domingo, 21 de dezembro de 2014

O fantasma barbudo de Natais passados


Sentado em uma confortável poltrona da sala de estar de sua novíssima e milionária cobertura de veraneio, o Ilusionista admirava a árvore de Natal. Essas épocas de festas lhe causavam certa nostalgia. Ainda sentia saudades dos anos em que comandara Gigante Adormecido. O mais popular e adorado rei que esse reino já tivera, disso podia se orgulhar, pensava ele, bebericando seu caro whisky. Estar longe do trono não lhe tirara o mando do jogo, mas não era exatamente a mesma coisa. Carecia de certo glamour. O poder inebria e vicia quase tanto quanto os aperitivos que tanto apreciava. E, esta noite, já havia saboreado várias doses que o faziam sentir-se um tanto lânguido.
Observando o piscar das luzes da árvore, deteve-se na grande estrela posta bem no topo. Uma estrela mudara sua vida. Soubera no momento certo agarrar-se a ela para se fazer brilhar. Astúcia era outra de suas qualidades, refletia passando a mão no queixo para acariciar a barba que há alguns anos deixara de usar. Hábito de décadas que ainda não esquecera por completo. Meio hipnotizado pelo piscar cadenciado das luzes de Natal, percebe um movimento ao seu lado. Voltando-se, dá de cara com um sujeito barrigudo e barbudo que o olhava com interesse.
- Quem é você? - pergunta um pouco assustado, embora o homem lhe parecesse conhecido.
- Eu sou você no passado. Não me reconhece mais companheiro? - responde-lhe aquela estranha criatura, de barba negra e densa, em um tom rouco e característico que lhe soava bastante familiar.
- Não pode ser! Devo ter extrapolado minha cota de whisky. - responde o Ilusionista com idêntico timbre de voz.
- É normal. As duas coisas. Nós sempre exageramos no whysky, e você está muito diferente do que era há quase vinte anos. - afirma o barbudo, sentando-se a sua frente e acendendo um de seus charutos.
- Eu não uso mais essa barba e o branco cobriu meus cabelos. - continua o Ilusionista, tentando se acostumar a esdrúxula situação.
- Você deixou de usar muitas das velhas coisas, companheiro. Seus discursos de hoje quase me fazem enrubescer. - afirma o homem, servindo-se de uma dose de whisky. - E as companhias, então? Enquanto eu, preso no passado, esbravejo bravamente contra colloridos corruptos e oligarcas maranhenses, você, aqui, anda de braços com eles e praticamente lhes beija as mãos. É um pouco constrangedor para mim, confesso.
- Você ainda não conhece o poder. Em breve vai mudar de ideia, pode esperar. - afirma o Ilusinista, entre um gole e outro.
- Sabe o que mais me insulta? É ver você chamando essa atual oposiçãozinha mequetrefe de golpista. Oposição é o que eu faço! Conclamar minha militância fiel para ir as ruas pedir o impeachment de meu adversário corrupto. Bradar, todos os anos nos palanques, contra presidentes neoliberais. Articular a companheirada para votar contra todos os projetos dos donos do poder. Organizar invasão de terras, greves, passeatas! Isso sim é oposição! Não essa coisa que vocês têm hoje por aqui.
- Eram outros tempos, e outros os lados. - esclarece, servindo um pouco mais de bebida ao seu fantasma do passado.
- Os seus dois reinados foram mesmo surpreendentes, companheiro, devo admitir. Uma mescla de economia  neoliberal e populismo digna de aplausos. Quem diria! Uma surpresa até para mim. - afirma o barbudo, admirado. - Você está de parabéns.
- Eu criei e implantei o neoliberalismo populista! - gargalha o Ilusionista, jogando a cabeça para trás. - Impressionante para um reles metalúrgico e ex-sindicalista, não é mesmo Barba?
- Com toda certeza. Enquanto eu critico, aos berros, o assistencialismo e a compra de votos do povo pobre e ignorante com esmolas, você usa a companheirada para fazer terrorismo com os miseráveis em troca de votos. Inacreditável!
- É fácil para você criticar as armas que não dispõe. Quando conseguir colocar as mãos nelas, vai ver o quanto é fácil e lucrativo usá-las. Esmolas e ignorância andando juntas garantem nosso velho projeto de poder. - orgulha-se o Ilusionista.
- Você não acha isso um pouco imoral? - pergunta o barbudo, batendo as cinzas do charuto.
- Moral é uma questão de perspectiva, Barba. Depende de que lado do poder se está, e de que lado se pretende permanecer. Não existe moral do lado de cá. - ensina o mestre.
- Nunca existiu. Apenas nos discursos, não é mesmo companheiro? Mas eu, ao menos, disfarçava melhor. - acrescenta o outro, tragando o charuto. - Mas me diga, não houve baixas em nossa militância ferrenha? Todos aqueles que acreditavam em nossa ética, coerência e o tal ideal socialista?
- Muitos se perderam pelo caminho. - responde o Ilusionista dando de ombros e servindo-os de mais uma dose. - Mas já não eram mais necessários. Para cada idealista desiludido temos dúzias de pobres cabresteadamente convertidos, agora.
- Vejo que ainda há muitos ditos intelectuais que continuam seguindo cegamente nossa estrela. Como isso é possível com toda a fraude que demonstramos ser? - questiona o outro, ávido por aprender com seu mestre as lições que usaria na vida.
- Nossa ideologia, companheiro, é como uma religião. É muito trabalhoso questioná-la, e seria uma temeridade abandoná-la. Sem ela, ficaríamos sozinhos com nossos erros e pecados, sem ninguém a quem culpar. - filosofa o eterno messias das universidades, enrolando um pouco mais a língua pelo efeito da bebida.
Pensativo, o barbudo apaga seu charuto e ergue-se lentamente, anunciando:
- Já é quase meia noite. É hora de eu partir. Um novo ano se aproxima e tenho várias reuniões com sindicalistas e movimentos sociais. Estamos organizando manifestações de rua pedindo a saída do rei Fernando II.
- Golpista! - gargalha o Ilusionista.
- Nos meus tempos, chamamos isso de lutas populares e liberdade de expressão das minorias! - responde o outro, também rindo.
- Você vai chamar essas arruaças de “golpe da elite branca” muito em breve. Espere só mais alguns anos. - afirma o Ilusionista, piscando um olho, sorridente e matreiro.
- Foi um prazer conhecê-lo, companheiro! - despede-se o barbudo, dirigindo-se para a escuridão.
- Foi interessante revê-lo, Barba. - responde o Ilusionista, vendo-o desparecer como fumaça.
Ainda um pouco aturdido pela estranha experiência que vivenciara, dirige-se um tanto trôpego para árvore de Natal. A estrela no topo da árvore pendia para o lado, quase caindo. Ergue os braços e a recoloca no lugar. Sente uma umidade pegajosa nos dedos. Um líquido negro e viscoso lambuzava suas mãos. Petróleo! - constata ele preocupado. - “Melhor eu ir dormir, antes que fantasmas do futuro resolvam me visitar hoje também!” - resmunga o homem, assustado, correndo para o quarto sem olhar para trás.


