sábado, 25 de agosto de 2012

Poliana de forno e fogão


Nos bastidores das filmagens o clima era de já ganhou. A vasta corte real cercava a esplendorosa rainha. Poliana treinava compenetradamente as caras e bocas que deveria apresentar, logo mais, em frente as câmeras. A rainha olhava descontente para o traje escolhido por sua assessoria de marketing e ilusionismo. Que roupas mais sem graça ou glamour! Poliana não entendia como poderia fazer boa figura usando avental de florzinhas e saias tão cumpridas e deselegantes. E chinelos de dedos! Eu detesto chinelos! – pensa a soberana, observando injuriada seus pezinhos miúdos naquelas coisas grotescas. Os marqueteiros da corte garantiram a sua alteza que era preciso passar a seus crédulos e ingênuos súditos um ar doméstico e de simplicidade. Seu povo humilde se comoveria com o ar brejeiro da altiva, mas despojada, Poliana.
- Precisamos montar o pano de fundo para a entrevista. Tragam as crianças ranhentas para compor o cenário de família unida e simplória... quero dizer, simples . - ordena um dos assessores de ilusionismo da rainha.
- Pega lá a bicharada, companheiro, e coloca os gatos e cachorros em volta do fogão a lenha! Vamos dar uma idéia de preocupação com a causa dos animais. – orienta o marqueteiro real.
- Cachorro e gato não! – discorda a rainha – Eu tenho alergia a essas coisas peludas! – acrescenta coçando o nariz com ultraje.
- Tá certo magnânima, mas precisamos colocar algum animalzinho nas tomadas. Até Oposição tem cachorro! Você precisa fazer um esforçinho Poliana.
- Já não basta ter de agüentar a zoeira infernal desse criaredo mal educado! Vou ter de aturar essa cachorrada na minha volta também?! – revolta-se a monarca.
- Quem sabe colocamos um porco no lugar do cachorro? – sugere um representante da agricultura familiar. – Vai reforçar nossa preocupação com o pessoal do campo.
- Boa idéia companheiro! Tragam logo um leitão e um bezerro mamão!
- Ai que nojo! – reclama Poliana, torcendo o delicado nariz.
- Agüenta firme alteza! São só algumas tomadas. – consola um membro da equipe. – Rainha, você deve ficar sentada no banquinho segurando um pano de prato. Vamos dar a idéia da mulher do interior que teve de deixar sua terra e migrar para esse grande reino em busca de oportunidades. Você pode escorregar um pouco nos erres para comover o povão.
- Isso é fácil. Eu saí quase corrida do interior quando meu oportunismo se tornou complexo de mais para aquele vilarejo. Bem dita seja minha visão de longo alcance. Se não fosse por isso, vocês hoje, companheirada, estariam no lugar de Oposição, erguendo a velha e gasta bandeira da moralidade – vangloria-se sua majestade. – Graças a minha ambição, nós vendemos a moralidade por dinheiro fácil. Algo muitíssimo mais lucrativo que enrolar os colonos, todos hão de convir.
- Agora rainha, você deve falar do valor da família na sua vida. Tá tudo aí no script. É importante que você lacrimeje bastante e enxugue as lágrimas no avental. Enquanto isso uma das crianças que arrumamos vai limpar o nariz na sua saia enquanto...
- Eu vou vomitar! – exclama Poliana, nauseando. Meus sais! Tragam os meus sais!
- Só mais um pouquinho alteza. Seja forte! Mais tarde você pode ficar horas relaxando na banheira de ofurô. Não esqueça que Oposição também tem família.
- Mas não deve ter criança ranhenta! – reclama a pálida monarca.
- Se não tem, vai arrumar. O povo adora a criançada na TV. Esse clichê é velho, mas sempre pega bem.
- Aposto com vocês como Oposição vai desfilar com o Zangão vestido naqueles coletinhos fora de moda que o velho usa desde a década de setenta. – brinca um dos bobos fazendo Poliana gargalhar.
- É mesmo! – exclama a rainha já recuperada de seu desconforto – Aqueles coletinhos horrendos do Zangão conseguem ser piores que essa roupa de virgem campesina que vocês me arrumaram.
- É isso aí! Filmem bem esse ar descontraído dela. Vai ficar ótimo no programa. – ordena o marqueteiro, satisfeito com a tomada.
- Nesse momento, você vai falar para nossos ouvintes de como você se emociona com o sonho da casa própria acalentado por seu amado povo. E de como a abnegada rainha construiu sozinha centenas de moradias para seus súditos em tão pouco tempo.
- Essa é fácil também. Só nos últimos quinze dias eu já ergui 30 casas! Meu reino é um verdadeiro canteiro de obras! – acrescenta Poliana olhando sorridente para as câmeras.
- É mesmo? Eu não sabia desse novo loteamento popular. – surpreende-se o assessor, consultando o script.
- Não é loteamento popular, seu estúpido. São aquelas casinhas erguidas no acampamento gaudério! Tomamos a liberdade de acrescentar essas também na nossa contagem de moradias oferecida por nosso empreendedor reinado de oportunidades. Tá escrito na cartilha de nosso clã, página 580. Para cada pá de brita jogada por nós em algum empreendimento privado, contamos como uma grandiosa e desprovida de segundas intenções, obra nossa! Como é que você acha que nos vangloriamos de ter construído tantas casas pro povão. Todo mundo sabe que nós só conseguimos construir churrasqueiras e canchas de bochas, seu molóide. – esclarece a já entediada Poliana.
- Ah, agora entendi. – continua o marqueteiro, um tanto decepcionado. – Quem sabe, nessa próxima tomada, você rainha, fala ao seu povo sobre como a honestidade é uma marca importante na sua história.
- Agora sim eu vou vomitar! – grita Poliana sudorética.
- É rapidinho alteza. Basta ler o que diz o roteiro.
- Que nojeira! Isso é inaceitável! – continua a desesperada rainha vomitando na pia.
- Tudo bem Poliana. Não precisa ficar assim tão melindrada. – desespera-se o assessor tentando contornar a desagradável situação. – Eu sei que essa questão da moralidade é um tanto delicada, mas...
- Porco! – berra a rainha descomposta.
- Também não precisa xingar! – ofende-se o marqueteiro, encolhendo a barriga e estufando o peito.
- O porco, seu cretino! Tá cagando no meu tapete Persa! Alguém faça alguma coisa! – brada a magnânima rainha após mais uma golfada na pia, enquanto seus apalermados bobos e pajens corriam desembestados para resolver mais esse constrangedor episódio.
- Vamos encerrar as gravações! - anuncia o chefe da equipe. Melhor usarmos só tomadas externas daqui para frente. O cheiro por aqui tá ficando insuportável.

