sábado, 30 de agosto de 2014

A fórmula da mudança: pó de pirlimpimpim!


Pesquisas. Ah, as pesquisas! Tão adoradas e divulgadas há poucas semanas, agora são demonizadas pela companheirada. Manipuladas, compradas e golpistas, gritam os companheiros, como faziam há pouco mais de uma década. Oposição andava com saudades desse velho chororô. Oposição? Bem, Oposição, hoje, vinha com cara, jeito e cheiro de Situação. Mas com o discurso do novo e da mudança. Aliás, todo mundo queria mudança em Gigante Adormecido. Até quem estava no poder prometia fazer diferente de agora em diante. Coisas que só o povo do carnaval e da fantasia conseguia compreender. Cansado da velha e polarizada luta do bem contra o mal, o povo resolvera inovar e acrescentar um pouco mais de tempero nas cansativas e tediosas disputas de Horário Eleitoral. Apostara considerável número de cartas em uma Fada da Floresta. Tendo o bem, o mal e a fadinha, esse enredo não tinha como dar errado.
Em que encruzilhada se encontravam os companheiros. Precisavam reagir, e rápido, ou seus inestimáveis carguinhos e mordomias se dissipariam na poeira das obras do São Francisco, ainda não transposto. Mas como bater em uma fada? Esse era o dilema da companheirada. Não que lhes sobrasse escrupúlos, o que faltava era coragem de encarar a péssima imagem que faz seu povo daqueles que agridem os seres míticos. Quanta ironia! Pois não fora justo essa tática que lhes garantiram tanto tempo no poder? Criaram a imagem profética do Ilusionista, como o pai dos pobres e benfeitor dos miseráveis. Um proletário idealista que venceu a elite malvada para salvar a todos. Uma figura messiânica e intocável, capaz de eleger uma caricatura como sua sucessora. Agora, nem mesmo o descarado Ilusionista era capaz de avançar sobre essa nova carismática adversária que, como ungida, surgia.
Para superar esse desafio, os destemidos companheiros precisariam de sólidos argumentos e boas acusações. Por isso, já ensaiavam o novo coerente discurso. A fadinha apoia as invasões de terra e a reforma agrária! Defende a devolução de terras aos índios! Critica o acúmulo de capital e o modelo capitalista! É a favor da inclusão social das minorias e do controle do poder pelos movimentos sociais! Ela é comunista! Não podemos permitir que o comunismo chegue a nossa adorada pátria! Abaixo o comunismo! - gritam os companheiros em uníssono.
Nesse reino de fantasia, a coerência é como pó de pirlimpimpim. Faz ideologias voarem de um extremo a outro. E ao povo, só cabe ter pensamentos felizes, que tudo dará certo ao final, como ensinava a boa fada Sininho.