domingo, 14 de dezembro de 2014

Uns mais iguais que outros


Poliana e seus companheiros estavam orgulhosos de seu mais fiel amigo e parceiro no parlamento. Quanta satisfação sentiam por terem andado de braços dados e carregado nos ombros essa ilustre estrela que orgulhava a toda sua espécie. De mais gente assim é que precisávamos! Gente que sabia respeitar o bom e velho lema: é dando que se recebe. Uma secular máxima dos prostíbulos e parlamentos. Essa estrela reluzente, quase um cidadão do reino de Poliana - dadas as sólidas amizades e trocas de favores que por aqui negociava - se despontava como uma das mais importantes figuras da constelação da grande Rainha Mãe de Gigante Adormecido. Depois de presidir o Parlamento, coubera ao companheiro Maracutaia chefiar o seleto grupo da CPI (Confecção de Pizzas Indigestas). E com que desenvoltura desempenhara a tarefa para qual fora escolhido a dedo. Saíra-se um pizzaiolo de primeira. Entraria para o guines como o único pizzaiolo capaz de confeccionar uma complicada e elaborada pizza, tamanho gigante, sem jamais abandonar a posição de cócoras. Só ele seria capaz de tal feito. Poucos teriam tal envergadura. É certo que a ausência de coluna vertebral lhe favorecia, mas é preciso reconhecer os méritos dos invertebrados.
Os servos da Rainha Mãe e seus seguidores aplaudiam, como sempre de joelhos, a capacidade inigualável desse curioso espécime mutante de, como um morcego, tornar-se cego à luz dos acontecimentos escrachados e revoltantemente públicos; escorregadio como um peixe, no momento de responsabilizar os responsáveis ou coniventes com a roubalheira do patrimônio do povo; e invertebrado como uma lombriga, na hora de rastejar subserviente aos interesses de seus padrinhos. Um companheiro exemplar para seu clã. Uma vergonha para qualquer povo que almeje andar com a espinha ereta. Mas vergonha é característica dos que tem cerne, dignidade e caráter, e os mutantes companheiros da realeza sequer enrubescem com suas indignidades. Vestem-se de vermelho apenas na hora de venderem suas ideologias. Socialismo para eles é isso: distribuir bilhões de recursos públicos entre o seu – o deles – seleto grupo social, estatizar a corrupção e tornar todo o resto do povo miseravelmente igual na desgraça. Mas, mesmo no socialismo sonhado por essa turma, o todo jamais será igual. Eles, apesar de todo poder, estarão mais perto do chão que seu povo, pois, desprovidos de espinha vertebral, sempre rastejarão como os vermes vermelhos, verdadeiros parasitas que são e eternamente serão.

sábado, 6 de dezembro de 2014

O Bordel da Rainha Mãe


Em Gigante Adormecido, a Rainha Mãe estava cada vez mais saudosa de Horário Eleitoral. Que falta fazia seu marqueteiro de campanha na equipe de governo. Até Oposição era mais doce e comportadinha em Horário Eleitoral. Mal terminara a temporada de ilusões e pirotecnia, e o povo já sentia na pele os aumentos de combustível, energia elétrica e juros. As manchetes mostravam que o PIB era pífio e a roubalheira nos engenhosos esquemas de corrupção era estratosférica. A inflação batia no teto e ameaçava desabar na cabeça dos seus eleitores, principalmente os mais pobres. E até sua adorada base aliada, mostrava as garrinhas para abocanhar mais e mais carguinhos. Os dias finais de seu reinado anunciavam um novo reinado ainda mais melancólico, dramático e recheado de escândalos.
E para encerrar esse velho reinado, nada como um último açoite na legislação. Se nossa Rainha, faxineira e gestora criteriosa, não fora capaz de cumprir a lei e cometera crime de responsabilidade, então muda-se a lei e se dá anistia a sua alteza! Tudo perfeitamente ético, aceitável e transparente, defendem seus apoiadores – nem um pouco rubros de constrangimento. E se o povo não concordar com a manobra afrontosa à legislação? O povo não foi convidado a se manifestar. É preciso que se entenda, na atual democracia de cooptação, só é legítimo o direito de pensar e gritar daqueles cooptados pela corte da rainha. O povo que se achar ofendido será mantido do lado de fora da antigamente chamada Casa do Povo, transformada em casa de tolerância financiada com recursos públicos. Pelo menos esse mérito ninguém arrancaria de nossa monarca. Conseguira, com a sutileza e traquejo que lhe eram característicos, anunciar no Diário Oficial quanto valia cada uma de suas concubinas no parlamento. Setecentos e quarenta e oito mil por uma única noitada. Mas que noitada! Dezoito horas ininterruptas de trabalho árduo e cansativo. E desempenharam seus serviços com o costumeiro companheirismo e dedicação, mesmo com todo barulho desrespeitoso dos poucos gatos pingados de Oposição. Os parlamentares cooptados pelo poder, sabiam pelo que e por quanto se vendiam. Agora, o povo também sabe quanto cobra, cada uma das cortesãs da rainha no parlamento, para ficarem de cócoras por uma noite, e de joelhos pelos próximos quatro anos. Pelo menos não se vendiam por poucos trocados. Mas, trocados era o máximo que valiam as ilustres messalinas da Rainha Mãe.

sábado, 29 de novembro de 2014

Quase segundo tempo de partida


Poliana, enfim, respirava aliviada. Justiça fora feita. Nossa rainha estava com a alma e a coroa lavadas. A coroa agora era definitivamente sua, ninguém lhe tomaria. Poderia governar soberana, sem o peso da espada de Justiça em seu pescoço. Quantas noites insones por conta das trapalhadas de Justiça – lastimava a rainha. Eta mulherzinha confusa, temperamental e cheia de fricotes! Poliana esperava não ter nunca mais de se confrontar com essa fulana novamente. Esses últimos meses já custaram muito caro para nossa injustiçada rainha. Melhor andar na linha de agora em diante e não correr nenhum risco de encarar novamente essa bruaca.
Mas verdade seja dita, o medo perene da degola fizera Poliana acertar o passo nesses últimos tempos. Sua corte andava mais comedida e nenhum escândalo abalara esse seu segundo reinado. A lâmina de Justiça no pescoço da monarca, fizera com que todos seus vassalos fossem mais cuidadosos com a coisa pública. Até os buracos no asfalto, marca registrada de seu reinado e negligenciados por quatro anos, passaram a ser vistos como problemas de interesse público e combatidos constante e atabalhoadamente nos últimos tempos. Demasiadamente tarde, é verdade. Os buracos se proliferaram em velocidade diretamente proporcional a morosidade de sua alteza em se preocupar com o problema. Agora não havia piche ou tempo hábil que desse conta do dilema. Ao que parece, nossa monarca aprendera, em poucos meses de enroscos com Justiça, que seu povo precisava de uma gestora capaz de atender as necessidades coletivas, não apenas de uma simplória rainha apta a servir linguicinhas em churrascos de periferia. O populismo simplório serve para a manutenção no poder, mas não servirá jamais para colocar uma rainha entre os que fazem ou fizeram a verdadeira diferença nesse reino. E Poliana almejava voos maiores. Sua alteza é, e sempre será, imbatível nos discursos esganiçados, lacrimosos, e na hora de bater uma bolinha e servir pão com linguiça a seus súditos. Nos próximos dois anos tinha a obrigação moral de mostrar que é de fato digna do apreço e dos votos de seu povo. Precisava mostrar competência e zelo pelo dinheiro dos contribuintes. Talvez fosse tarde demais, o tempo se anunciava curto, acreditavam alguns. Nesse segundo tempo de partida, precisaria fazer suas escolhas e tomar partido, mesmo que partindo o coração estrelado de seu clã. Mas Poliana, ninguém duvida, tinha visão de longo alcance. Pensava no futuro e não se deixava dominar por doutrinas ou idealismos fajutos. Sabia a que viera e quem lhe servia. Não pestanejaria na hora de jogar para escanteio aqueles que não lhe tinham serventia. Era hora da companheirada aprender a jogar. A dona da bola e do campo era Poliana. Quem não aceitasse as regras, ou o resultado, que fosse esfriar a cabeça no vestiário. Um emocionante segundo tempo se anunciava. Só uma certeza se consolidara: quem não está com Poliana, está fora do jogo ou é adversário. E, ao que tudo indica, a cor da camisa teria apenas poucas pinceladas de vermelho. 