sábado, 18 de agosto de 2012

Flashes para Poliana


O aglomerado espalhafatoso de assessores cercava a rainha. Poliana mal conseguia respirar envolta em uma nuvem de spray fixador. Até sorrir se tornava trabalhoso com tantas camadas de pó compacto, base, rimel e blush a cobrir a carismática face da monarca. Os bobos da corte se acotovelavam, todos querendo mostrar a sua alteza a importância de suas assessorias. Alguns haviam passado as últimas noites em claro tentando compreender as atribuições mais básicas dos carguinhos que ocupavam há anos. Precisavam recuperar o tempo perdido. Nessas épocas tinham de mostrar serviço para garantir que seus volumosos glúteos continuassem a ocupar os mesmos confortáveis tronos por mais algum tempo. Se os numerosos e bem remunerados bobos da rainha demonstravam cansaço, os serviçais mais comuns do reino, sem carguinhos ou mordomias reais, encontravam-se exaustos. Passavam horas preparando relatórios e explicando minuciosamente as rotinas e problemas aos seus, até poucos dias, desinteressados e inertes chefes. Alguns serviçais mais debochados divertiam-se ao ver a turma do Alto Clero baratinada com tantos dados e informações. Corria a boca pequena da raia miúda do palácio que a velha e boa Vontade Política fora jogada no lixo e rapidamente substituída pelo milagroso Photoshop. Sorte da corte real que Photoshop não tinha cheiro, assim só os servos mais dedicados e questionadores se sentiam desconfortáveis com o odor fétido que invadia o decadente castelo de ilusões de Poliana e sua trupe.
- Meu gloss! Eu quero meu gloss! – grita a rainha assustando aos seus fieis bobos.
- Já vai Poliana. Precisamos que você preste um pouco de atenção nesses argumentos.
- Não agüento mais ouvir esse monte de informações! Eu quero meu gloss vermelho cereja! Não posso aparecer em frente as câmeras com os lábios pálidos e ressecados, seus estúpidos.
- Alguém aí traga logo o gloss da rainha! Rápido! - grita um companheiro.
- Alteza, esses gráficos mostram as necessidades na saúde do reino e os investimentos...
- Eu não quero saber dessas bobagens! - enfurece-se a rainha – Eu é que estou parecendo doente com essa maquiagem! Eu quero meu gloss!!! - berra Poliana, ensandecida.
- Aqui está, magnânima. O seu adorável gloss! – ofega prestativo o Bobo Mor das pestes e enfermidades. – Realmente essa cor lhe cai muito bem majestade - acrescenta adulador.
- E aqui rainha – continua o assessor ansioso - temos alguns dados sobre  a problemática do esgoto em nosso reino e as medidas...
- Você está louco! Acha que eu me produzi todinha para falar de merda na televisão! Olha bem pra mim, seu molóide. Eu sou uma rainha! Linda e perfumada! Não vou me prestar para discutir esses assuntos decadentes e mal cheirosos. Blush! Mais blush! – grita a rainha para seus apalermados pajens.
- Sobre a crise de abastecimento d’água, minha rainha, nós podemos argumentar que...
- Ah, não! Essa não! Não pode ser verdade! - assusta-se Poliana.
- Eu sei alteza. Foi uma trapalhada dos diabos, mas vamos alegar que nosso alinhamento fisiológico...
- Uma espinha! Olhem só isso aqui! Uma espinha no queixo! É uma desgraça! Uma desgraça! – desespera-se a rainha, chorosa.
- Nem dá pra ver nada majestade. – fala prontamente Faisão, assessor de marketing real, tentando evitar o iminente destempero da monarca.
- Como não! É enorme! Com que cara eu vou aparecer na frente da odiosa Oposição? – choraminga a rainha com os olhinhos de biscuit já lacrimosos.
- Nem se preocupe magnânima. Oposição nem vai reparar. Ela só sabe apontar o dedo para aquela bobagem de honestidade.
- Por falar em honestidade rainha – continua o sudorético assecla aproveitando a deixa - acho conveniente a senhora evitar essas provocações. Faça cara de paisagem quando o tema surgir e use sempre a velha e boa máxima de nosso grande ídolo Paulo Salim: rouba, mas faz! E sempre se vanglorie de nosso lucrativo alinhamento com nossos mestres, os mensaleiros.
- A culpa é de vocês!Vocês me colocaram nessa enrascada com aquele papinho antiquado de debate e confronto de idéias. Agora eu vou ter de enfrentar Oposição, olho no olho, ao vivo na TV! Não existe photoshop na TV, seus cretinos! - desabafa Poliana, em lágrimas. – E agora isso! Meu rimel tá todo borrado! É o fim! O fim! - desespera-se  ainda mais a carismática Poliana.
- Pior que não é o fim. Isso é só o começo. – sussurra, preocupado, um membro mais experiente da Irmandade do Fogo enquanto assistia o desenrolar de mais uma das famosas crises de histeria da rainha. Se ela enlouquece com uma espinha no queixo, como irá reagir quando Oposição chamar a atenção para enorme mancha escura em seus fundilhos. Melhor nem pensar nisso. Pode ser o começo do fim. - suspira o ancião prevendo problemas a frente.