domingo, 24 de agosto de 2014

A realidade pré-fabricada de Horário Eleitoral


Que experiência gratificante é viajar por Horário Eleitoral! Um pedacinho do paraíso, quase uma ilha, perdida em meio a realidade desbotada e nada pomposa de Mundo Real. Todos os candidatos a medalhas e troféus adoravam a seu povo. Nisso sempre concordavam Situação e Oposição. Preocupavam-se com o futuro de seu povo. Sofriam pelos males do povo. Comoviam-se com a história do povo. Lutavam com unhas, garras e golpes baixos, para serem sustentados nos próximos anos por esse povo. Apenas uma pequena coisa desagradava a esses abnegados candidatos em Horário Eleitoral: o povo! O povo real, de carne e osso, não fazia boa figura nesse mundo colorido e perfumado. O povo de verdade, não é capaz de arar a terra, sob o sol escaldante, mantendo um sorriso satisfeito nos lábios e sem derramar uma gota de suor. Os operários do mundo real, não chegam ao final de um árduo dia de trabalho e sorriem satisfeitos por estarem contribuindo para o crescimento do país. As mães da vida real são completamente incapazes de manter sua prole de cinco filhos, todos limpinhos e comportados, como em comercial de margarina. Ao povo, de Mundo Real, faltavam dentes. Faltava estudo. Faltava o discurso arrumadinho e semanticamente perfeito. Faltava comprometimento social. Faltava paciência. Faltava saúde. Enfim, faltava classe e boa forma a esse povo, que não era digno de Horário Eleitoral ou de seus candidatos.
Não é fácil amar um povo longe das câmeras, do circo, e do photoshop. Por isso, era preciso criar um novo povo. Um povo, que até o povo real goste de ver na televisão. Um povo sofrido, de um sofrimento comovente, quase poético. Um povo miserável de uma miséria romântica. Um povo analfabeto, daquele analfabetismo catártico dos intelectualóides freirianos. Um povo que, mesmo dormindo nas ruas, tenha engajamento social e esperança no futuro. Um povo, que castigado pela seca, cavoque a terra árida com a confiança que só esse povo pré-fabricado é capaz de ter. Um povo que, doente e desassistido, esbanje sorrisos e otimismo. Um povo de sorrisos onde não faltem dentes. Um povo que trabalhe, não para seu sustento, mas para construir o futuro de uma Nação. Um povo de casa sempre limpinha, crianças arrumadinhas e fogão reluzente. Um povo de todas as cores e etnias, como rege a lei dos politicamente corretos. Um povo repleto de esperanças e onde não falte futuro. Um povo cheio de futuro, mesmo onde não há esperança. Um povo que sempre sorria, mesmo quando deveria chorar. Um povo que agradeça o que não recebeu. Que valorize quem não tem valor. Que comemore, como dádivas, todas as parcas migalhas recebidas e que sempre lhe foram de direito. Um povo digno de seus representantes em Horário Eleitoral.
Para um povo assim, tão perfeito, é preciso candidatos a altura. E, em Horário Eleitoral, eles existem. Perfeitos como outdoors de creme dental. Sempre tão sorridentes, em meio ao povo. Tão afeitos aos beijos e abraços. Como são afetivos nossos candidatos! Beijam mães, filhos, cachorros e até postes. Abraçam velhos, mendigos, maltrapilhos e corruptos! Corruptos abraçam-se sempre, mas a cada quatro anos é conveniente abraçar ao povo que os sustenta também. É o que ditam as regras dessa maratona quadrienal. E como são domésticos e caseiros esses candidatos. Todos sabem cozinhar um filezinho, churrasco ou um bacalhau de domingo. Cozinham, é bem verdade, com menos desenvoltura do que vendem ilusões, distribuem propinas ou emendas parlamentares. Mas a prática transforma amadores em profissionais e embusteiros em representantes eleitos pelo povo. Essa é a lógica e o objetivo de Horário Eleitoral.
É uma lástima que esse povo, e esses candidatos, só existam em Horário Eleitoral. Que sorte seria se, em Mundo Real, houvesse um povo minimante crítico ou conhecedor de seus diretos. Um povo que não aceitasse como benção, ou graça, o respeito a sua dignidade e seus direitos constitucionais. Um povo capaz de valorizar o caráter, a decência e a ética, como deveriam valorizar todos, principalmente seus candidatos. E candidatos que fossem capazes de respeitar a seu povo, como esse se apresenta. Sem cultura, dentes ou ideologias. Mas, nosso povo, não é capaz de fazer bonito em Horário Eleitoral, mas é gratamente capaz de digitar parcos números em uma urna eletrônica. Um povo desassistido de saúde, educação e segurança pública, e que assiste todo dia ao fantasioso mundo de Horário Eleitoral, onde até mesmo o povo e a realidade são uma grande obra de ficção. E na ficção, até a desgraça, o desrespeito e desfaçatez são coloridos e têm agradável trilha sonora.