sábado, 22 de novembro de 2014

Um país de milhões


O velho aguardava pacientemente pelo troco do pagamento do jornal do dia. Recebia, nas mãos enrugadas e já um tanto trêmulas, as poucas moedas. Caminhando em direção ao banco da praça, remexia pensativamente as moedas no bolso. Para ele, assim como para a maioria de seu povo, o troco vinha em moedas e cédulas de pequeno valor. Mas não era assim para todos, descobria-se a cada dia nas manchetes dos jornais. Somos um país rico, muito mais rico do que sonhava seu povo. Um país onde milhão era troco. Gorjeta de estafeta. O mesmo rico país onde 50 milhões de pessoas dependem de esmolas assistênciais para sobreviver. O país dos milhões. Milhões de incongruências. De uma corrupção tão assombrosa que conseguia manter na inércia milhões de brasileiros que, acostumados com troco pequeno, não conseguiam assimilar tantos zeros que lhes foram roubados. Um povo que sequer tinha a clareza de que todo esse dinheiro era seu. Era só dinheiro público, e o que é público não é de ninguém, acredita boa parte dos brasileiros, para sorte dos larápios. Quem não se acha dono, jamais se sentirá roubado. Essa é a lógica simples que alimenta e permite que os piratas do Estado atuem com a certeza da impunidade. O que não é de ninguém é deles, assim comprovam os noticiários dos jornais.
Sentado no banco da praça, o velho observava a imensa bandeira verde e amarela que tremulava tranquila, ao sabor do vento. Intranquilos deviam estar muitos dos saqueadores da pátria, que deviam ter seus futuros conduzidos ao sabor da justiça. Essa era a esperança do povo. É o que se ouvia nas ruas, nos bares, no jogo de bocha, na fila do mercadinho a espera do troco. Era o que esperava esse velho, que já não tinha muito mais tempo para esperar. Ainda tinha esperanças. Sempre tivera, suspira o velho. Mas esperar, por vezes cansa e desanima. Sabia-se agora que éramos um país rico. Restava, agora, nos tornarmos um país decente. A riqueza se faz. A decência se conquista. Tomara que um dia, saibamos valorizar as conquistas e a decência com as equivalentes cifras morais com que se distribuiu, por anos, milhões de gorjetas aos lavadores de dinheiro sujo. Tomara que não demore demais. A primavera estava chegando ao fim, e o verão era curto. A vida e o tempo ensinaram a esse velho que o outono pode ser sombrio, e o inverno pode sempre ser o último. E ainda queria aplaudir a decência em seu amado país, ao menos uma vez em sua vida. Esperava poder saborear com prazer, o gostinho de dar o troco, sorri o velho, travesso e esperançoso, abrindo as páginas de esporte do jornal.

sábado, 15 de novembro de 2014

Onde uma mão lava a outra, várias mãos lavá-se a jato


Em Gigante Adormecido, as coisas, ao que pareciam, jamais seriam as mesmas. Enquanto o mercado financeiro dava mostras de impaciência e descrédito com os rumos da política econômica atual, nossa Rainha Mãe adiava a hora de anunciar um nome para dirigir a economia do reino. Contrariando os evidentes sinais de alerta do mercado, fora visitar a terra dos cangurus e coalas. Quem sabe traria um ornitorrinco para chefiar essa área vital, já que os jumentos que a cercavam pareciam quase tão empacados na economia quanto nossa matriarca.
E se o meio econômico estava inseguro, o meio político estava em polvorosa. Vários peixes graúdos haviam sido presos em processo de investigação de corrupção na maior Estatal de Gigante Adormecido. Tomara que peixes não tenham língua, torcem muitos agentes públicos, pouco entendidos em biologia, mas experts em trambicagem e colecionadores de propinas. Dos ductos dessa antiga potência do petróleo, vazava a cada dia, mais sujeira e imundice. À polícia cabia a difícil tarefa de identificar todas as mãos sujas de corrupção. Pelo ritmo em que andavam as investigações, faltariam algemas para tantas mãos. Aqueles que há poucas décadas bradavam contra a privatização dessa importante estatal petroleira, conseguiram, em uma só década, promover uma verdadeira piratização dos cofres da empresa. O petróleo já não é mais nosso. A conta das propinas e da corrupção continua sendo, é claro.
Os próximos dias e semanas, prometiam ser de inquietude e aflição para muita gente, incluindo nossos ilustres políticos. Os que nunca dormiam de touca, de agora em diante precisariam dormir vestidos. Com roupas confortáveis, e sem cintos ou cadarços (mocassins pareciam a escolha mais acertada pelas normas da polícia). Afinal, nenhum deles queria correr o risco de ser conduzido ao presídio, antes do amanhecer, vestindo apenas cuecas. A preocupação com o decoro é uma conhecida marca dessa gente. Cuecas! Ah, as cuecas! Que saudades dos tempos em que cuecas recheadas de propinas eram o escândalo maior a envergonhar essa Nação. Se não evoluímos na economia, evoluímos, e muito, na corrupção. Não haveriam cuecas suficientes no mundo que conseguissem albergar tanto dinheiro roubado nesse peculiar reino, de corruptos tão ousados e de um povo tão convenientemente servil. Que esperemos todos pelos próximos capítulos, não da novela - antigo ópio do povo - mas das páginas de política, onde quem reinava eram a polícia e os piratas vermelhos do dinheiro público.

domingo, 9 de novembro de 2014

Oposição renasce dos votos


Enfim, um milagre! Na verdade, milhares deles, chamados votos, fizeram renascer das cinzas a múmia decrépita e sonolenta que há anos hibernava em berço esplêndido. Oposição finalmente acordara! Se mexia. Respirava. Até bradava! E com que força e ânimo bradava. Um fato cientificamente surpreendente que, após 12 anos em estágio vegetativo, conseguisse se movimentar e se articular com razoável coordenação. O povo mal conseguia acreditar em tal feito. Nem se lembrava que Oposição ainda vivia. Afinal, o povo só conhecera oposição vestida de vermelho e com estrelas nos olhos. Situação estava aturdida. Democracia sorria satisfeita, pois Oposição viva e ativa faria bem a todos. Ao povo, e principalmente à Democracia.
E com que ímpeto e fôlego adentrava Oposição em campo. Os comatosos anos de pasmaceira, negligência e omissão, pareciam ter, de fato, ficado no passado. Oposição exigia ética e respeito ao dinheiro dos contribuintes. Defendia a moralidade em Gigante Adormecido e o combate intransigente a corrupção e a punição de corruptos. E o respeito a Democracia. Gritava, como gritaram em outros remotos tempos, companheiros e estrelas de primeira grandeza, contra a manipulação traiçoeira e imoral das pessoas menos favorecidas de futuros e esperanças e, necessariamente assistidas por benefícios assistenciais. Criticava com ardor e legitimidade, o incentivo asqueroso à luta de classes, etnias e convicções. Prometia lutar pela liberdade de imprensa e a transparência com a coisa pública. Defendia a autonomia dos poderes legitimados e instituídos.
Uma Oposição golpista, é claro! Pregar um reino onde corruptos sejam investigados e condenados. Onde pobres tenham estudo e emprego e não necessitem de programas assistenciais. E onde todos, sem distinção, sejam cidadãos iguais, de fato e de direito, sendo eles pobres, negros, brancos, sulistas, nordestinos, índios, transexuais, homossexuais, ateus, crentes, católicos, analfabetos ou doutores, é puro idealismo golpista. E capitalista! Não existe justiça social sem confronto e luta de classes. Sem apartheid, ódio e intolerância. Sem nós, contra eles. Sem bons, contra os maus. Assim nos ensinou a última jornada à Horário Eleitoral. Cabe a renovada Oposição mostrar o contrário.
Que Oposição saiba trilhar um caminho diferente. Que não abandone o discurso da ética em troca de poucos parlamentares favores. Os milhares de opositores, que hoje surgem em Gigante Adormecido, que não se voltem contra os desfavorecidos, que por necessidades diárias e urgentes, não podem abdicar do assistencialismo cabresteiro, mas que serão sempre cidadãos dessa nossa pátria. Pode-se questionar, suas consciências na hora do voto, mas sem esquecer que a quem não é dada a dignidade da autonomia e subsistência, não é coerente ou justo se cobrar ideologias e consciência cívica. Ideologias e condutas morais e éticas devem ser cobradas de nossos parlamentares, bem alimentados e remunerados. E que mesmo assim, sendo de Situação ou Oposição, se vendem por imorais bolsas de apadrinhamentos, mensalinhos ou mensalões. Que essa Oposição, que ora surge, traga algum alento e crédito aos milhões de cidadãos que não compactuam com a imoralidade e frouxidão de caráter de seus governantes. Que seja forte, destemida, combativa e digna da maioria do povo dessa terra. E que os represente. Assim espera Democracia.

