popularidade.
- Isso é fácil. Pelo amor de Deus! Vocês fizeram isso a vida toda. É só enrolar a turma. Chamem as lideranças para negociar. Ofereçam meia duzia de propostas inúteis. Sempre há os pelegos nos sindicatos dispostos a lutar por nós e manipular a categoria. Vocês sabem melhor do que eu como é que isso funciona.
- É um pouco mais complicado, rainha. Eles não estão subordinados a uma liderança. É um movimento autônomo. Independente. Está difícil cabresteá-los.
- Mas quem fala por eles?
- Eles falam por si. E se comunicam com uma rapidez impressionante através das redes sociais. São mais rápidos que nós.
- Nada de assembleias, pautas e atas? - pergunta a monarca, espantada.
- Nadinha.
- Nem bandeiras vermelhas? - escandaliza-se sua alteza.
- Nenhuma bandeirinha vermelha. É um movimento de elite. Golpistas, é claro. Um bando de desocupados que passam o dia no facebook ou dirigindo suas Mercedes. Gente inconformada com todos os avanços sociais de nosso reinado. - explica o Bobo da Justiça, com a lucidez própria dos muito justos de raciocínio.
- Mas deve haver um articulador. Oposição deve estar envolvida, incitando essa gente! Eles são caminhoneiros, ora bolas. Não têm uma ideologia, como os nossos seguidores. Estão sendo manipulados por alguém. Precisamos descobrir quem?
- Não sei, não, rainha. Parece ser algum descontentamento espontâneo. E já tem pessoas em todo reino demonstrando apoio a essa gente.
- Descontentes com o que?! - vocifera a monarca. - As coisas estão uma maravilha! Nosso reinado vai de vento em popa! Se acham que a gasolina está cara que se mandem para Venezuela. Lá o combustível é quase de graça. Mas avisem para esses desocupados, sem vontade de trabalhar, que levem papel higiênico, pois é artigo raro em nosso reino-irmão. Quero ver fazerem manifestaçãozinha por lá. - acrescenta a Rainha Mãe, com um meio sorriso de escárnio. - Eles têm de ter um líder! Precisamos achar o culpado por essa anarquia. - reflete - Como conseguem se organizar?
- Eles se comunicam por telefone. Nesse tal de Whatsapp. Em poucos minutos conseguem organizar manifestações em todo o território. É uma catástrofe!
- Por telefone celular?! Que inferno! Malditos telefones celulares! Nos nossos tempos de militância ninguém tinha acesso a essas geringonças capitalistas. Podíamos manipular esses movimentos facilmente. Agora viramos reféns de nosso próprio povo. Um absurdo! Tudo culpa dessa tecnologia desgraçada! Quem foi o estúpido, irresponsável que permitiu que a telefonia celular se expandisse por todo esse imenso reino?! Só pode ter sido um neoliberalzinho, burguês e ....
A Rainha Mãe cala-se rapidamente, estarrecida. Um clarão de entendimento se abateu sobre ela. O mesmo sentimento correu, como um choque elétrico, entre todos os companheiros da sala. Todos, ao mesmo tempo, arregalaram os olhos ao darem-se conta da dura constatação. Em um uníssono, balbuciaram: - FHC!
- Ele! Foi ele! Sempre ele! - choraminga a rainha, balançando a cabeça, desolada.
- A herança maldita de FHC! - lamuriam-se todos, desanimados. Não havia saída. Era uma luta perdida. Os fantasmas não morrem jamais.