domingo, 17 de agosto de 2014

Até as velhas bandeiras fugiam do Herdeiro da Pampa Pobre

O reino de Poliana recebe novamente a visita ilustre do Herdeiro da Pampa Pobre. Em mais uma maratona por Horário Eleitoral, nosso popular Herdeiro, luta para conquistar novamente o troféu Fio de Bigode. Bigode que o destemido Herdeiro já vira ser arrancado a unha, fio por fio, por cada pacata professora que cruzara seu caminho nos últimos quatro anos. Deveria ter seguido as lições que aprendera na escola e ter respeitado as professoras e valorizar a palavra empenhada. Quem diria que, as sempre pacientes educadoras, seriam tão intransigentes com algumas promessinhas tolas e vazias que jogara ao vento só para cativar sonhadores, pensa o Herdeiro da Pampa Pobre, com o lábio superior ardido e a consciência nada pesada.
Nosso digno líder há muito decidira cruzar os pagos de helicóptero para fugir dos pedágios e das péssimas condições de suas estradas. E só pousava em locais cercados por sua militância. Aprendera nesses anos que devia evitar, ao máximo, aglomerações populares de gente sem vínculo com seu clã. As vaias e xingamentos do povo o perseguiam, onde quer que estivesse, como praga de professora. Em seu próximo reinado lançaria um projeto de controle ideológico nas escolas. Essas professoras deviam estar fazendo alguma lavagem cerebral em nossas pobres criancinhas, só podia ser essa a explicação para a rejeição que o atingia nas ruas.
Rejeição que começava a preocupar a corte de Poliana que se entreolhava constrangida com a escassez de militantes e bandeirinhas no comício do Herdeiro da Pampa Pobre. Meia duzia de gatos pingados, e mal pingados, se espalhavam no local tentando fazer volume. Nem mesmo as centenas de mamadores das tetas do reino de Poliana estavam presentes no evento. E o povo, ah, o povo, esse passava bem longe para não ser visto em más companhias. Lição que se aprende em casa e, nas escolas. Malditas professoras! Que turminha mais rancorosa e vingativa. Não eram capazes de perdoar pequenas mentirinhas, típicas de Horário Eleitoral. E, ao que parece, o povo também não. Era preciso reverter esse cinzento cenário rapidamente, ou o endeusado alinhamento fisiológico ia pro atoleiro. Para isso, só restava a velha e infalível fórmula: mais mentiras coloridas em Horário Eleitoral. Precisavam colar em nosso líder a imagem de ter sido o único com a coragem histórica de retirar nossas rodovias das mãos capitalistas das empresas privadas, para afundá-las nas crateras da incompetência e inércia pública. Era preciso convencer o povão de que o pobre e sofredor Herdeiro recebera o reino no buraco e, com muito dinamismo, trabalho e habilidade, conseguira colocá-lo em um buraco melhor. Mais enfeitado, ao menos. Tomara que a fantasia e a ilusão, consigam, novamente, seduzir seu crédulo e sonhador povo. Pois, ao pobre Herdeiro, não restava mais nem um fio de bigode ou ideologia a rifar.