sábado, 1 de novembro de 2014

A democrática dança dos palanques no reino de Poliana


Enfim, terminara a turnê a Horário Eleitoral. Entre difamados e ofendidos, salvaram-se todos, afinal. Vencera a democracia. Mas, no reino de Poliana, dificilmente as coisas seriam como antes. Durante as últimas semanas, a confusão tomara conta da sólida coligação que suportava nossa rainha. Os súditos, pouco conhecedores dos submundos da política, já não entendiam mais nada. Era um tal de corre de um palanque, pula em outro palanque. Larga uma bandeira, abana outra bandeira. Tinha gente que vestia uma camisa até as 18 horas, para cuspir de ódio e asco na mesma camisa todo final de tarde e até a manhã seguinte. Os bobos da corte, tradicionalmente apalermados, se dividiam na difícil tarefa de bajular Poliana, para logo em seguida, se juntar a velhos adversários de sua alteza. Um verdadeiro disparate! Mas, em tempos de disputa por mais poder e muitos carguinhos, tudo é permitido nessa terra. Da prostituição de convicções à troca e venda de favores. Coisas que só quem é do ramo entende. O povo, ignorante na arte, assistia a tudo perplexo.
Até os servos de carreira do castelo de Poliana, aqueles que não estavam alinhados ideologicamente com a rainha e seus aliados, acostumados a sofrer por anos com as perseguições da corte, estavam empolgados com essa democrática onda que tomara conta da corte e da rainha. Acreditavam que nesse clima tão tolerante, de agora em diante, seria permitido aos servos reais terem opinião própria também. Poderiam, quem sabe, discordar, sem medo de perder a cabeça ou ser jogado aos calabouços por anos. Quem sabe, aqueles que opinassem, discordassem ou criticassem, fossem, daqui para frente, vistos apenas como cidadãos com capacidade de raciocínio e posicionamentos, e não asquerosos infiltrados de Oposição. Àqueles que nutrem essa esperança, Poliana, seus bobos e a velha e boa política, ensinam: Horário Eleitoral terminou, minha gente! Confronto de ideias, opiniões e divergências, não serão mais tolerados. Quem, por algum minuto, acreditou que isso seria possível, deve ter acreditado em todas as mentira proferidas na televisão. Era só política em tempos de pleito, meu povo! Não sejam estúpidos! Não há lugar para sonhadores e crédulos nessa política e nesse reino. Aos discordantes, como sempre fora, a guilhotina. E aos discordantes dentro da própria corte da rainha? Bem, isso, o tempo dirá. Agora era hora de comemorar a vitória. E, por estranho que pareça, justo nossa monarca Poliana, alinhadíssima com a novamente entronada Rainha Mãe, talvez tenha saído desse característico período da história democrática do reino, como a maior perdedora entre os ganhadores. Ganhar perdendo, deve ensinar uma nova lição a nossa poderosa e carismática rainha. Esperamos todos, que a faça crescer e amadurecer um pouco mais. Como amadurece, a cada dia, nossa peculiar democracia

domingo, 26 de outubro de 2014

Cara a cara com os indecisos


Nos embates cara a cara, nossa Rainha Mãe nadou de braçada. Soube mostrar a que veio, apresentar propostas e aniquilou o adversário, representante da elite branca e reacionária. Mas, pela margem de erro, pode não ter sido bem assim. Com a palavra: os indecisos.
Rainha-candidata, o que a senhora pretende fazer para combater a corrupção em nosso reino?
- Olha minha querida, é preciso que se diga que nunca se combateu tanto a corrupção como em meu reinado. E por que se combateu a corrupção? Porque eu permiti. Eu dei a polícia, ao Ministério Público e a Justiça a autonomia para investigar e punir. Coisa que não acontecia antes. Antes, essa gente toda obedecia e abanavam os rabinhos àquelas aves bicudas de Oposição.
- Mas, não são muitos os escândalos de corrupção em seu reinado aparecendo nas manchetes, rainha?
- Eram muito mais frequentes os roubos de dinheiro público nos tempos bicudos. O meu reinado, hoje, é vitima de uma Imprensa Livre golpista, que me persegue. E me persegue por que eu permito. Eu respeito Imprensa Livre e não persigo jornalistas. Sou democrática! Pretendo, apenas, processar essa gente, já que o paredon não foi, ainda, instituído por aqui. Coisas dessa tal Democracia, se é que cê me intende.
- E quanto ao desemprego, rainha? O que a senhora tem a dizer?
- No que se refere ao desemprego, é preciso que se diga, e é preciso que se tenha muita cautela em dizer e em pensar. Praticamente não há desemprego em meu reinado. Aliás, eu quero te dizer, que estamos muito próximos do pleno emprego. No governo anterior, não no último, no anterior ao último que, aliás, foi sempre uma maravilha... No antepenúltimo governo, o dos elitistas bicudos, haviam 11 milhões de desempregados. Nós acabamos com isso. Criamos milhares de empregos só em cargos de confiança em órgão públicos e Estatais com meu projeto de PAC – Programa de Acomodação da Companheirada, que todos vocês conhecem. E são mais de 50 milhões de pessoas que recebem bolsas assistenciais e que deixaram as estatísticas de desempregados. Somos, com toda certeza, o reinado que mais manipulou as estatísticas, gerando empregos.
- E a inflação atual, candidata, que dizem estar mais elevada que em anos anteriores?
- A inflação está controladíssima! Quem entregou o reinado com uma inflação muito maior do que recebeu foi Oposição. Arrancaram com 900% e acabaram com 12%. Um descontrole absurdo!
- Mas 900 é maior do que 12, rainha.
- É maior, é? Desculpe, eu não sou muito boa em matemática e não entendo nada de economia. Mas tenho certeza que os bicudos são muito piores que eu. Eles espancam mulheres, dirigem embriagados e assam criancinhas no café da manhã.
- E por que construir um porto em Cuba, rainha, quando temos tantos problemas de infraestrutura aqui em nosso reino?
- Ao financiar um porto lá longe, em Cuba, geramos muitos empregos, já que as construtoras eram nacionais.
- Mas não seria melhor investir todo esse nosso dinheiro na construção de portos em nosso território e gerando os mesmos empregos em nosso reino?
- Você diz isso, minha querida, por que não conhece o PRONATEC, Programa Nacional de Tecnologia Exportada à Cuba. As obras são financiados por vocês contribuintes. Executada por grandes construtoras parceiras da realeza e que recebem no pagamento essa moedinha nacional criada pelos bicudos. E vocês vão receber essa fortuna de volta, se é que vai voltar, daqui há 25 anos, na internacionalmente conhecida e sólida moeda castrista. Como é mesmo o nome da moeda? Chumbo? Não, desculpe, não é chumbo, é o peso cubano, moeda muito forte e estável. O mercado internacional tem muito apreço por essa moeda. Vocês, indecisos, deviam conhecer o porto que construímos. É uma belezura. Moderníssimo. Um dia, talvez, possamos ter algo parecido aqui também.
- E para educação rainha, de onde tirar recursos?
- Do pré-sal, é claro. Do pré-sal extrairemos dinheiro para saúde, educação e tudo mais que couber nesse buraco imenso.
- Mas o pré-sal, rainha, só deve produzir petróleo daqui uma década, ou mais. Como sobreviverão a saúde e a educação até lá?
- Você está mal informado, meu querido, do pré-sal já jorra petróleo. Cê não se lembra do meu antecessor no trono, o Ilusionista, com as mãos sujas de petróleo do pré-sal? - pausa para reflexão - Bem, talvez fosse só sujeira do petrolão, mas isso não vem ao caso, queridinho.
- E rainha, o que a senhora tem a propor para mim, que tenho 50 anos, sou formada em economia, estou desempregada e não consigo colocação no mercado de trabalho?
- Olha, eu quero te dizer, que nós temos vários projetos para pessoas com o seu perfil. Temos cursinhos rápidos e até cursos profissionalizantes. Cê pode fazer um curso de solda ou corte costura, por exemplo. Estimulamos cursos de artesanato onde cê vai aprender a fazer bordados e fuxicos, e poderá confeccionar, com seu próprio esforço, seus panos de prato.
- Mas eu sou economista, rainha. Fiz faculdade e pós-graduação. Já tenho qualificação, eu só quero trabalhar na minha área. - retruca a impertinente indecisa.
- Olha aqui queridinha, vou te dizer uma coisa, se ocê não quer se esforçar e aprender novas tecnologias, não vai a lugar nenhum. - irrita-se a Rainha Mãe, rosnando para a indecisa. Mas, mesmo assim, você pode se inscrever em nossas bolsas assistenciais que empregam cada vez mais gente, e ficará empregada pelo resto da vida.
        Os eleitores indecisos, entraram indecisos e saíram atordoados. Esperavam que com mais quatro anos, a Rainha Mãe conseguisse se conectar a realidade e organizar melhor, não apenas o grande reino de Gigante Adormecido, mas seus próprios neurônios reais.