sábado, 4 de agosto de 2012

O Espetáculo de Decadência


Sentado em frente a TV, o velho acompanhava atentamente o palavrório complicado daquela gente letrada. Gente graduada e com a austeridade adornada pelas sóbrias roupas negras. Que imponentes figuras faziam com suas togas engomadas. E que intimidantes pareciam com todas aquelas palavras difíceis. Às vezes o velho desconfiava de que nem eles se entendiam nesse estranho dialeto jurídico. Despeito de um velho ignorante, com certeza. Quem era ele, que mal assinava o nome, para querer criticar gente assim tão importante. Pena não ter estudado, suspira o velho tristonho. Talvez fosse mais fácil entender o rumo desse mundo moderno se tivesse freqüentado por mais tempo a escola. Mas lhe faltara oportunidade em sua infância distante. Tudo era tão longe e difícil naquela época, e mesmo assim, a esse velho tolo, tudo parecia mais coerente e lógico do que no cotidiano atual. Não conseguia entender como é que hoje em dia se podia terminar o colegial sem sequer saber ver as horas. Devia ser a pressa dessa nova geração. Nem viam passar os segundos e minutos. O tempo parecia se esvair entre os dedos na correria fria e impessoal desse mundo atribulado.
Concentrando-se novamente na transmissão da TV o velho se surpreende com o tom mais duro de um dos ilustres membros da corte suprema. Até para um ancião sem estudo era possível entender que os ânimos se aqueciam naquele teatro de sobriedade. Para esse velho de pouca cultura, era dificultoso entender a razão de tanto tempo e argumento para se concluir o que parecia óbvio. Roubo é roubo. Falcatrua é falcatrua. Falta de caráter e decência são marcas de imorais. Não podia haver dúvidas quanto a conceitos tão básicos. Não era preciso ser doutor para saber definições tão elementares. Mas, até o que devia ser claro e certo, tornara-se turvo e questionável nesses novos tempos. Talvez fosse descaramento e  imoralidade que se ensinava hoje nas escolas. Só podia ser essa a explicação para a carência de lógica e de postura que envergonhava a esse velho estúpido. O que mais lhe abismava era a capacidade dos políticos da atualidade de defenderem, com pose de injustiçados, atos tão vis e inescrupulosos. Lavagem de dinheiro, caixa dois, ou fosse lá o nome que se ousasse dar a seus negócios obscuros, tudo não passava de corrupção e imoralidade. Até os ratos de esgoto eram mais dignos que essa gente de terno e gravata. Engravatados escolhidos por seu povo. Povo. Quando é que um povo alegre e hospitaleiro se tornou tão sem princípios quanto seus torpes líderes? Quando foi que seu povo perdera a noção de certo e errado? Quando seu adorado país se tornou tão omisso e sem ação a ponto de presenciar inerte a vergonha encobrir sua nação? Talvez, pensa o ancião cabisbaixo, esse seja o preço a pagar por progresso e desenvolvimento. Quem sabe a nova geração, que não sabe ver as horas, venha a resistir com rebeldia a vertiginosa decadência dos valores éticos tão desconfortável e humilhante para esse velho míope. Quem sabe! Suspira o velho, mudando o canal da televisão. Era hora da novela e não queria ouvir os resmungos de sua velha. Melhor assistir a mais um melodrama fantasioso junto a sua rabugenta, mas leal parceira de uma vida inteira, do que presenciar sozinho a mais um capítulo deprimente da ruína de sua pátria.