domingo, 10 de agosto de 2014

A desconexão de sentido nos discursos da Rainha Mãe


No grande reino do Gigante Adormecido, eram feitos os últimos preparativos para mais uma majestosa turnê a Horário Eleitoral. Em poucos dias, o povo adentraria novamente nesse festivo e fantasioso mundo, onde sonhos e ilusões alimentariam a toda gente.
Para enfrentar mais essa difícil maratona, a companheirada preparava a Rainha Mãe para as, cada vez mais temíveis, sabatinas e debates ao vivo. Na impossibilidade de usar seu novo método de fabricar pizzas - ter acesso prévio as perguntas e ao gabarito - só restava a Rainha Mãe estudar e ensaiar. E, tendo em vista as conhecidas dificuldades de nossa monarca suprema em discursos de improviso e entrevistas, seria necessário muito, muito estudo.
- Majestade! É fundamental que a senhora não se mostre, jamais, exaltada com o entrevistador. - aconselha, calmamente o marqueteiro oficial.
- Exaltada?! Ora, meu querido! Eu vou te falar uma coisa... tem um negócio que é importante... e importante, é preciso que se diga, é uma coisa que tem importância... - começa a Rainha Mãe, com sua característica fala professoral – Eu nunca... jamais... e em nenhum momento, me exalto! - conclui, com um rosnado.
- Sim, é claro magnânima. - contorna o outro, para escapulir da mordida - Mas, apenas para ilustrar, a senhora pode chamar seu interlocutor de “querido” sem lhe mostrar os dentes caninos. Prosseguindo, seria aconselhável, com base no histórico de seus discursos, que sua alteza evitasse as explanações sobre geografia.
- Você está dizendo isso por causa daquele pequeno deslize que cometi num discursinho bobo e sem importância para a Comunidade Internacional, não é? Eu sei que errei ao dizer que a Zona Franca de Manaus era a capital da Amazônia. É claro que eu, como Rainha Mãe, sei perfeitamente que a capital da Amazônia é Tocantins! - pausa para reflexão - Quero dizer... é o Pantanal! O Pantanal não... como é mesmo o nome? .... Vocês me entenderam, companheirada! Amazônia, Pantanal, são todos estados repletos de crocodilos Australianos!
- Nós entendemos Magnânima! - adula um dos companheiros, para interromper o raciocínio trensloucado.
- E é importante que se diga – continua a Rainha Mãe - do comprometimento de meu reinado com a questão ambiental. E a questão ambiental abrange o ambiente como um todo, e não somente o meio ambiente. Eu não me preocupo com só metade do ambiente, não! Eu me preocupo com o desmatamento dos crocodilos australianos do nosso Pantanal, mas também com o desmatamento das árvores das matas! Árvores plantadas pela natureza. Essa é uma consciência que eu tenho. E consciência é uma coisa que se cultiva, como as cebolas da floresta Amazônia.
- Certo. - continua, abobalhado, o adestrador de animais exóticos – Uma questão que deve se repetir nessa turnê, é a respeito dos 150 mil, em dinheiro, que a senhora guarda em casa.
- Olha! Eu vou te falar uma coisa... Eu guardo dinheiro embaixo do colchão sim! Quem, nesse reino, não tem 150 mil guardado debaixo do colchão? Eu te respondo: todo mundo tem! Todo mundo tem esse dinheirinho guardado pra dar prum filho tomar um sorvete, comprar um BigMac ou fazer uma viagenzinha. Nos tempos de hoje, não é seguro aplicar dinheiro na poupança. Não com essa política econômica que está em vigor. - pausa para reflexão – Quero dizer, nossa política econômica é segura e confiável, os bancos é que não são confiáveis. E tem também a inflação, que é importante destacar, é uma grande conquista de nosso reinado. Vocês me entenderam, né?
- Perfeitamente, alteza. - desvia-se o marqueteiro, mais perdido que o ministro da economia. - O próximo tema polêmico, e que deve fazer Oposição deitar e rolar, é a questão que envolve nossos companheiros e aliados na formulação de perguntas e gabarito de respostas na investigação dos rolos em nossa empresa pública de petróleo.