sábado, 18 de outubro de 2014

Medicina e hipocrisia


O jovem médico percorria os corredores azulejados, a essa altura da madrugada, silenciosos. Chega ao posto de enfermagem da unidade de internação hospitalar, pega uma das pastas e senta-se para analisá-la. Acabara de atender um idoso internado, ansioso e intranquilo, que não sentia-se confortável por estar longe de casa e da família. A escuridão da noite, a angústia da doença e o ambiente impessoal, frio e asséptico dos hospitais, costumavam causar aflição aos pacientes internados. Sentimentos parecidos corriam nas veias dos médicos e profissionais de saúde também. Mas era melhor que ninguém soubesse disso. E essa gente de branco, que vagava pelos quartos e corredores, na calada da noite, sabia bem dissimular suas angustias e sentimentos. Aprenderam nos bancos escolares. Era, afinal, o que se esperava deles.
Esfregando os olhos cansados, o jovem faz uma varredura rápida nos registros da história e da clínica do paciente recém avaliado. Parecia ser, realmente, apenas ansiedade e angústia de um idoso que estava internado, longe da família e de seu lar. Chamados e sintomas corriqueiros em uma madrugada de domingo, pensa o jovem médico, passando mais uma vez as mãos nos olhos. Mais de 48 horas de plantão sem dormir, sempre cobravam seu preço, mesmo aos mais jovens. Assumira o plantão de um colega, por isso faria tantas horas ininterruptas. Fazia isso por dinheiro, acreditava a maioria. Na realidade, assumira esse plantão porque o colega médico, bem mais velho, tinha a formatura de um dos seus filhos. E se tem coisa que um médico, mesmo os mais jovens, aprende desde cedo a valorizar, são os poucos e pequenos momentos com a família. Esses pequenos eventos valiam mais que qualquer dinheiro, e só quem já tivera de abdicar de tantos desses ao longo da formação e da vida profissional, sabia dar o seu devido valor. Para os que olhavam de fora, era só ânsia por dinheiro de uma gente que afinal, não é dada a sentimentos, já que pouco podem ou devem demonstrar. Ossos, um tanto duros, do ofício, pensa o médico fechando a pasta a sua frente.
Olhando um jornal displicentemente esquecido na mesa próxima, lê as manchetes de mais um escândalo milionário de corrupção e desvios de verbas públicas em uma grande Estatal do país. Um país onde faltavam recursos, equipamentos, exames e materiais básicos em hospitais públicos, como esse grande hospital onde hoje fazia plantão. O mesmo país onde se via doentes amontoados em macas de emergências lotadas ou esperando há meses por exames diagnósticos nos postos de saúde. Um país que o fazia, como médico, perder todo dia. Que o fazia perder pacientes para um câncer tardiamente diagnosticado. Perder dignidade ao ter de mendigar um leito de internação em UTI, angustiantemente necessário, mas inadmissivelmente indisponível. Que o fazia perder a paciência, por não ter um medicamento necessário e vital ao tratamento de um de seus pacientes. Que o fazia, a cada dia, perder a esperança e pensar em desistir.
Por ser jovem e, ainda, idealista, sempre acreditara que podia ser parte da solução, da mudança e da melhora do sistema público de saúde para seu povo. Mas, pelo que ouvia nos atuais discursos e nas posturas dos políticos - verdadeiros responsáveis pelas necessárias melhorias no SUS - ele era apenas uma parte asquerosa do problema. Não era suficientemente humano, diziam os discursos raivosos. Não gostava de atender os pobres. Não tinha amor ou apreço pelo povo. O seu povo! Era um mercenário. Apenas isso. E mercenários mereciam desprezo em qualquer sociedade, talvez mais que os corruptos. Entre os corruptos que roubavam bilhões que poderiam salvar vidas em diagnósticos e tratamentos, e esse jovem médico acusado de mercenário, melhor crucificar quem está mais próximo. E como são insensíveis a dor e ao sofrimento, os médicos, mesmo os jovens, suportam o linchamento coletivo e público. Nisso todos concordam ou ao menos se omitem.
Esse jovem médico não serve para seu país, à saúde pública, ao governo ou ao povo brasileiro, como não servem, ou serviram, os médicos mais velhos. Deve ser isolado e combatido, feito praga. Outros médicos, melhores e mais humanos, vieram e virão, de fora, para atender, com o devido zelo e respeito, ao seu - ao nosso - povo. Sem recursos, exames, leitos ou estrutura, tomara sejam suficientemente insensíveis, “os Mais Humanos” médicos importados. Pela saúde mental dos profissionais estrangeiros, torceremos, os mercenários, que eles consigam trilhar esse caminho de descaso, desleixo, fracassos e corrupção, sem perder a ternura jamais - torce também, o jovem insensível e desacreditado médico nacional. Melhor mesmo desistir, largar de mão e seguir outro caminho, constata o jovem médico mercenário. Só não desistiria hoje, porque tinha vários pacientes com exames pendentes para lhe mostrar. E a dona Isaltina, que lhe levara ontem um pano de prato bordado em homenagem ao dia do médico, tinha consulta no final da semana. Mas na semana que vem largaria tudo isso, decidira, convicto, o jovem médico desumano. Nada que uma reles noite de oito horas de sono não conseguisse adiar. Coisas, decisões e sentimentos, que só os médicos nacionais, mercenários e desumanos compreendem, ninguém mais.

domingo, 12 de outubro de 2014

Uma fábula chamada Brasil


Há muitos e muitos anos, em um país ainda não encantado, chamado Brasil, era época de eleições presidenciais. As primeiras eleições diretas depois de um longo jejum. Dois candidatos disputavam o segundo turno. Dois nordestinos, tão iguais na região geográfica de nascimento, quanto diferentes em suas histórias e discursos. De um lado, um jovem candidato, bem estudado, desportista e oriundo de tradicionais famílias nordestinas. De outro, um nordestino retirante, de família pobre, metalúrgico e surgido do movimento sindical.
O jovem atacava o sindicalista, acusando-o de ser comunista. De ser aliado de baderneiros que invadiam terras e faziam greves para promover a desordem no país com fins puramente políticos. O sindicalista atacava o outro, acusando-o de ser representante da burguesia, do coronelismo político do nordeste onde imperava o voto de cabresto. De representar uma política oligárquica que se beneficiava da falta de instrução de um povo sofrido e desassistido, que trocava seu voto por cestas básicas assistencialistas e eleitoreiras.
Na reta final da campanha, o jovem atleta chuta bem a baixo da linha da cintura. Divulga no horário eleitoral o depoimento da ex-mulher do proletário, acusando-o de lhe oferecer dinheiro para realizar o aborto da filha dos dois, quinze anos antes. A dedicada e apaixonada militância do sindicalista, sangra de ira e dor, pela baixeza do golpe sofrido. Os simpatizantes do jovem desportista, comemoram o chute certeiro.
No último debate televisivo antes do pleito, o país paralisa para assistir o embate entre os dois presidenciáveis. Eram outros os tempos, e escolher pela primeira vez, em anos, o presidente, parecia mais importante que qualquer reality show. Aliás, não haviam reality shows nessa época. Nem internet, facebook, WhatsApp ou youtube. No calor do debate, ao vivo, o candidato sindicalista faz uma colocação, com razoável fundo de ciência e lógica: “que ao persistir a situação contínua de miséria e de fome no Nordeste, os nordestinos acabariam por se transformar, no futuro, em uma sub-raça”. Prato cheio para o jovem representante da oligarquia do agreste. Em poucos, e impiedosos minutos, ele se mostrou revoltado e ofendido por todo o pobre povo nordestino que estava sendo cruelmente desprezado e humilhado pelo sindicalista, também nordestino, mas agora, declaradamente preconceituoso com seu próprio povo.
Sangrava ainda mais a militância esquerdista. De dor e revolta pela manipulação injusta de palavras e contextos. Pela falta de honestidade e decência, e pela deslealdade do embate. Chorava, e choraria por muitos anos, pela eleição, dias depois perdida.
O resto desse enredo, todo mundo conhece. O jovem e destemido presidente eleito, foi cassado pouco tempo depois, por conta de um automóvel Fiat Elba e mais algumas coisinhas ilícitas. O metalúrgico, anos mais tarde, foi eleito por duas vezes presidente. O mais popular presidente até hoje eleito nesse país. Acreditam alguns, que talvez ele carregue nas costas milhares de Fiats Elba. Mas de nada ele soube, e nada até hoje se comprovou que soubesse. Portanto é inocente e só carrega nas costas sua enorme popularidade e carisma.
Moral da história? Onde andaram, nos últimos anos, esses dois distintos políticos? Abraçados, nos mesmos palanques, com os mesmos discursos e a mesma ideologia. Sinal de que o tempo tudo apaga e a todos aproxima. Até mesmo as falsidades e traições. E a engajada e sofrida militância de outrora? Aprendeu a bajular seus antigos rivais, e a usar suas velhas táticas, sem remorsos ou pudores. Agora sabe caluniar, difamar, ofender e distorcer a verdade, para ganhar eleição. A dor, não ensina a gemer, ensina a rastejar na sarjeta, e transforma todos em vermes, ao menos é o que parece. Aqueles que sangraram e choraram de mágoa e ressentimento pela deslealdade sofrida, hoje comemoram o mesmo voto despolitizado daqueles de pouco estudo,que os fizera chorar há 25 anos. Os mesmos que incitaram, com a coerência da época, o povo a ir às ruas pedir o impeachment de um presidente corrupto, hoje se mostram ofendidos e perseguidos pela investigação de um esquema bilionário de corrupção dentro de uma única Estatal, mas que envolve seu adorado partido de ideologia e moral corrompidas, mas de alianças e parcerias sólidas, sórdidas, mas consistentes e bilionariamente lucrativas.
Como se canta nesse país tão musical e lúdico, que às vezes parece, mas não é, uma fábula: “Tudo está em seu lugar. Graças a Deus!Graças a Deus!“




sábado, 4 de outubro de 2014

Voto obrigatório, ou voto de cabresto?


De pé desde bem cedinho, o velho já se arrumara, com esmero, para esse dia. Velhas e ultrapassadas práticas, com certeza. Importante dia este, para ele. Momento de cumprir com seu dever cívico de escolher os parlamentares e governantes de sua pátria. Há muito, pela idade, já era, por lei, desobrigado a comparecer às urnas, mas ainda com prazer o fazia, não por obrigação, mas por convicção. Sempre acreditara que assim deveria ser. Votar precisava ser um ato de convicção e não apenas uma responsabilidade legal a ser cumprida. Para esse velho, uma democracia de fato, devia respeitar o livre arbítrio de seu povo. Respeitar, inclusive, o direito de cada cidadão de não se importar com questões cívicas ou com quem governará o seu futuro nos próximos anos. Não se formam cidadãos conscientes por força de lei. Cidadãos conscientes e críticos são formados com educação plena e de qualidade. Leis não constroem consciência, tão somente impõe deveres e estipulam punições. A obrigatoriedade do voto, talvez, aproxime o país muito mais do velho e torpe coronelismo do que da legítima e almejada democracia. Obrigar o eleitor a se dirigir às urnas, parecia, a esse ancião, mais com cabresteamento do que com real cidadania. É o voto de cabresto, legal e legitimamente instituído, no final das contas, conclui o idoso, reflexivo.
Mas, se o voto não for obrigatório, uma minoria decidirá pelo país e não teremos legitimidade, berram alguns. Se uma boa parcela da população optar por abrir mão de seu legítimo direito ao voto e de decisão, automaticamente legitimou a escolha daqueles que pensaram e se posicionaram diferente. Isso devia ser suficientemente legítimo em uma democracia de fato e de direito. Mas não é assim que se pensa nesse país, reflete o velho. Nesse país, a autonomia e o livre arbítrio são criminalizados, como nas mais sórdidas ditaduras. Esse povo, nosso povo, precisa ser tutelado e coagido por lei. E quem precisa ser coagido e tutelado, seria visto em outras democracias mais sólidas e coerentes, como seres incapazes. E incapazes, até nessa nossa estranha e peculiar democracia, não têm condições ou o direito legal de escolher um governante. Estranhas incongruências essas, acredita esse idoso ignorante.
Mas era dia de escolher, decidir e votar. De cumprir com seu dever cívico e moral perante a Nação. Deixaria de lado, nesse domingo, suas tradicionais e adoradas disputas de bocha - um dos prazeres que poucas vezes na vida abria mão. Pois, abriria mão de seu prazer pessoal de idoso, em nome de seu dever com o futuro do país. Esperava que todo cidadão brasileiro fizesse essa escolha, com consciência e convicção. Mas, ainda lastimava por aqueles que o faziam por obrigação e coerção legal. Obrigação e coerção não eram méritos de um povo autônomo e esclarecido, eram marcas de uma gente sem o direito de se omitir e mesmo assim ser cidadão. Quem dera, algum dia, todos tenham o direito de jogar bocha, e escolham ir às urnas e votar. Nesse dia, seremos, enfim, uma respeitosa democracia. Até lá, somos e seremos, apenas idiotas e incapazes obrigados por lei a votar. E idiotas incapazes, podem, sim, decidir uma eleição. Mas jamais serão cidadãos de fato. Nem mesmo  nessa nossa estranha democracia.

domingo, 28 de setembro de 2014

Beijando a lona


Uma enrolada e confusa Oposição se debatia, como sempre, perdida e abestalhada. No fantástico e ilusório mundo de Horário Eleitoral, não sabia que papel desempenhar. Dizia querer mostrar propostas ou oferecer a outra face a cada acusação mentirosa proferida pela companheirada. Puro romantismo tolo, ou total falta de entendimento das regras do jogo posto. Parecia discursar a um outro povo. Um povo politizado, intelectualizado e capaz de distinguir esmolas de direitos fundamentais. Um povo que não fosse cabresteado pelo antigo coronelismo esmoleiro, ou atual companheirismo embusteiro. Povo, esse, que nem mesmo em Horário Eleitoral, conseguia dar as caras. Deviam deportar Oposição para a Suécia. Pois nessa nossa terra, não há lugar para debate limpo ou discussão de propostas sérias e concretas. O povo gosta de choro, fantasia e, pelo visto, chutes, socos e sangue. E tem medo de assombração. Só Oposição ainda não entendeu o enredo e vive nos tempos das comédias pastelão, onde o pateta e desengonçado contava com a simpatia do público.
Em um ringue de luta livre, poucos são os que se comovem com quem apanha sem revidar. Em Mundo Real, quem apanha sem se defender é derrubado e impiedosamente nocauteado, para delírio da plateia. De boas intenções, os discursos, todos eles, estão cheios. Mentiras, calúnias e terrorismo são especialidades da quadrilha vermelha – hoje no comando. Apanhar e perder é a cara de Oposição. À Oposição só resta naufragar com seus discursos pomposos ou a meiga e doce pose de Madre Teresa, empunhando o lencinho branco da paz. Já o povo, este prefere gente lambuzada em petróleo público roubado, e mergulhada em esquemas de propinas, mas com cara e jeito de vencedor.
 Em Horário Eleitoral, o Frajola devora o Piu-piu, e o Dique Vigarista vence gloriosamente essa corrida maluca. Só resta à Oposição hibernar, como o Zé Colmeia, e retornar, no futuro, como Galinha Pintadinha. Essa sim, falará a língua que a maioria de nosso povo conseguirá compreender. Oposição terá mais 12 anos para ensaiar a nova e exitosa coreografia. É melhor começar já. “Pó pó pó, pó pó pó, póoo!...