- Esse tema é muito relevante. E eu te digo que é relevante porque envolve a confluência de múltiplas, várias e inúmeras questões. Veja bem... Nossos companheiros...aliados...compadres, todo mundo sabe, não têm capacidade pra abastecer seus próprios carros. Não sabem sequer estacionar. A menos que fosse para estacionar em uma gorda teta pública, porque nisso são especialistas. Mas, voltando ao meu raciocínio, quem é que vai acreditar que esses meus energúmenos seriam capazes de formular uma só pergunta, de duas frases, sobre petróleo? É um absurdo! Ninguém! Repito e garanto: ninguém, em meu reinado entende bosta nenhuma de petróleo! Se entendêssemos de petróleo não teríamos afundado, em tão curto tempo, nossa maior empresa do ramo! - esclarece, enfática, nossa Rainha Mãe.
- Vamos mudar de tema. - anuncia o marqueteiro, a essas horas descabelado - E na questão religião... A senhora é uma pessoa que crê?
- Claro! Eu creio! Eu creio muito, sabe? Todas as noites eu leio a....a...aquele livro... aquele livro grosso que fala para quem crê...Como é mesmo o nome? Não é O Capital. Esse é outro bom livro. Eu creio muito nesse livro, também. Mas eu leio aquele outro... O Diário de Um Mago!... Não!..Bíblia! É, a Bíblia! Sim! Esse é o título do livro que leio toda noite. Só tinha me dado um branco agora, e esqueci o nome do tal livro. - esclarece a devotada e crédula rainha – Eu sempre respeitei e segui as leis e lições da Bíblia e de Deus. Quando eu, ainda jovem, fazia parte de um grupo terrorista, eu rezava muito. Toda noite, enquanto limpava minha arma e preparava os assaltos e sequestros do próximo dia, eu rezava. - emociona-se a Rainha Mãe, nostálgica – Eu pedia a Che, a Fidel, e até a Deus que nos protegesse. Eu sempre segui tudo que ditava a doutrina e a fé comunista...Quero dizer, a doutrina cristã! Eu sou cristã há muito, muito tempo, sabe? Quase quatro anos. E nesses quatro anos eu até falei com o Papa! E, quero te dizer, que o Papa é uma pessoa bem normal. Apesar de usar vestido, né? Mas sabe, que eu sempre defendi o direito dos homens de usarem vestidos. Somos defensores das liberdades e das minorias. Mas esse cara, o Papa, fala um portunhol igualzinho ao nosso. Até os Argentinos conseguem entender sem problemas! E esse negócio da globalização do nosso portunhol, só aconteceu graças a nossa política de expansão dos cabos de fibra ótica submarinos. Então, com isso, é possível concluir, que a fibra ótica tem um papel importante na divulgação do cristianismo, não é mesmo?
- Acho melhor darmos uma pausa para descanso. - declara o marqueteiro, confuso e exaurido.
- Eu só quero terminar esse assunto, para não perder minha linha de raciocínio.- interrompe, em seu conhecido estilo imperativo, a Rainha Mãe. - Para vocês terem uma ideia, os cabos de fibra ótico, que ligam nosso reino a Europa, são tão resistentes, que nem mesmo aquele negócio que aconteceu no Japão... Como é mesmo o nome? Aquilo que aconteceu em Fufugima? ... O Katrina! ... Não! O tsunami! Pois bem, nem o tsunami Katrina, que aconteceu no Japão, mais especificamente na fronteira com a Ucrânia, conseguiu romper nossa comunicação com a Europa. - pausa para reflexão – Claro, que eu sei que o Japão não fica mais na Europa. Ele passou a pertencer à Asia depois da Segunda Guerra, né? O mundo todo sabe disso. Mas o que está em debate nesse momento é nossa importância estratégica na resolução da crise no Oriente Médio... - prossegue nossa articulada rainha, em uma profusão de palavras desconexas e desprovidas de sentido, para uma plateia que, mesmo composta por seus assessores, companheiros e asseclas, não conseguia conter a estupefação e o tédio. Ao que parecia, essa turnê a Horário Eleitoral, prometia muito mais que os tradicionais shows pirotécnicos. Seria quase uma tragicômica peça de teatro. Sorte do povo, poder se divertir com essa gente que devia estar construindo o futuro desse reino e desse povo.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