domingo, 21 de setembro de 2014

Guerra de lama em Horário Eleitoral


Bombas explodiam a cada momento. Mísseis varriam o céu nebuloso. Estilhaços voavam para todo lado. Uma densa fumaça encobria a realidade e dificultava a visão. Conflitos na Faixa de Gaza? Não. Campanhas em Horário Eleitoral. Na impossibilidade de se usar bons argumentos e propostas consistentes, opta-se pelo mais fácil: chafurdar na latrina. O terrorismo é sempre uma boa estratégia àqueles desprovidos de decência.
Frente a possibilidade concreta de se verem apeados do poder através do voto popular, a companheirada desce um pouco mais os degraus da moralidade. Como se não houvessem descido o bastante quando defenderam, de punhos erguidos, criminosos condenados. Com escândalos de assalto aos cofres públicos estourando feito bombas, defendem-se como rege sua cartilha, semeando mentiras e cultivando o medo. Bastante pitoresco o fato de terem chegado onde estão com o comovente discurso de que a esperança vencera o medo. Agora, o terror deve se sobrepor as propostas. Tudo perfeitamente explicável e justificável quando se trata da manutenção de um importante projeto. Projeto esse, que já absorveu cifras incontáveis de recursos públicos. O PAC! Programa de Acomodação da Companheirada. O mais efetivo projeto implantado pela turma em mais de uma década, tirando milhares de companheiros do ócio mal remunerado e garantindo-lhes uma tetinha pública inesgotável. E o medo de perder uma boquinha faz até companheiro vencer a pouca disposição em suar a camisa e resolver arregaçar as mangas e partir para a Luta Livre de ética, modalidade preferida desse time.
Precisamos defender o petróleo, que é nosso! Brada a companheirada, liderada por seu messias, o Ilusionista – com as mãos sujas, mas não de petróleo. E nosso, é preciso que se traduza, quer dizer deles, os companheiros. Quadrilha essa, que armada de emblemáticos discursos contra a malfadada privatização de empresas públicas de exploração do petróleo, entregou a dita Estatal à pilhagem e roubalheira de seus comparsas. É a inclusiva política de companheirização da coisa pública. Se com o braço abraçam a empresa, com a mão lhe surrupiam a carteira. E para defender o projeto criminoso de poder dos quadrilheiros, do pescoço para baixo tudo é canela. Mentir faz parte da democracia, acreditam eles, profissionais da mentira. Denegrir é um direito Constitucional. E roubar dinheiro do povo, é só um lapso momentâneo de conduta. Sorte dos bandidinhos nos presídios, poderem aprender com gente assim, tão qualificada quanto desprovida de vergonha quando submersa em falcatruas e escândalos de corrupção.
Os baluartes da moralidade e da defesa das minorias, precisam convencer a todos que seus oponentes são justamente aquilo que eles próprios representam: intolerantes religiosos, patrocinados pelos horripilantes banqueiros, incompetentes na gestão da coisa pública, semeadores do analfabetismo funcional. A odiosa Oposição pretende retirar os direitos dos trabalhadores, que voltarão a ser escravos, como os cubanos. Acabará com os benefícios assistenciais, e o povo passará fome. O futuro se tornará negro, como o chorume onde hoje chafurdam. Só não acusam os seus opositores de  corruptos, afinal, essa pecha é monopólio dessa quadrilha que sempre há de se orgulhar do difícil título conquistado no reino da impunidade. 

domingo, 7 de setembro de 2014

O rodízio de hipocrisia no estacionamento da coerência


Poliana e sua corte adoravam uma discussão. Confronto de ideias e participação eram o cerne de seu reinado. Pelo menos nas propagandas oficiai e nos discursos. Nos bastidores não era bem assim. Até seus aliados na Câmara de Vendilhões deviam engolir as decisões do Alto Clero sem pestanejar. E quando essas decisões atingiam em cheio o bolso, já bastante assaltado, dos contribuintes, mais a turma de Poliana se esforçava para amordaçar qualquer voz atrevida que ousasse questionar. E quando eram justamente os aliados que ousavam levantar tais questionamentos, Poliana subia nas tamancas!
- Quem vocês pensam que são para questionar um projeto meu, seus inúteis?! Vocês esqueceram a quem devem favores? Quem vocês acham que estão representando, afinal? - berrava, esganiçada, a ofendida rainha.
- Nós fomos eleitos pelo povo para representar os interesses do povo, majestade. - Explica o vendilhão aliado, com as pernas trêmulas e as cueca já úmidas frente a ira real.
- Vocês, como eu, fomos eleitos pelo povo, sim! Mas os interesses que passamos a representar mudaram no dia seguinte ao pleito. Qualquer idiota, até o povão, sabe disso! Vocês, seus energúmenos, estão na Câmara de Vendilhões como meus filhotes, e devem votar conforme meus interesses. Se vocês não conseguem entender uma lógica tão clara, devem se bandar para o lado de Oposição! - continua sua alteza, imperativa e ameaçadora.
- Mas os contribuintes, alteza, estão nos questionando muito sobre os valores do tal novo modelo de estacionamento no reino. Eles acham abusivo! - Tenta esclarecer um dos companheiros da Câmara de Vendilhões, amedrontado.
- Abusivo é esse povinho se achar no direito de se manifestar, ora bolas! Se eu estivesse interessada em ouvir o que essa gente tem pra dizer, teria feito aquelas assembleias e audiências públicas ridículas que costumamos fazer só para enganar os trouxas. Eu decidi qual o novo modelo de estacionamento pago, os locais onde serão implantados e os valores cobrados. E quem não estiver de acordo, que ande a pé, como nos regimes socialistas! É tudo muito simples, claro e objetivo. - declara, enfática, a monarca.
- Mas Poliana, o valor cobrado nas vagas de estacionamento aumentará muito. Triplicará! Será um peso no bolso dos contribuintes. E nós sempre afirmamos que nossa intenção não era arrecadatória. - argumenta o aliado.
- Ora, dai-me paciência! Qualquer súdito, em meu reino, é perfeitamente livre para circular nas nossas esburacadas vias públicas, sem qualquer ônus adicional aos salgados impostos já pagos. Salvo, é claro, algum pneu avariado ou amortecedor danificado. Somos um reinado democrático! O direito de ir e vir está perfeitamente garantido. Mas, para estacionar é preciso pagar! E alguém precisa lucrar com isso, não é mesmo? E vocês não esperavam que fosse o povo a lucrar! - continua, a sarcástica rainha.
- Acontece alteza, que a matemática não fecha. Se vamos dobrar o número de vagas de estacionamento, não parece correto que se triplique também o valor até então cobrado. Como vamos explicar isso aos contribuintes?- contrapõe o outro, quase choroso, em frente a rainha.
- É só uma questão de como colocar os fatos a essa gente. O fato é que “estaremos disponibilizando duas mil novas vagas de estacionamento a nossos sofridos motoristas”. Entenderam? Não interessa se essas vagas sempre existiram e não eram cobradas, e agora custarão 1,50 a hora. O povo só vai enxergar: 2 mil e novas! É simples! Como mentir em Horário Eleitoral!
- É, pensando bem, faz sentido. - concorda o vendilhão aliado, aliviado.
- É claro! Não sei como não tínhamos nos dado conta disso antes. Mas, mesmo assim, como vamos justificar que o valor cobrado por hora tenha triplicado? - indaga o companheiro.
- Ora, vocês sabem, não existe almoço grátis, nem passe livre, nem teta pública, sem que alguém pague a conta. E quem paga é sempre o contribuinte, que não tem como escapar. Mas, para efeito de discursos, ponham a culpa no modelo econômico! No capitalismo! No Imperialismo Norte Americano! Na crise internacional! Nos conflitos na Faixa de Gaza! Na inflação... Não! Na inflação, não! Não é conveniente, nessas épocas de maquiagem oficial da companheirada, falar em inflação. - alerta a rainha, sempre cautelosa com a boa figura de seus pares – E, para dar um certo ar de participação socialista a essa gentinha questionadora, depois que tudo já estiver legitimado na Câmara de Vendilhões e não houver mais nada a ser feito, anunciaremos alguma audiência pública para ouvir as lamúrias, a essas alturas inúteis, do povão. Divulgaremos com alarido, na mídia, que eu, a rainha caridosa e zelosa com os tributos dos contribuintes, estarei recebendo aos súditos para ouvir suas críticas e sugestões. Vocês, meus vassalos, se certifiquem de que haja nessas audiências mais companheiros que gente de bem. Pouca coisa é mais detestável numa democracia do que gente sem cabresto ideológico ou rabo preso em algum carguinho público! - lembra sua alteza - No final, tudo será como nós já havíamos decidido que seria, e ainda teremos várias matérias em Imprensa Livre mostrando como somos um reinado democrático e participativo, mesmo quando não escutamos ninguém, a não ser nossos pares, e decidimos conforme nossas conveniências. - conclui Poliana, soberana absoluta, para seus adestradinhos Poodles da Câmara de Vendilhões, que abanavam os rabinhos para agradar sua dona.
    Em reino onde monarca não se dá ao respeito, súdito não se dá valor, e ao eleitor, caráter é artigo sem qualquer importância, quem tem vergonha é otário.”

sábado, 30 de agosto de 2014

A fórmula da mudança: pó de pirlimpimpim!


Pesquisas. Ah, as pesquisas! Tão adoradas e divulgadas há poucas semanas, agora são demonizadas pela companheirada. Manipuladas, compradas e golpistas, gritam os companheiros, como faziam há pouco mais de uma década. Oposição andava com saudades desse velho chororô. Oposição? Bem, Oposição, hoje, vinha com cara, jeito e cheiro de Situação. Mas com o discurso do novo e da mudança. Aliás, todo mundo queria mudança em Gigante Adormecido. Até quem estava no poder prometia fazer diferente de agora em diante. Coisas que só o povo do carnaval e da fantasia conseguia compreender. Cansado da velha e polarizada luta do bem contra o mal, o povo resolvera inovar e acrescentar um pouco mais de tempero nas cansativas e tediosas disputas de Horário Eleitoral. Apostara considerável número de cartas em uma Fada da Floresta. Tendo o bem, o mal e a fadinha, esse enredo não tinha como dar errado.
Em que encruzilhada se encontravam os companheiros. Precisavam reagir, e rápido, ou seus inestimáveis carguinhos e mordomias se dissipariam na poeira das obras do São Francisco, ainda não transposto. Mas como bater em uma fada? Esse era o dilema da companheirada. Não que lhes sobrasse escrupúlos, o que faltava era coragem de encarar a péssima imagem que faz seu povo daqueles que agridem os seres míticos. Quanta ironia! Pois não fora justo essa tática que lhes garantiram tanto tempo no poder? Criaram a imagem profética do Ilusionista, como o pai dos pobres e benfeitor dos miseráveis. Um proletário idealista que venceu a elite malvada para salvar a todos. Uma figura messiânica e intocável, capaz de eleger uma caricatura como sua sucessora. Agora, nem mesmo o descarado Ilusionista era capaz de avançar sobre essa nova carismática adversária que, como ungida, surgia.
Para superar esse desafio, os destemidos companheiros precisariam de sólidos argumentos e boas acusações. Por isso, já ensaiavam o novo coerente discurso. A fadinha apoia as invasões de terra e a reforma agrária! Defende a devolução de terras aos índios! Critica o acúmulo de capital e o modelo capitalista! É a favor da inclusão social das minorias e do controle do poder pelos movimentos sociais! Ela é comunista! Não podemos permitir que o comunismo chegue a nossa adorada pátria! Abaixo o comunismo! - gritam os companheiros em uníssono.
Nesse reino de fantasia, a coerência é como pó de pirlimpimpim. Faz ideologias voarem de um extremo a outro. E ao povo, só cabe ter pensamentos felizes, que tudo dará certo ao final, como ensinava a boa fada Sininho.

domingo, 24 de agosto de 2014

A realidade pré-fabricada de Horário Eleitoral


Que experiência gratificante é viajar por Horário Eleitoral! Um pedacinho do paraíso, quase uma ilha, perdida em meio a realidade desbotada e nada pomposa de Mundo Real. Todos os candidatos a medalhas e troféus adoravam a seu povo. Nisso sempre concordavam Situação e Oposição. Preocupavam-se com o futuro de seu povo. Sofriam pelos males do povo. Comoviam-se com a história do povo. Lutavam com unhas, garras e golpes baixos, para serem sustentados nos próximos anos por esse povo. Apenas uma pequena coisa desagradava a esses abnegados candidatos em Horário Eleitoral: o povo! O povo real, de carne e osso, não fazia boa figura nesse mundo colorido e perfumado. O povo de verdade, não é capaz de arar a terra, sob o sol escaldante, mantendo um sorriso satisfeito nos lábios e sem derramar uma gota de suor. Os operários do mundo real, não chegam ao final de um árduo dia de trabalho e sorriem satisfeitos por estarem contribuindo para o crescimento do país. As mães da vida real são completamente incapazes de manter sua prole de cinco filhos, todos limpinhos e comportados, como em comercial de margarina. Ao povo, de Mundo Real, faltavam dentes. Faltava estudo. Faltava o discurso arrumadinho e semanticamente perfeito. Faltava comprometimento social. Faltava paciência. Faltava saúde. Enfim, faltava classe e boa forma a esse povo, que não era digno de Horário Eleitoral ou de seus candidatos.
Não é fácil amar um povo longe das câmeras, do circo, e do photoshop. Por isso, era preciso criar um novo povo. Um povo, que até o povo real goste de ver na televisão. Um povo sofrido, de um sofrimento comovente, quase poético. Um povo miserável de uma miséria romântica. Um povo analfabeto, daquele analfabetismo catártico dos intelectualóides freirianos. Um povo que, mesmo dormindo nas ruas, tenha engajamento social e esperança no futuro. Um povo, que castigado pela seca, cavoque a terra árida com a confiança que só esse povo pré-fabricado é capaz de ter. Um povo que, doente e desassistido, esbanje sorrisos e otimismo. Um povo de sorrisos onde não faltem dentes. Um povo que trabalhe, não para seu sustento, mas para construir o futuro de uma Nação. Um povo de casa sempre limpinha, crianças arrumadinhas e fogão reluzente. Um povo de todas as cores e etnias, como rege a lei dos politicamente corretos. Um povo repleto de esperanças e onde não falte futuro. Um povo cheio de futuro, mesmo onde não há esperança. Um povo que sempre sorria, mesmo quando deveria chorar. Um povo que agradeça o que não recebeu. Que valorize quem não tem valor. Que comemore, como dádivas, todas as parcas migalhas recebidas e que sempre lhe foram de direito. Um povo digno de seus representantes em Horário Eleitoral.
Para um povo assim, tão perfeito, é preciso candidatos a altura. E, em Horário Eleitoral, eles existem. Perfeitos como outdoors de creme dental. Sempre tão sorridentes, em meio ao povo. Tão afeitos aos beijos e abraços. Como são afetivos nossos candidatos! Beijam mães, filhos, cachorros e até postes. Abraçam velhos, mendigos, maltrapilhos e corruptos! Corruptos abraçam-se sempre, mas a cada quatro anos é conveniente abraçar ao povo que os sustenta também. É o que ditam as regras dessa maratona quadrienal. E como são domésticos e caseiros esses candidatos. Todos sabem cozinhar um filezinho, churrasco ou um bacalhau de domingo. Cozinham, é bem verdade, com menos desenvoltura do que vendem ilusões, distribuem propinas ou emendas parlamentares. Mas a prática transforma amadores em profissionais e embusteiros em representantes eleitos pelo povo. Essa é a lógica e o objetivo de Horário Eleitoral.
É uma lástima que esse povo, e esses candidatos, só existam em Horário Eleitoral. Que sorte seria se, em Mundo Real, houvesse um povo minimante crítico ou conhecedor de seus diretos. Um povo que não aceitasse como benção, ou graça, o respeito a sua dignidade e seus direitos constitucionais. Um povo capaz de valorizar o caráter, a decência e a ética, como deveriam valorizar todos, principalmente seus candidatos. E candidatos que fossem capazes de respeitar a seu povo, como esse se apresenta. Sem cultura, dentes ou ideologias. Mas, nosso povo, não é capaz de fazer bonito em Horário Eleitoral, mas é gratamente capaz de digitar parcos números em uma urna eletrônica. Um povo desassistido de saúde, educação e segurança pública, e que assiste todo dia ao fantasioso mundo de Horário Eleitoral, onde até mesmo o povo e a realidade são uma grande obra de ficção. E na ficção, até a desgraça, o desrespeito e desfaçatez são coloridos e têm agradável trilha sonora.