Fala sério! A um juiz não é dado o direito de ser leviano


       Existe uma diferença, que não é sutil, entre ser polêmico e ser leviano. Um magistrado, pela posição que ocupa e principalmente pelo Poder ao qual representa, deveria ter clareza absoluta desses conceitos. O juiz Siro Darlan, atualmente na mídia por ter concedido habeas corpus aos black blocs recentemente presos, concedeu uma entrevista (endereço para acesso no final do post) onde superou a imagem de magistrado polêmico para flertar perigosamente com a estupidez e a irresponsabilidade. Antes de mais nada, quero deixar claro que minhas críticas, a seguir, não se devem, em absoluto, a sua decisão de conceder a liberdade aos acusados. Essa é matéria técnica, e deixo aos técnicos opinarem. Meus questionamentos dizem respeito as colocações, na minha opinião, irresponsáveis, de um representante do Poder Judiciário. Seguem dois trechos da entrevista (a entrevista inteira daria uma tese de doutorado) e minhas argumentações a respeito.
        “O Ministério Público é uma inutilidade. Ele é muito eficiente quando lhe interessa. Mas há situações em que o MP se omite. Hoje estamos com prisões superlotadas porque o MP é eficiente na repressão do povo pobre, do povo negro. 70% do sistema penitenciário do Rio de Janeiro está vinculado a crimes de drogas, o que efetivamente não tem nenhuma periculosidade. Vender droga ilícita é absolutamente igual ao camarada que vende cachaça. São drogas. Mas a nossa sociedade resolveu criminalizar a venda de determinadas drogas. E coincidentemente quem vende é a população mais pobre. Isso coincide com o interesse de exclusão social dessa população.”
         Vender droga ilícita não é, em nada, igual a vender cachaça. Primeiramente, porque a venda de drogas (maconha, cocaína, crack) é ilegal, e chama-se tráfico, coisa que um juiz deveria saber e, publicamente, condenar. Segundo, porque a venda de drogas, cachaça, cerveja ou whisky, ocorrem em contextos completamente diferentes. Como são igualmente diferentes seus efeitos orgânicos, sociais e (sim!) na criminalidade e violência. Coisa que qualquer idiota (que não fume maconha) sabe, mesmo os que vivem atrás de mesas, em gabinetes, ou bebericando Freixenet. E drogas são consideradas ilegais porque nossa sociedade, em algum momento, assim entendeu. E cabe a sociedade ditar as normas de conduta que entende como corretas. Normas essas, que nossos legisladores, eleitos por toda sociedade, traduzem em forma de leis. Assim funciona uma democracia representativa em um Estado Democrático de Direito. Aos juízes, cabe fazer cumprir as leis vigentes, elaboradas por nossos legisladores legitimamente eleitos, concordem com elas ou não. Como cabe a cada um de nós cidadãos seguir as mesmas leis, concordemos ou não com as mesmas. Em não concordando, resta a todos nós, cidadãos e magistrados, o legítimo direito a manifestação, a crítica e ao voto. Ou a disputar um cargo no legislativo. Mas, em nenhum momento, o direito a livre manifestação, dá a um magistrado, que não é um idiota ignorante, e que representa, acima de tudo, o Poder Judiciário, o direito de se posicionar publicamente como se um ignorante inconsequente fosse. Quando um magistrado chama o Ministério Público de inútil, é muito mais que uma reles ofensa de um cidadão qualquer. É uma afronta grave a seriedade de uma instituição, e ilustra o desrespeito desse senhor pela responsabilidade com o cargo que ocupa.  Gostaria de perguntar a esse senhor: a quem, em sua visão abrangente do mundo, interessa “a exclusão social dessa população mais pobre?” A sociedade? Ao MP? Ao Judiciário? Qualquer que seja a resposta, a mera insinuação de um representante do Judiciário de que existe o mais ínfimo interesse por parte de qualquer um que seja, sociedade, Ministério Público ou Judiciário, de discriminar pobres e negros, põe em questionamento a integridade moral e ética de todo o povo, mas fundamentalmente das instituições que devem garantir o direito de todos, sem distinção de cor, credo ou condição social. Não se trata, ressalto novamente, de um cidadão qualquer,  que em conversas entre intelectualóides de botequim, questiona a integridade de seu povo ou suas instituições. Trata-se, isso sim, de um magistrado, representante do Poder Judiciário, a criticar publicamente a moralidade e a retidão de toda a sociedade, mas fundamentalmente das instituições legitimamente instituídas para representá-la e defendê-la. Suas afirmações de que o MP é omisso em algumas circunstâncias, mas eficiente na repressão do povo pobre e dos negros, deixam transparecer a intensão de semear na população o descrédito e a revolta contra o MP e o próprio Judiciário (já que afirma que 70% dos presos não representam “nenhuma” periculosidade), além de, mais grave ainda, estimular a luta de classes, como suas próximas palavras deixam claro:
        “...se absolvo um pivete, um favelado que roubou, estuprou, a classe média reclama. Quando o mesmo acontece com o filho dela, lá vêm as justificativas. Dizem que o filho precisa de psicólogo, que está se descobrindo. Enfim, usam argumentos justos e que deveriam valer para todos, e não só para os filhos da classe média.”
            Mais um monte de imbecilidades, inconsistentes e infundamentadas, saídas da boca do – ainda, por respeito as instituições e suas importâncias - digno magistrado. Não são “argumentos justos” e não devem, jamais, “valer” para ninguém. São verdadeiros absurdos! Não têm qualquer fundamento estatístico, ou meramente técnico, as observações levianas desse senhor. Se um familiar meu ou seu (classe média ou alta) for condenado por estupro, eu - ou você - como familiar, assim como qualquer familiar pobre ou miserável, posso tentar desculpar ou defender os seus atos. Por amor, afeto ou lealdade. Se um familiar meu, classe média ou alta, ou de um pobre ou miserável, for condenado por estupro, a sociedade (classe baixa, média e alta) vai exigir e almejar sua condenação. A sociedade, independente de condição econômica, deseja a punição para criminosos. Essa é a lógica. Não a lógica distorcida, alienada e repulsiva desse juiz. A sociedade quer punição para os criminosos. Os seres, individuais, querem benevolência para os seus afetos. Fato normal ao ser humano. Para fazer com que as leis sejam aplicadas a todos, sem distinção, desconsiderando lealdades, afetos ou ideologias, é que existem os juízes. Quando juízes não sabem em que lugar se colocar, as instituições e a democracia estão em risco. As palavras e colocações públicas, simplistas, distorcidas e pueris do juiz Siro Darlan, só servem para por em dúvida a credibilidade do Judiciário. Ao ler posicionamentos tão tendenciosos, vindos de um magistrado, só nos resta questionar a capacidade desse senhor em aplicar as leis, por hora postas, a despeito de suas - as dele - convicções pessoais. Para nós, leigos, fica a incômoda impressão, que esse senhor julga conforme sua consciência, crenças, achismos e ideologias. Quero crer, apesar das evidências em contrário, que o faça como ditam as leis atualmente vigentes.
       Deste audacioso e polêmico magistrado, doutor Siro Darlan, que colocou publicamente em dúvida a integridade, a moral e a ética de seus colegas e do Poder Judiciário, espero a hombridade e a retidão de caráter para que leve até as últimas consequências as acusações veladas que faz, utilizando-se dos recursos que, tenho certeza, conhece e dispõe. Não sendo assim, lhe resta apenas a frouxidão de esfincteres para se manter no limbo dos subterfúgios de palavras mal ditas ou meio ditas em entrevistas desprovidas de bom senso e fundamentos. Que, no futuro, se mantenha polêmico e inconsequente, apenas nas reservadas conversinhas de botequim, regadas a drogas lícitas. Quando novamente ousar se manifestar em público, que o faça como um representante do Judiciário e honre o poder que representa e o povo que o remunera. Se não se achar capaz de suportar o peso dessa responsabilidade, a porta da rua é sempre um digno caminho a seguir. 

Íntegra da entrevista disponível em: