domingo, 11 de dezembro de 2016

República lavada a jato

E Gigante Adormecido ainda não chegara ao fundo do poço, como acreditavam alguns. O poço era muito mais escuro e profundo, era o que prometiam políticos, juízes e delatores.

Conflitos e crises institucionais resolvidos com articulações e conluios arbitrados, vejam só, por Justiça. Justiça, a quem cabia defender a carta maior, resolvera entrar no jogo político de cartas convenientemente marcadas. Uma temeridade que fazia Democracia se contorcer desconfortável.
 
O povo, leigo nos meandros e dialeto pomposo de Justiça, acompanhava o placar e torcia como em jogo de futebol. Assistir Justiça entrando em campo, pelo visto, prometia se tornar uma nova paixão nacional. Encerrada a sessão, frente a um placar que desagradava a imensa torcida canarinho, as vaias pipocavam nas redes sociais. Em um jogo onde o resultado é sempre e indiscutivelmente definido pelo juiz, quando um velho cartola da política garantia para si o mando de campo, era como se tivesse a arbitragem nas mãos. Se assim não era, assim parecia. Sorte de Gigante Adormecido ter o futebol para consolar e apaziguar seu povo. Esporte onde as regras eram claras, conhecidas e compreensíveis para todos. Até para o juiz.

E enquanto tricolores e canarinhos ainda se recuperavam da ressaca das duas últimas partidas, Imprensa Livre denuncia mais um vazamento de excrementos que emporcalha a quase todos. Podridão ainda maior permanecia oculta, sob sigilo de Justiça. Uma imundície que faz República também se contorcer em desconforto.

O povo assiste a tudo, cansado. Com um desânimo enorme sobre os ombros. Quisera poder apenas trocar de canal e saborear as batalhas fictícias de Game of thrones, onde verões duram décadas e os invernos uma vida inteira. Em Gigante Adormecido os invernos ameaçam durar uma vida a mais. Apesar do desânimo e do cansaço, sabia o povo que tinha de agir. Novamente.  República precisava ser limpa. A qualquer preço. E a fatura, pelo visto, seria paga em prestações, a cada sopro de delação vazada, até que todo o lixo viesse à luz. O desafio do povo era higienizar República sem perder jamais Democracia de vista.

Esse inverno prometia ser rigoroso e longo, e o fundo do poço ainda tardaria a ser atingido por essa nação do futuro, onde o tão prometido futuro parecia nunca chegar.
 
 

domingo, 27 de novembro de 2016

Expiação socialista

O lugar era escuro e o calor insuportável e escaldante. O mormaço desconfortável tornava a respiração pesada e difícil. O suor lhe escorria na fronte e já pingava pelos fios grisalhos da barba um tanto rala. O ambiente era claustrofóbico e úmido. Um labirinto. O homem apertava os olhos embaçados para tentar descobrir o caminho certo a seguir. Uma encruzilhada à frente lhe fizera parar e relutar, em dúvida.

- Avante, General! À esquerda! Essa sempre foi sua escolha! – ordena uma autoritária voz, com um sotaque bem diferente do seu.
Acostumado a mandar, o homem ainda titubeou um pouco antes de decidir por seguir as ordens daquela voz, um tanto fina, mas firme, decidida, e definitivamente arrogante. Um pouquinho de seu orgulho já se esvaíra com o suor que lhe empapava a farda verde-oliva. Caminhou por quilômetros. Ou teriam sido metros? Os coturnos nunca lhe pareceram tão pesados. Que falta lhe faziam seu tênis Nike. Malditos Imperialistas Ianques! O embargo, que não lhe perseguira em sua longeva e farta vida material, pelo visto lhe atingiria por toda o resto de sua existência infernal.

No final do úmido e mormacento túnel, havia, não luz, mas uma solitária brasa. E em direção à brasa o general se dirigiu, com os pesados passos de noventa anos bem vividos e o peso de muitas vidas bem fuziladas. Vendo-se livre daquela masmorra opressora, suspira aliviado. Mas é acometido por um surto de tosse, ao inalar o ar carregado com o forte cheiro de enxofre do local.

- Heil, Fidel!  - saúda o homem baixote e empertigado, de farda engomada e impecável, ralos fios de cabelo lambidos e repartidos para o lado, com o diminuto bigodinho negro sobre os lábios, e a reluzente e imponente suástica no braço. – Beienvenido, el general! – improvisa o ariano, em raro momento de concessão com raças inferiores.  Trazia, Adolf, entre os dedos, um charuto. Que maravilhosa constatação, pensa Fidel, entre uma tossida e outra, ter sido justo a tênue chama de um charuto que o conduzira no labirinto do inferno. A essas alturas, toda ilha devia estar em prantos por sua súbita e precoce ausência, lastima el capitan.

- Beba isso, comandante! – Oferece o alemão, seco, uma dose de Rum com gelo. – A travessia dos portais do inferno sempre é árdua para nós, os grandes.

O homem, em grandes e sedentos goles, rapidamente esvazia o copo, que novamente é enchido pelo outro. Já na terceira dose, Fidel lança pela primeira vez o olhar para o local. Era uma diminuta sala, com uma cama estreita, uma latrina e uma pia. Só se diferenciava de uma cela pela presença de uma poltrona em frente a uma tela. Curioso, pensa o revolucionário, pelo visto há entretenimento no inferno.

Voltando novamente os olhos para seu anfitrião, surpreende-se com o aspecto do mesmo. Já não lhe parecia o mesmo homem de minutos atrás. Talvez o calor tivesse turvado sua percepção inicial, constata. A pele acinzentada revestia um rosto ossudo e encovado, e o corpo encurvado parecia mal conseguir sustentar o peso da farda. Não lembrava em nada o empertigado Adolf Hitler das fotos dos livros de história.

- Então é aqui que eu vou ficar? – pergunta.

- Sim. – responde o ariano.

- É bem melhor do que eu esperava. Sou um líder revolucionário. Já dormi em lugares muito piores que este. Vou me adaptar facilmente. – constata Fidel, estufando o peito rejuvenescido após a passagem. – E a comida é boa?

- Depende.

- Depende do quê? Do meu comportamento aqui no inferno?

- Não, comandante. – responde Adolf, com um discreto suspiro. – Depende da comida que você mandou dar aos presos de seu tempo.

Tentando disfarçar o desconforto com a notícia, Fidel resolve mudar de assunto e questiona ao outro:

- E essa tela? Vou assistir a mesma programação que obriguei os cubanos a assistirem esses anos todos? Eu posso ver a repercussão mundial com a minha morte? Estou louco para ver o pronunciamento de Barack!  E o pesar legítimo da maravilhosa América Latina nas palavras de Maduro, Evo, Luís Inácio e Fernando Henrique.

- Não, Fidel. – reponde Adolf, parecendo cada vez mais cansado e até um pouco triste. – Nessa tela não passará nenhum de seus intermináveis e cansativos discursos. Muito menos as lamúrias de políticos idiotas e hipócritas por sua morte. Essa tela, el comandante, é a sua penitência.

- Um telão?! -  pergunta o general, olhando com descrédito para o objeto branco. Se soubesse que a pena seria esta, talvez tivesse se entregado bem antes dos noventa.

- Nessa tela, comandante, passarão continuamente, não a sua vida, mas a vida e a história de cada cubano que você prendeu, perseguiu, torturou ou matou. – informa o outro.

- Eu não cheguei onde cheguei sendo um fraco, Adolf! – empertiga-se Castro. – O sofrimento e a morte nunca me acovardaram. Sou o que sou por me dedicar a uma causa.

- Interessante, Fidel. Usei palavras parecidas quando Mussolini aqui me recepcionou há tanto tempo.  Ele chegara aqui poucos dias antes de mim. – relembra o ariano, fixando os olhos no recém chegado. Olhos sem nenhum brilho e que pareciam carregados de uma agonia que fizeram o socialista se arrepiar. – Mas, el comandate, você não vai apenas assistir. Seria uma pena branda, não é verdade? Você vai sentir, Fidel. Sentir tudo o que sentiram suas milhares de vítimas. A raiva, a revolta, o sofrimento, a fome, a angustia, o medo, a dor. Vais sentir a morte, Fidel. Milhares de mortes! E vais senti-las, milhares de vezes, até que tenhas entendido a imensa inutilidade de cada uma delas. Até que te arrependas de todas. Essa é tua pena. E aqui, como em tua ilha, ou em minha Alemanha nazista, não há recursos. – informa Adolf, dirigindo-se cansativamente para o labirinto. – Boa sorte, Fidel. – deseja o outro, em um quase sussurro de despedida.

- Espere! – grita o comandante. – Isso não é justo! – argumenta, exaltado. – Tudo o que fiz, fiz em nome de um ideal de justiça social e igualdade! Almejava uma ilha sem desigualdades ou privilégios burgueses, com saúde e educação para todos! Fiz tudo em nome de um bem maior! Sempre tive as mais justas e boas intenções! – argumenta o ícone socialista, nababo caribenho que degustava lagostas enquanto seu povo se prostituía para complementar a ração mensamente fornecida pelo Estado.

Sob o umbral da saída, Hitler para por um breve momento e voltando lentamente a cabeça reponde ao revolucionário comunista: - É como se diz lá no mundo terreno, Fidel: de boas intenções o inferno está cheio! Hasta la vista, el capitan! – despede-se o ariano, abandonando o recinto.

Sozinho, Fidel vê o lugar tornar-se escuro e a tela, que agora lhe parecia imensa, se iluminar com imagens espetacularmente reais de uma mata, Sierra Maestra! Era como se ele tivesse sido jogado para dento da tela. Sentia-se ofegante, como se tivesse corrido milhas. Sentia medo! Um medo sufocante que lhe oprimia o peito. Estava sendo perseguido. Precisava escapar! Não conseguira. Fora capturado. Sentia a dor dos golpes e o gosto de sangue na boca. Perdera a consciência. Acordara e sentira um cheiro nauseante. Virara o rosto tentando identificar de onde vinha o odor asqueroso. Então, o vira. Che! Neste momento, Che ergue uma faca imunda em sua direção. Fidel tenta lutar, o pavor lhe faz tentar resistir. Mesmo apavorado, enxerga um outro jovem atrás de Chê, que gargalha com outros, assistindo a degola eminente. Era ele mesmo, Fidel! Dono de todas as certezas e confiante de que todos os meios justificam qualquer louvável fim. – Não! – grita Fidel para ouvidos moucos. – Sou eu! Sou eu camaradas! – tenta argumentar antes de sucumbir a primeira das milhares de mortes que o aguardavam no inferno.

Assim passou Fidel, sua primeira morte no inferno. A primeira de milhares.

Mas este é só um conto, uma ficção. Fidel sempre será o revolucionário idealista e utópico das esquerdas. E um ditador assassino e cruel para os demais.

Onde quer que estejas Fidel Castro, que lhe sejam justos teus julgadores, da mesma justa forma como justo fostes com os teus opositores.

 

 

 

 

 

sábado, 19 de novembro de 2016

Esses moços, pobres moços

E o garotinho fez uma ceninha. Simulou, chutou, esbravejou e gritou. Só faltou se finar, feito criança pequena. Não estava acostumado com limites. Limites! Que falta faziam os limites em uma sociedade, pensa o velho, observando a criança que berrava no corredor do supermercado, exigindo um pote de Nutella, sob o olhar constrangido e passivo dos pais. Corredor que se esvaziara rapidamente, em claro sinal de repulsa da sociedade a ditadura das crianças e a inércia de seus genitores.  Alguém devia proteger esses pequenos da incompetência de seus pais, reflete o velho, carregando suas sacolas para fora do local.

Já em casa, enquanto arrumava as poucas compras em seus lugares, escutava as notícias do telejornal, onde um outro Garotinho, esse bem mais crescido, mas igualmente desconhecedor de limites, também fazia uma ceninha, tentando escapar da prisão. Que tipo de pais criaram uma figura de tal forma arrogante a ponto de se prestar a esse papelão ridículo, questiona-se o ancião, balançando a cabeça em desagrado. Que tipo de sociedade permitira que uma figura tão patética chegasse onde chegou, suspira impaciente.

 Mas as notícias continuavam, e passavam rapidamente de Garotinho a garotões. Adolescentes permaneciam ocupando escolas em todo território nacional. Jovens tentavam, a força, invadir universidades privadas. Universitários tomavam para si prédios públicos, como se por serem públicos fossem deles. Funcionários públicos marmanjões, durante um legítimo protesto, legitimaram sua total intransigência e autoritarismo, agredindo fisicamente um conhecido repórter, justamente por ser este da grande imprensa. Manifestantes, saudosos da ditadura, adentraram agressivamente no Congresso Nacional, alegando ser aquela a Casa do Povo, enquanto defendem um regime autoritário onde essa Casa seria extinta, e a democracia também. Flashes curiosos desse país de dimensões continentais e imbecilidades abissais.

Terminadas as tarefas domésticas, o velho puxa um banquinho e senta-se, sozinho, em frente ao borralho. Lentamente enrola um palheiro, seu parceiro de meio século. Seu médico alegava que esse hábito acabaria por lhe abreviar a vida. Para esse octogenário parecia que as notícias de seu país lhe abreviavam as esperanças e a crença na humanidade, de tal forma que chegava a desejar que os prognósticos médicos se concretizassem o mais rápido possível. Já não era a catarata que lhe turvava a visão, e sim uma imensa tristeza por esses moços que via nos noticiários. Esses moços, pobres moços, talvez até saibam o que querem. E querem, como queremos todos, um mundo melhor para jovens e velhos. O que esses moços não sabem é que existem limites, e limites precisam ser respeitados. Falharam e falham os pais, ao não darem limites a suas crianças. Falhou - e falha - a sociedade, ao condescender com a falta de limites de nossos moços. Uma sociedade sem limites é território de tiranos, reflete o velho, tragando seu palheiro. Quem coloca seus ideais e convicções acima do direito de outrem, não respeita nada que não o próprio umbigo. São mimados idealistas. Apenas isso. Em resumo, são apenas egoístas com pouco cerne. Ideais se tornam desprezíveis quando desprezíveis são os que empunham suas bandeiras. Uma nação onde instituições são passivamente coniventes com o ilegal, o imoral, e o ilegítimo, e onde uma minoria é capaz de se sobrepor ao direito da maioria, é uma terra de ninguém. E, nessa terra de ninguém, quem conseguir se finar e espernear melhor, será o dono da bola, do campo e dos holofotes. Aos demais, resta assistir ao teatrinho dessa geração de revolucionários movidos a Nescau e pão com Nutella. Tão cheios de direitos, e tão vazios de deveres e responsabilidades. Esses moços, tristes moços, não sabem e jamais saberão o que é ser gente de verdade, suspira o velho, entristecido, apagando seu palheiro. Serão eternas crianças ranhetas e birrentas, dignas de pena, somente. O pior destino de um jovem é não amadurecer jamais. O pior destino dessa nação é ser sempre Brasil, terra de corruptos arrogantes e de mocinhos mimados e inconsequente, lastima o velho, iniciando o preparo do almoço de domingo.

Há décadas era assim. Aos domingos o almoço era por sua conta. Sua esposa dormia até mais tarde nesse dia. Não era fácil a vida de casado, sorri o ancião. Sua velha, depois de tantos anos, ainda reinava como uma jaguatirica.  A vida em família é como a vida em sociedade, só se sustenta com respeito e muita tolerância. Tomara que os moços aprendam isso antes de casarem, deseja o velho. Caso contrário, a vida conjugal irá lhes arrancar as mesmas orelhas que seus pais, por covardia e acomodação, tiveram dó de fazê-lo. Melhor orelhas ardentes em tenra idade, do que uma vida decadente e vazia na idade adulta, constata o velho, preparando o chimarrão para sua parceira de cinquenta anos. Quem sabe os moços um dia virem homens. Quem sabe, espera o velho, descrente.

sábado, 12 de novembro de 2016

Poliana, levando o bode para casa

E nossa sempre astuta e ardilosa rainha, Poliana, conseguira emplacar mais um gol de mão nos minutos finais de seu reinado. Oposição até esperneara, pedira falta e acusara impedimento, mas de nada adiantou. Poliana era a dona da bola, do campo, e deitava e rolava nas peladinhas noturnas da Câmara de Vendilhões.

 E em nome do bom e velho interesse público, a despretensiosa corte de sua alteza estava desobrigada a cumprir as velhas e rançosas leis desse singelo e caloroso reino. Os argumentos da tropa de choque da rainha eram, como sempre, dignos de louvor e de soluços de emoção frente a tanto empenho e preocupação com o futuro do reino. A preocupação com o futuro, ao que parece, só chega aos quarenta e cinco do segundo tempo. Quisera – pensa o povo – que mandatários e vendilhões pudessem pensar no futuro logo após o apito inicial da partida. Singelos sonhos dessa plebe rude.

Pois, decorrida mais de meia década da aquisição da terra para o prometido novo distrito das indústrias, Poliana e sua corte descobriram, em regime de urgência urgentíssima, que a tal área precisa ser regulamentada imediatamente. Nenhuma espera é tolerável, afinal, seria prova cabal de insensibilidade com a crise de empregos que assola todo Gigante Adormecido, exigir-se o cumprimento das leis. As leis, advogam os vendilhões da rainha, são como argila. Feitas para serem moldadas aos interesses daqueles que têm as maiores e mais hábeis mãos. E, assim se fez. Estava aprovada uma nova área para a implantação de industrias! Méritos de nossa alteza, sem nenhuma sombra de dúvida. Imensa e verdejante área. Verdadeiro esplendor, onde, em se plantando tudo dará. Mas, tratando-se de empresas, em se instalando, tudo faltará. Faltará água encanada, luz elétrica, esgotamento sanitário, acesso e calçamento. Tudo muito pouco atrativo para conquistar empreendedores. A menos, é claro, que os empresários e os novíssimos terrenos precariamente ofertados já estejam vantajosa e previamente marcados. Maledicências de gente de pouco berço e muito facebook, certamente. Nossa magnânima monarca, todos sabem, só tem olhos para o futuro. O seu futuro e de seus amigos, é claro.

Mas, apesar de suas inúmeras e prodigiosas vitórias, Poliana levaria consigo algumas - poucas é verdade - mas indigestas derrotas. Deixaria o trono com um imenso bode entalado na delicada goela real. O reinado de Poliana se consagrara como o período do bode. Nossa estrategista rainha tivera por anos o bode como seu mais fiel aliado e parceiro. Maior até que algumas antas e asnos que compunham sua corte de bobos e assessores. Colocar o bode na sala fora seu mais rentável trunfo nesses anos. Quando resolvera, em um arroubo tresloucado de tensão pré-menstrual, fechar as tradicionais rótulas do reino, enlouquecendo os motoristas por anos, ele estava lá: o seu bode. Causando irritação e críticas. E quando Poliana resolvera tirar o bicho da avenida central e liberar as rótulas, todos se curvaram a tão acertada decisão de sua alteza. Votos para Poliana! E, quando por quase todo seu reinado, fizera os motoristas sacolejarem nas incontáveis e imensuráveis crateras no asfalto, também estava a postos, o bom e velho bode real, sempre pronto a sair de cena quando a disputa em Horário Eleitoral tivesse início. Mais pontos para nossa criativa monarca. Mas, em se tratando de estacionamento rotativo, verdade seja dita: o bode arrastara Poliana pelas orelhas. Nossa rainha fizera de tudo, e conseguira, acabar com o velho sistema antigamente implantado. Era um velho modelito, como velhos e ultrapassados são todos os que antecederam nossa jovem e destemida rainha. Um novo e moderno sistema seria implantado. E assim foi. Uma lástima para o povo e para Poliana que a novíssima e moderna forma de estacionamento tenha dado com os burros nos parquímetros não funcionantes. Era tarde demais para tentar remover o bode, constata a rainha, desolada. Poliana precisaria levar o bode consigo, e acomodá-lo confortavelmente em sua sala. – Maldito bode! – indigna-se a monarca, acostumada a jogar o fedorento animal no colo do povo, mas pouco disposta a lidar com seus próprios fétidos e pré-fabricados problemas. Durma agarradinha em seu bode, Poliana. É o que lhe deseja o povo que optou por mudar.

Espera, esse esperançoso e pacato povo, que não tenha trocado bode por cabra.

 

 

domingo, 6 de novembro de 2016

Poliana, igual do começo ao fim

E no entardecer do reinado de Poliana e sua trupe, tudo seguia como sempre fora. A preocupação maior de nossa monarca continuava a ser propaganda e marketing. Mesmo a apenas poucas semanas de deixar o trono e entregar a coroa, Poliana tentava emplacar mais alguns milhões de recursos públicos para propagandear os seus feitos. Tudo repetitivamente cansativo e fora de prumo. Poliana, a rainha popstar, não conseguira aprender durante todo o seu espetaculoso reinado que seus súditos demonstravam claro e progressivo desinteresse pela pirotecnia de seus comerciais. Houvesse sua alteza investido mais em obras concretas e menos em banners e mídia ilusória talvez tivesse ela e seu povo mais motivos para comemorar.

E se era verdade que a maior praga que nossa rainha rogara sobre o reino por tantos anos, os famigerados buracos no asfalto, haviam rapidamente minguado nos últimos meses, também eram verdadeiras piadas os métodos adotados nas operações tapa-buracos. A mistura farelenta usada para preencher as crateras lembrava muito esterco de vaca. Mas o carro-chefe era a compactação do material, com os serviçais do palácio ziguezagueando pelas ruas na tentativa de acertar os pneus nos buracos recém cobertos. Hilariante. Os operários designados para essa inglória tarefa deveriam receber adicional por exposição pública ao ridículo. Mais uma invencionice da criativa corte real de Poliana.

Para não fugir da mesmice, as audiências públicas de sua alteza, feitas para trazer ao conhecimento público assuntos de relevância para o reino, como sempre eram cercadas de profundo mistério. Só não aconteciam na calada da noite, pois a noite era possível que o quórum fosse maior. E nesses democráticos eventos, sempre tão representativos, bastava um só questionamento para encerrar a reunião. Melhor adiar a audiência para outra data e horário, e certificar-se de que ninguém com um pouco de cérebro compareça. Participação popular em reinados socialistas só funcionam quando a plateia é adestrada. Assim nos ensinou Poliana.

Uma lástima que nossa rainha e sua vastíssima corte demonstrem tão pouco apreço pelo claro e o concreto. O gosto pelo duvidoso sempre sombreara seu reinado. Questão de paladar, provavelmente. Pois, nem mesmo o velho projeto de um novo distrito para as indústrias locais, insistentemente alardeado pelo time de Poliana na última disputa em Horário Eleitoral, conseguirá sair limpo do papel. Na ânsia de entregar a área, mais prometida que terra santa, antes do término de seu reinado, sua alteza abrira mão de tudo. Até da vergonha. Pretendia oferecer aos empresários o imenso terreno. E apenas isso. Nada de água, eletricidade ou esgoto. Afinal, quem precisa dessas perfumarias? O que realmente importa é a belíssima propaganda que isso tudo vai gerar. O photoshop conserta tudo, e propaganda não tem cheiro. E Poliana não tem olfato. O odor ocre das questionáveis e putrefatas decisões tomadas por nossa monarca ao longo de seu reinado devem ter lhe arruinado o aparelho olfativo. Questão de sobrevivência, sem dúvida. Seria uma temeridade ter de conviver por toda a vida com o próprio cheiro.

 

 

domingo, 23 de outubro de 2016

O dilema dos ratos

E, em Gigante Adormecido, estava instalado o pânico. As filas nos luxuosos banheiros parlamentares quase se igualavam as das emergências superlotadas do sistema público de saúde. O trânsito intestinal dos congressistas trabalhava tão rápido como rápidas sempre foram as boas intenções dessa gente ao se locupletarem com a coisa pública. O mau cheiro impregnava o ambiente, mas ninguém notava, acostumados que estavam com o próprio odor.

Pois não é que o homem fora realmente preso. Não aquele, o chefe maior, este ainda roía as unhas em expectativa, e dormia de sapatos sem cadarço. Quem baixara o cadeião fora outro, desta vez. O antigo todo poderoso do parlamento. Algoz implacável da decapitada Rainha Mãe. O queridinho dos coxinhas. Inimigo número um da companheirada. Os companheiros o detestavam, com absoluta certeza. Não pela sua questionadíssima moral, ou por seu fisiologismo torpe. Afinal, essas qualidades foram úteis ao grande clã estrelado por mais de uma década, e apenas convenientemente esquecidas nos últimos tempos. Ter rancorosamente mordido a corda e se voltado contra a, até então, ofuscante estrela vermelha, era o maior pecado do sujeito.

E a esquerdalha sequer podia comemorar com o merecido entusiasmo que o momento exigia. O homem caiu, e sua queda prometia derrubar todo Parlamento. A companheirada, a exemplo de seu messias, o Ilusionista, temia muito mais essa ruína do que a da perseguida Rainha Mãe. Este, para infelicidade de muitos, sabia falar. E se decidir abrir a boca, faltarão celas no gigantesco reino da corrupção e das jabuticabas. Melhor mandar cercar o Parlamento, transformando-o em presídio de segurança máxima.

E Justiça?! Ah, Justiça, criatura cruel e desumana! Aniquilara, de um só golpe, todo o discurso vitimista tão bem elaborado pela companheirada. Justiça, que impiedosamente perseguia o virtuoso e bem intencionado clã estrelado, resolvera colocar a corda no pescoço justamente do carrasco mor dos companheiros. Assim, não havia mimimi que se sustentasse. Maldita Justiça! – continuam bradando os seguidores da estrela, cada vez mais apalermados, mergulhados em contradições, como de hábito.

E assim, segue a vida no pitoresco reino de Gigante Adormecido. Lugar onde a bandeira da moralidade e da coerência é golpismo. E onde o roubo e a corrupção não têm cheiro, têm cor, e a sem-vergonhice escarlate é mais doce e digna que qualquer outra. Quem não concordar é golpista.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Trinca de reis

Sentados ao redor de uma mesa sem arestas estavam os três. Três antigos reis desse reino. Décadas de história em um mesmo ambiente. Um passado de divergências e disputas, agora deixado de lado. Era outro o presente. Eram outras as intenções. E os interesses. Três poderosas forças que mostraram novamente seu poder. Unidos, como temiam os adversários, e desacreditaram tantos desavisados e incautos. Vencedores. Agora, ainda mais do que antes. Era hora de comemorar a vitória. Mas, para esses velhos, as comemorações eram supérfluas, o jogo estava apenas começando.

- Bati! – comemora Chucrute, o ariano, com o largo sorriso que o caracterizava. – Uma bela cartada! Com uma Dama, doze pontos, derrubei outra dama, a das treze estrelas! – festeja com seu jeitão efusivo.

- Tinha eu, meu velho e estimado amigo, a indubitável certeza de que lograríamos êxito nesse tortuoso e competitivo caminho. Congratulações! – parabeniza o Alquimista, com voz cadenciada.

- Doze pontos. Foi quase uma zebra. Mas você conseguiu alemão. – acrescente Zangão - o sisudo - econômico até nas comemorações.

- Pois não teria conseguido sem vocês dois, meus velhos novos amigos! – exulta Chucrute, abraçando calorosamente os outros dois.

- Tá, tá, tá... – resmunga Zangão, desvencilhando-se do aperto. – A turnê a Horário eleitoral já acabou. Chega de tanto abraço.

- Me recordo como se hoje fosse, prezado alemão, do dia em que o acolhi em meus braços, décadas atrás. Você, tão jovem na época, mas tão repleto de vontades. E deveras questionador. – relembra o Alquimista, perdido em suas memórias. – Você me azucrinava tanto, Chucrute, que fui obrigado a lhe arrumar um cargo que o mantivesse algumas horas por dia bem distante de mim. Pois minha paz de espírito de outrora, hoje resultou em bons frutos.

- É. Questionador, beijoqueiro e teimoso. Excêntrica mistura para um rei. – constata o sisudo, rosnando de lado.

- Teimoso não, Zangão! – sorri Chucrute, apoiando o braço nos ombros do outro. – Sou flexível como bambu. O bambu se curva frente aos maiores vendavais, e retorna sempre e firme à posição original. Paciência e determinação. Vocês sabiam que, após plantada, a semente de bambu leva cinco anos até começar a brotar? E que a curvatura de um bambu pode chegar a...

- Tá bom, tá bom! – interrompe Zangão, o que prometia ser uma aula de botânica e espiritualidade Chinesa. – Você não é teimoso, é só persistente.

- De fato, amigo ariano, sua persistência causa inveja a qualquer de seus adversários. Como os bambus, você ficou soterrado em cinco disputas. Agora, finalmente brotou. Que seus brotos sejam tenros e rígidos, como sempre tenro é o poder, eu bem sei. – discorre o Alquimista, nostálgico.

- Eu tenho, amigos Zangão e Alquimista, a mais límpida e clara convicção de que como novo rei, humildemente escolhido pelo meu querido e estimado povo, precisarei atender as necessidades urgentes da população. Não posso esquecer, e não esquecerei, do pedido que me fez a senhora Stanislava Shryghinskwiscky – relata o ariano, com pronúncia perfeita. – para que fossem agilizados seus procedimentos cirúrgicos, marcados para 2023. – emociona-se o rei eleito. – Nem poderei dar as costas à pequena Maykelen Ketlhyin Pamella das Dores, que aos dez anos de idade me implorou por uma castração de seu gato Mocotó. E, lembro como se fosse hoje, e meus olhos se enchem de lágrimas – discorre Chucrute, lacrimejante. – do seu Astrogildo Ezequiel, filho da dona Secundina, neto de Primeirina, vizinho do casal Setembrino e Agostina, que são donos dos poodles Sansão e Dalila, que moram na rua...

- Aff! – resmunga Zangão, balançando a cabeça e deixando de ouvir a extensa explanação do Alemão – Isso é alguma doença? – pergunta ao Alquimista.

- É uma memória prodigiosa e invejável. E uma chatice incontestável. – responde o doutor, sucinto.

- Mas vai melhorar com o tempo? – indaga o sisudo.

- Não. Vai piorar. – prognostica o Alquimista, lacônico.

- Como foi que nos metemos nisso, Alquimista? – pergunta Zangão, com as mãos na cabeça, observando seu mais novo pupilo que continuava a discorrer nomes, sobrenomes e endereços.

- Parecia uma auspiciosa ideia na época. – reponde o outro, agora um tanto titubeante.

- Tomara que a memória dele seja boa também em cifras, finanças e orçamentos. – torce comedidamente Zangão.

- Tomara que ele não esqueça de meu apoio e minhas finanças. – sussurra o Alquimista, pensativamente.

- E quais serão seus próximos passos, Chucrute? – indaga Zangão, preocupado.

- Caro ex-rei, Zangão. Preciso retribuir a confiança e o afeto em mim depositados pelo amado povo desse reino. Se por mil anos trabalhasse não seria suficiente para pagar o carinho que recebi nessas últimas semanas.

- Você não vai ter mil anos, ariano. Apenas quatro. E carinho, beijos e abraços não vão resolver os problemas dos contribuintes. Trate de pensar em receitas e despesas. Em corte de gastos e na economicidade do dinheiro público. – aconselha o sisudo, objetivo como sempre.

- Sim, sim! – gargalha Chucrute, abraçando fortemente o outro. – Você já me disse isso tantas vezes nos últimos meses, Zangão, que mesmo que eu tivesse a memória de um peixinho de aquário, eu já teria decorado. Por falar nisso, vocês sabiam que pesquisadores australianos demonstraram que um peixe pode se lembrar de seus predadores por até um ano, e que...

- Tá bom! Tá bom! – corta Zangão uma outra aula, dessa vez de biologia marinha. – Espero que você se lembre de seus erros do passado, e que não torne a repeti-los.

- E evite, fraterno Chucrute, as más companhias de outros tempos. Sua inexorável persistência em cercar-se de amizades questionáveis já lhe renderam suficientes dissabores e derrocadas. – relembra o Alquimista.

- Sou, meus dois amigos, hoje, um outro homem. Amadureci muito nesses dezesseis anos. Hoje sou firme como um carvalho! – responde o outro, com seriedade.

- De repolho à carvalho, é uma evolução considerável. – constata Zangão, com um discreto torcer de lábios, provavelmente um sorriso de escárnio.

- Vocês dois são meus mais fiéis amigos, estou certo disso. – afirma Chucrute. -  E espero contar com seus conselhos durante meu reinado. Aprendi muito com vocês nesse tempo, e me dedicarei a aprender cada vez mais. Serei um aluno aplicado. Suas experiências abrilhantarão meu governo. Ao lembrar da confiança com que vocês me presentearam me surgem lágrimas nos olhos. – continua o ariano, com voz embargada e o rosto molhado.

- Toma isso, seu chorão! – resmunga zangão, oferecendo um lenço de tergal ao outro. A essas alturas da trajetória já estava acostumado com as frequentes enxurradas de lágrimas de seu novo amigo.

Depois de assoar o nariz, secar os olhos e devolver o lenço ranhento ao sisudo, acrescenta Chucrute: - Eu estava pensando ... Tenho apenas uns dois amigos da velha guarda, que talvez eu convide para compor meu reinado. Eles estão há anos longe do reino.  O Santinho me telefonou para me parabenizar pela vitória e tem insistido em voltar. Então eu pensei em...

- Eu lhe arranco essas orelhas vermelhas, seu alemão teimoso! – grita Zangão, em um incomum arroubo de fúria.

- E eu lhe aplico uma mistura química que lhe fará hibernar por mais duas décadas! – completa o Alquimista, igualmente irritado.

- Hahaha! – gargalha Chucrute, se contorcendo em zombaria. – Estou brincando! Só brincando! Vocês precisavam ver as caras que fizeram. – diverte-se o ariano, com o rosto rubro, abraçando entusiasticamente os dois homens e depositando beijos estalados nas calvas cabeças.

- Brincadeira sem graça! – reclama Zangão, desprendendo-se do abraço e marchando com passos firmes para a saída. – Quase me mata do coração! Vou ter de procurar um cardiologista. E você sabe o preço de uma consulta?! Custa os olhos da cara! – continua grunhindo o sisudo.

- E eu vou precisar de um calmante depois desse susto! – desabafa o Alquimista, acompanhando Zangão para fora do recinto.

Ainda sorrindo, Chucrute segue os amigos, abandonando também o local. O trono o espera, logo adiante. Bem sabe o alemão que a desconfiança de muitos paira sobre sua cabeça e seu reinado. Que o futuro rei, escolhido para ser a mudança, saiba honrar não suas alianças, mas o crédito que lhe foi concedido por seu povo. Honrar ao povo, é o que se espera de um rei. Que as lições do passado tenham sido aprendidas, e não apenas decoradas.

sábado, 8 de outubro de 2016

O futuro das estrelas

Na sede do time de Poliana, o clima era, inicialmente, de comoção. A surpresa não estava em terem perdido a disputa, mas no inacreditável placar final. Não era possível nadar tanto e morrer a sete braçadas da praia. Poucos minutos após o choque inicial, uma enxurrada de gritos e acusações tomara conta do ambiente. A derrota torna todos irracionais. Alguns mais irracionais que outros.

Era preciso encontrar culpados. Uns não se esforçaram o suficiente. Outros, que deviam ter ficado escondidos, se mostraram mais do que o povo gostaria de assistir. Ao invés de uma imensa e barulhenta carreata, deveriam ter batido um pouco mais de pernas nos subúrbios na véspera da disputa. As malas de dinheiro escuso não foram suficientes desta vez. Faltou pouco. Poucos trocados.

Curiosamente alheia ao clima tenso do local, estava Poliana. Sentada a um canto, saboreava lentamente seus adorados bombons de amarula. Os olhinhos de biscuit passeavam distraidamente pelos presentes. Observava seus bobos da corte. Alguns chorosos. Outros inflamados. Tantos inertes e alienados, como de costume. “Não sei como aturei essa gente sem vontade por tanto tempo.”, pensava a sempre dinâmica monarca, enquanto ouvia as lamúrias de seus pares.

- Não consegui! Não consegui! – choraminga Santo Jorge, com as mãos na cabeça, lamentando a vaga perdida na câmara de vendilhões, onde sequer chegara a esquentar a cadeira já que preferira pedalar – em ritmo lento – as midiáticas obras de Poliana. Não conseguia entender o que dera errado. Nos tempos em que fora maestro da Orquestra Partidária (OP) conquistara multidões com churrasqueiras e canchas de bocha nos festivais pirotécnicos da OP. Pois agora, com feitos mais notáveis e sólidos como ciclofaixa não conseguira agradar ao povo. Falta de consciência ecológica e espírito desportista dessa gente, com certeza.

- Você não tem do que reclamar! – resmunga Golesminha, cabisbaixo. – Ainda lhe resta aquela vaga na Escola de Ensino Superior que o contribuinte pagou e você nunca ocupou. E eu?! – exclama, emocionado. – O que será de mim? O que eu vou fazer? Vou viver do quê? – pergunta à Poliana, buscando uma solução para a insolúvel questão.

- Trabalhar, quem sabe. – reponde Poliana, placidamente, desembrulhando mais um bombom.

- Trabalhar? – indaga Golesminha, empalidecendo. – Trabalhar? – repete, a amorfa criatura, como se tentasse entender o significado da palavra.  – Mas eu nunca fiz isso na vida, Poliana! Eu sei falar bastante sobre exploração do proletariado. Decorei um monte dessas baboseiras para seduzir trabalhador de verdade nos tempos de sindicalista. E sei como atrapalhar a vida de quem quer trabalhar, mas... trabalhar?! – desespera-se ainda mais o homem.

- Você pode voltar a suas origens. Não de sindicalista, é claro. Com o desemprego correndo solto, já tem mais sindicalista parasitando do que gente trabalhando. Volta para agricultura. É a sua cara! – sugere a rainha, tentando conter o riso ao ver o pobre Golesminha empalidecer ainda mais.

- Pra colônia?!! – grita o outro com voz trêmula. – Plantar? Colher? Eu jamais plantei um pé de alface na vida, Poliana! Não sei a diferença entre uma mandioca e um pepino. Ou entre um porco e um gato! Meu passado de homem do campo era só para fazer bonito nas propagandas. Eu só sei plantar ideologias para colher dinheiro fácil. É o meu fim! – suspira.

- Não se menospreze, Golesma. Sua perícia em manejar supercola é reconhecida em toda região. Dizem por aí que você jamais colou os dedos. Uma façanha! Toda essa habilidade deve lhe credenciar para algum emprego, não é? – acrescenta Poliana, sarcástica.

- Eu sei como você está se sentindo, companheiro. – interrompe outro ortodoxo socialista, soluçante. Com o corpanzil embrulhado em uma imensa bandeira vermelha, secava as lágrimas e assoava o nariz na camiseta de Guevara. – Os reaça tomaram o poder! É o fim de um sonho. Mas não podemos nos submeter ao domínio opressor do capitalismo! Essas mãos calejadas de abanar bandeirinhas, e esse corpão sustentado com fast food e Coca-Cola pagos com dinheiro público, jamais servirão a um patrão! Não vai ter trabalho, vai ter luta! – grita com o punho erguido.

- E você vai viver de quê? – pergunta Golesminha, empático com a situação do outro.

- Da aposentadoria da mamãezinha, é claro. Só aceito dinheiro se for do Estado. Preciso ser fiel as minhas convicções.

- Muito coerente. – acrescenta Poliana, lambendo os dedos lambuzados de chocolate. – Ao invés de vocês ficarem choramingando, seus inúteis, deviam analisar as estrelas. – alerta sua alteza, em tom de impaciência. – Como vocês só sabem viver pendurados em carguinhos, deviam, nessas alturas, se preocupar com o desempenho de nosso clã em outros reinos. Quem sabe sobra alguma boquinha para algum de vocês em outros cantos. Mas é melhor se apressarem. Com a derrocada de nossa estrela, faltarão tetas públicas para tanto companheiro desempregado. Quem chegar primeiro leva. – profetiza a rainha, provocando a imediata reação da companheirada que em bando correram para a porta de saída, se acotovelando na tentativa de atrapalhar uns aos outros. Não faltaram chutes nas canelas e dedos nos olhos. Os companheiros, todos sabem, sempre lutam o bom combate.

Depois de quase esvaziado o recinto, Poliana corre novamente o olhar pela imensa sala. O chão coberto de bandeiras rasgadas e pisoteadas. Os tons pastel não enganaram suficientemente o povo, constata a rainha, abaixando-se para pegar uma única e solitária bandeira vermelha. Caminhava para a saída quando uma velha matriarca do grande clã estrelado lhe indaga: - E você, Poliana, qual será o seu rumo agora?

- Seguirei, companheira, o caminho que eu mesma tracei. Vou me dedicar as causas ecológicas e autossustentáveis, agora. Ideologias mudam ao sabor do vento. Foi bom e útil enquanto durou. Boa sorte para vocês! Talvez nos reencontremos algum dia. Vai depender do vento. O último que sair apague a luz. – despede-se a visionária e astuta Poliana, abandonando o grupo, e jogando displicentemente a bandeira vermelha no lixo.

“A servidão dos tolos sempre serve aos espertos.” – conclui a ardilosa Poliana, eterna rainha da situação.  
 

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Poliana, a rainha da vez

E na reta final da turnê a Horário Eleitoral, quem precisa arregaçar as mangas e dar a cara a tapa para salvar sua cambaleante equipe? Ela! Sempre ela, Poliana, a monarca popstar. Pelo visto, a rejeição à duradoura e bastante lucrativa aliança entre o clã estrelado e a irmandade do fogo, não havia sido contabilizada pelos marqueteiros da dupla escolhida para suceder nossa visionária rainha no trono. Uma coisa precisava ser dita sobre Poliana: sua lealdade aos seus pares era digna de elogio. E sua insistência em persistir em um erro, também.
E como apagar as famigeradas estrelas das propagandas não fora suficiente para iludir os tolos, era preciso atitudes mais drásticas.

- Cortem as cabeças! Cortem as cabeças! – gritava esganiçadamente Poliana, em seus conhecidos ataques de fúria.  – Precisamos conter a queda dos números! Será possível que vocês não sabem fazer nada sem a minha ajuda! – vocifera para o grupo de bobos da corte e marqueteiros. Todos apalermados com os resultados de suas pesquisas.

- Nós estamos tentando, alteza. Já escondemos todas as estrelas e bandeiras vermelhas. Nossa militância está camuflada e vestida de branco. Tudo muito paz e amor! E ainda assim o povão tem nos recebido a chutes e vassouradas! – choraminga um dos bobos, massageando o glúteo dolorido depois de uma sarrafada de uma velhinha em sua última incursão na periferia.

- Não adianta discursinho paz e amor e roupas de querubins quando se tem o famigerado Golesma Bonder no time, seus molóides! Até os postes desse reino se lembram do tempo em que o infeliz praticava atentados terroristas, colando fechaduras de empresas. Em tempo de desemprego, com tanta empresa fechando as portas por aqui, ter na disputa um desocupado profissional e pós-graduado em baderna não deve ser muito atrativo para o povo, não é seus energúmenos?! – continua Poliana, com os olhinhos de biscuit flamejantes.

- Você está sendo muito dura, rainha! – queixa-se o marqueteiro, encolhendo a barriga, estufando o peito e tentando salvar seu pescoço da guilhotina. – Nós demos uma repaginada no Golesminha. Usamos uma base efeito mate e pó translúcido antibrilho. Um make divo! E queimamos todos os bonés do FarsaSindical e camisetas do Movimento Só Tramoia e Trago – MSTT. Ele agora usa um chapeuzinho estiloso e muito distinto. Ninguém vai reconhecer nele nada que lembre seus tempos de arruaceiro. – conclui, orgulhoso.

- A franja, seu estúpido! A franja! – grita Poliana, perdendo de vez a cabeça. – O chapéu só esconde a franjinha, cada vez mais rala. Seu radicalismo do passado é marca registrada do Golesma Bonder. Ele é um companheiro de raiz. É reconhecido onde quer que passe. Vocês podem vestir ele de mórmon e colocar a bíblia embaixo de seu braço, que ele vai continuar sendo o que é: um adorador da estrela! Todo mundo olha pra ele e enxerga uma estrela vermelha e reluzente na testa. Ele precisa ser cortado!

- Cortar sua cabeça, magnânima?! Não acha um pouco radical? Podemos tentar cortar um pouco mais a franja, talvez raspar,  e...

- Cortado dos panfletos. Do rádio. Da TV. Das ruas e dos comícios. Enfiem ele dentro de um armário junto com os discos do Vandré e os livros de Marx, e só abram a porta quando o campeonato terminar. Isso é uma ordem! De agora em diante quem assume a estratégia desse time sou eu! – ordena Poliana com o nariz empinadinho. – Eu, com meu carisma e popularidade, vou garantir, novamente, a vitória para todos nós nessa reta final.

- E como vamos fazer isso, alteza? – pergunta, humildemente, o marqueteiro.

- Eu vou para as ruas. Aparecerei em todas as inserções nos meios de comunicação. Vou explicar ao povão que nossa estrela não é a mesma que se lambuzou em propinas e afundou todo Gigante Adormecido no abismo econômico. Que nossa aliança não é igual a aliança golpista entre interesseiros e velhas raposas.  – Observando o ar confuso de sua seleta audiência, Poliana reflete um pouco e continua: - Quer dizer... na verdade é a mesma estrela, mas é diferente... Se é que vocês me entendem. As raposas não são tão velhas, né? – vacila um pouco a determinada monarca. – E ninguém viu as propinas chegarem por aqui.  – continua a rainha. Respirando fundo e olhando fixamente para o horizonte, ensaiando seu papel para as câmeras, com a voz pausada lança seus melhores argumentos: – Roubar, minha gente, todo mundo roubou. Ou vai roubar. Vocês, gente, precisam enxergar e valorizar quem ainda não foi pego. Essa é a verdadeira mudança! Nós mudamos, porque mudar faz bem! Somos o novo! Somos a nova forma de mudar os discursos para continuar tudo igual. Sem vergonha. Sem pudor. Sem remorso! – com a mão espalmada no peito e ar de sacerdotisa, continua -  Esqueçam a razão! Deixem o cérebro de lado e venham com a gente. Feche os olhos e aposte no 13! – conclui com sua voz doce de encantadora de multidões.

- Nãaaao! 13 não! – gritam os bobos da corte e o marqueteiro, com as mãos na cabeça.

- Ops! Desculpe companheirada! É a força do hábito. Treze agora é o número do azar. – desculpa-se Poliana. – Pensando bem... isso pode virar um jingle! – exclama Poliana, ensaiando uma dancinha e puxando o grupo para acompanhá-la:

“Esqueça o 13. Não é mais 13. Escondemos o 13. Camuflamos o 13. Ignore o 13!”

E assim, Poliana, a eterna vendedora de ilusões, se preparava para desatolar sua equipe e conquistar mais um título para seu time. Sempre fiel aos seus pares. Afinal, quem sai aos seus não se regenera jamais.

 

terça-feira, 13 de setembro de 2016

Meias verdades e mentiras inteiras

Em Horário Eleitoral a pasmaceira e o discurso paz e amor não duraram nem uma semana. A troca de farpas já começara a dar o tom da disputa. E não é que os primeiros ataques partiram justo da escolhida de Poliana, a sempre doce e virginal Obtusa. Sinal inconteste de que as coisas não corriam como o esperado para os apoiadores do continuísmo. Tentar camuflar a presença do velho clã estrelado parece não ter conseguido desgrudar o estigma da estrela da candidata ao trono. Tomar para si feitos que não foram seus e requentar promessas antigas, ao que parecia, já não surtia o mesmo efeito de outrora.
 
E mudança era a bola da vez. Todos clamavam por mudança. Até os que estão hoje no poder, e com unhas e dentes se agarravam para não deixa-lo escapulir, falavam em mudar. O povo, desanimado, observava o festival de patifarias que lhe era apresentado diariamente. Nos palanques, antigos rivais se abraçavam como se bons amigos fossem. Nos discursos, velhos amigos se agrediam como se do mesmo barro não tivessem vindo. O novo, tropeçava em sua inexperiência e falta de habilidade em lidar com velhas raposas. Prova de que politicagem não passa de pai para filho nos cromossomos, é uma arte que carece de aperfeiçoamento. 

E se no mundo mágico de Horário Eleitoral a pirotecnia estava limitada pela escassez de recursos, as mentiras e fantasias continuavam a ser o ponto alto do espetáculo. A falta d’agua e os racionamentos do passado foram definitivamente resolvidos pela turma da situação.  Até São Pedro parecia ter tomado partido ao poupar o povo de uma estiagem, enquanto a tão prometida e fraudulentamente inaugurada transposição de rio continuava sem ser concluída. Talvez o querido Santo estivesse engrossando a enorme lista de carguinhos da corte de Poliana.

Já a saúde, como sempre, era o tema preferido na hora de se proferir tolices e vender ilusões aos incautos. Poliana e sua escolhida à sucessão atingiram o ápice de calhordice ao se vangloriarem dos agendamentos de consulta, convenientemente esquecidos de que o fim dos agendamentos fora sua mais alardeada promessa de disputas não tão distantes. Pois agora a doença pode esperar. E a espera por exames e consultas especializadas podia ser longa, assim sabem os doentes estrategicamente ausentes nas sorridentes imagens da televisão. E a turma de Poliana, agora em tons pastel, inventara uma nova modalidade de formação médica: o self service de diplomas médicos. Bastava ao interessado efetuar a matricula em uma instituição formadora local e já sairia prontamente com o diploma na mão, apto, portanto, a fazer todo tipo de consultas e até cirurgias! Não se sabe como ninguém pensara nisso antes. Ideias brilhantes costumam fluir de cérebros prodigiosos. Genialidade não é para todos, infelizmente.  E quando novos médicos começassem a jorrar sobre os doentes, como benção em festa de padroeiro, talvez as novíssimas salas cirúrgicas, também tão propaladas e festejadas nas propagandas, tivessem enfim alguma utilidade. Por enquanto, eram só paredes, equipamentos e números, enquanto os necessitados de cirurgias esperavam, por anos, para serem atendidos em outros campos não tão pequenos.

E ao povo, senhor do momento, restará escolher entre meias verdades, mentiras inteiras e novos engodos. Triste sina desse povo ter sempre de se contentar com mais do mesmo.
 

segunda-feira, 29 de agosto de 2016

A estrela escondida


Em Horário Eleitoral a nova moda eram os tons pastel. Os candidatos à disputa vestiam-se de azul, verde água e branco. Nada de cores quentes. No máximo um laranja desbotado. Tudo tão pálido e insosso quanto os atletas principais da disputa.

A companheirada, quem diria, usava de todos os artifícios para desgrudarem-se de seu símbolo maior: a reluzente estrela. A antes gloriosa estrela agora era omitida ou relegada ao plano de fundo. Tão diminuta e apagada que era quase impossível enxergá-la. Os companheiros que sempre exibiram com orgulho o vermelho de suas ideologias, hoje vestem-se de azul calcinha, amarelo esquálido e branco. Não seria de se estranhar que em breve adotassem alguma ave tropical como símbolo. Tudo é possível no campo da desfaçatez.

No reino de Poliana, em plena reta final do julgamento da Rainha Mãe, a estrela afastada, seus companheiros deixam de lado o discurso de golpe e se alinham aos algozes de sua alteza. Nem uma singela menção ou defesa de sua companheira nas redes sociais ou em manifestações públicas nesses últimos e decisivos dias. Não há protestos, choro ou gritos de guerra. Os punhos erguidos foram trocados por um virar de costas. A rainha fora impiedosamente abandonada pelos seus. Sem remoço ou vergonha.  Ideologias, símbolos e convicções mostram o que valem, nada.

Tirando as novas cores da disputa todo resto era mais do mesmo. Muito bate coxa pelas ruas. Beijos e abraços no povão. Depoimentos lacrimosos de pais e mães de família exemplares e filhos prodigiosos. A bíblia como livro de cabeceira. Jingles sofríveis em tempos de recursos escassos e maquiagem limitada. Tudo muito cansativo. A desesperança do povo era manifesta com um dar de ombros perante a corrida já iniciada. O povo estava cansado. Não via luz ao final do túnel. As expectativas do povo eram tão pálidas quanto os tons e a superficialidade das propostas e dos candidatos ao trono, onde o novo, o mesmo, e o de sempre, parecem tão miseravelmente iguais. Mediocridade daria a cor e o tom dessa disputa.

 

sábado, 20 de agosto de 2016

Amizade cor de rosa

E foi finalmente aberto o festival pirotécnico de Horário Eleitoral. Era hora de afinar os discursos e deixar a coerência de lado, novamente. No curioso reino de Poliana golpistas e golpeados andavam, mais uma vez, de mãos dadas, como irmãos. Feitos do mesmo barro, alimentados nas mesmas tetas, sustentados pelas mesmas propinas. A ladainha de golpe e traição estaria abolida por essas bandas. Pelo menos nas próximas semanas. Para tanto, a companheirada fizera uma nova interpretação dos ensinamentos de Marx. Mais valia o poder nas mãos, e os bolsos cheios de propinas, que uma ideologia vazia.

Assim, os companheiros lançavam mão do Manual de conduta socialista em época de alianças espúrias. E era preciso ensaiar para não errar no figurino ou tropeçar no roteiro. A palavra golpe, e todas as suas derivações, estavam terminantemente proibidas. O que já emudeceria boa parte da militância bitolada que só conhecia esse termo. O vermelho teria de ser abolido definitivamente. Nem camisetas de time de futebol seriam toleradas. A companheirada agora vestiria branco, a cor da paz, e o rosa. De preferência rosa bebê. Tudo muito angelical. Che Guevara, então, nem pensar! Nade de gravuras de barbudos, sequer Raul Seixas ou Bob Marley. E as estrelas? Ah, as estrelas! Precisariam ficar escondidas. O companheiro mais ortodoxo que optasse por manter a estrela rente ao corpo, deveria usá-la nas cuecas onde não pudesse ser vista. Os seguidores da velha e boa estrela precisariam arrumar outro símbolo de seus ideais para pendurar no peito ou estampar nas bandeiras. Um nabo parecia ser a escolha mais substanciosa, uma síntese de suas convicções e do conteúdo de seus escolhidos para essa próxima disputa. E, os outrora destemidos e esperneantes companheiros, aceitavam as novas regras como cordeirinhos.

A festa de lançamento de seus candidatos ao trono teve muito mais que pão, linguicinha e asa de frango torrada. Mais que uma Poliana esganiçante e lacrimosa nos discursos. Mais que cargos de confiança da rainha obrigados a participar da confraternização para garantir a boquinha. Foi pura emoção! Os companheiros, agora paz e amor, empunhavam com os olhos úmidos, suas novas bandeiras brancas com sutis traços de lilás. Alguns vestiam camisetas com a foto de Justin Bieber. Trocaram os chavões de Guevara por frases de padre Marcelo.  E, sob uma chuva de purpurina, todos, companheiros do clã estrelado e membros da irmandade do fogo, de mãos dadas, cantavam – não mais Vandré ou Chico – mas, o Rei. Olhos nos olhos, entoavam: “Você meu amigo de fé, meu irmão camarada. Amigo de tantos caminhos e tantas jornadas... “. Um momento sublime. Digno de registro para posteridade.

Em tempos onde as certezas do povo são expostas com lava jato, os picaretas continuam irmanados em nome do poder, e uma estrofe melodiosa, cantada em uníssono, resume essa longeva aliança entre hipócritas e patifes: “Amigo, você é o mais certo das horas incertas.”

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Aberta a temporada de caça aos tolos

E Gigante Adormecido comemora o sucesso de sua festa de abertura dos jogos mundiais. Conseguimos, mais uma vez, provar ao mundo que em alegorias e fantasias somos imbatíveis. Tomara um dia cheguemos perto de entrar no ranking das nações seguras, organizadas e decentes. Enquanto títulos deste quilate tardam, que nos regozijemos com nossas ilusões para turista ver.
E Mesóclise, o rei tampão, alcançou o primeiro recorde do campeonato. Conseguira proferir as palavras da abertura oficial do evento em velocidade surpreendente. Tudo para escapar das vaias, conhecida arma do povo para demonstrar descontentamento. Falhara Mesóclise, apesar de sua agilidade ímpar. A saraivada de vaias o atingiram em cheio. Sua majestade conseguia a façanha de descontentar, simultaneamente, coxinhas e mortadelas. Essas duas vertentes rivais em uníssono vaiavam o rei, que segurava o microfone com a mesma vontade que agarrara-se ao poder ao longo de sua vida. Ufa! – suspira Mesóclise, terminada sua apresentação relâmpago. – Jamais contentá-lo-ei a todos. Ao menos contentá-lo-ia aos seus compadres. Era o que precisava em sua interinidade.
E, enquanto todo Gigante Adormecido assistia as disputas das várias modalidades olímpicas, no pequeno e pacato reino de Poliana um novo jogo ganhava as ruas, chamando a atenção de seu povo. Pessoas andavam pelo reino em uma caçada curiosa. Adentravam em igrejas e botecos. Invadiam os espaços públicos e festas de comunidades. Perturbavam missas, aniversários, casamentos e batizados. Sempre procurando por algo. Nem mesmo os velórios eram respeitados. Ah! O novo jogo virtual, verdadeira febre entre os jovens, chegara por aqui. O Pokémon Go! Sim, o aplicativo já baixara por essas bandas e fazia sucesso. Mas não eram jogadores perseguindo bichinhos virtuais o que mais se via pelo reino. Eram candidatos caçando eleitores. A dinâmica era a mesma de sempre: cada eleitor capturado valia um bônus, chamado voto. Para capturar eleitores os jogadores usavam armas de atração. Promessas vazias e pão com linguiça eram as mais atrativas iscas para pegar os mais bobos. Os eleitores mais criteriosos exigiam um pouco mais de destreza dos jogadores, como churrascadas com maionese e salada de repolho, e ofertas de uma boquinha no futuro. Ao final do jogo, que tinha prazo definido para terminar, os votos conquistados pelos jogadores seriam trocados por brindes. Maior o brinde, quanto maior o número de pontos alcançados: poder, cargos, carguinhos e, é claro, dinheiro público. Esse fantástico jogo estava apenas iniciando. Atingiria o ápice nas próximas semanas, com os jogadores cada vez mais vorazes em suas caçadas. O povo teria de se camuflar e rebolar para conseguir escapar da captura, e de se ver aprisionado pelos próximos quatro anos as mesmas mentiras e ilusões que são a alma desse jogo.
 

terça-feira, 2 de agosto de 2016

Poliana, a monarca placebo

Nossa prestimosa Poliana pode tardar, mas jamais falha. Nos últimos suspiros de seu reinado decidira, vejam só, atender as principais promessas feitas em sua primeira turnê a Horário Eleitoral. Finalmente, Vontade Política, sua varinha de condão, resolvera funcionar após tantos anos em permanente manutenção. O frio deveria ser a explicação! O inverno mais intenso das últimas décadas deve ter acordado Vontade Política. Pura coincidência esse milagre ocorrer tão próximo de um nova viagem ao mundo encantado e colorido de Horário Eleitoral. Neste ano, para desespero de Poliana e sua trupe, Horário Eleitoral não seria mais tão bonito e enfeitado como antes. A maquiagem e o photoshop estariam limitados por lá. Por isso, nossa rainha precisava fazer agora o que adiara por anos.
 
E, enfim, as consultas médicas nasceriam do chão, feito inço no verão. Nada mais de filas na espera por pronto atendimento. A super safra de médicos, tão alardeada e prometida, finalmente dera o ar da graça. E os atendimentos de saúde floresceriam como os Ipês. Pelo menos até o final da primavera. O velho mantra de seu tempo de pedra, trocar agendamento por respeito, resolvera acordar Poliana nos seus últimos tempos de vidraça. Seria uma temeridade que sua alteza fosse lembrada por Oposição de sua incompetência em cumprir uma surrada promessa. Sorte de Poliana a memória de seus súditos ser mais curta que resfriado. Se em Horário Eleitoral nossa monarca e seus aliados tinham todos os diagnósticos e terapêuticas, aqui em Mundo Real a saúde era merecedora apenas de medidas paliativas. E, pelo menos pelas próximas semanas, era preciso manter seus súditos em boa forma, afinal, saúde sempre fora uma boa moeda de troca nas competições quadrienais de Horário Eleitoral.
 
Segurança! Outro mantra de nossa alteza tão negligenciado em seu reinado. Era para serem apenas palavras ao vento que ninguém lembraria decorridos alguns meses, mas a insegurança do povo podia fazê-lo lembrar de suas - as de Poliana -  promessas vazias do passado. Para tranquilizar seus súditos, Poliana prometia transformar seu reino em um gigantesco Big Brother. Câmeras de videomonitoramento já estavam brotando nos postes, como musgo. Se funcionavam, ainda ninguém sabia, mas que chamavam a atenção, isso chamavam. Que essas novas máquinas consigam intimidar os bandidos mais do que as anteriores, que Poliana preguiçosamente deixou enferrujar até virarem sucata, para contentamento dos meliantes locais.
 
Poliana, inequivocamente, era excelente nos diagnósticos precisos das mazelas de seu povo, mas exageradamente lentinha em colocar as soluções em prática. O que motivava a monarca e sua vasta corte, não eram as necessidades diárias do povo, e sim suas próprias necessidades de votos. Uma pena que as competições em Horário Eleitoral só ocorram a cada quatro anos. Muito tempo para quem precisa de saúde e segurança. Tempo suficiente para Poliana enrolar, cozinhar em banho-maria, e ao final do segundo tempo de jogo, marcar um gol de mão. Sua alteza merecia a medalha olímpica em descaramento. E a conquistaria. Com o apoio do povo, que por anos aguardou por atendimento em saúde e sofreu com o abandono e a insegurança. O sofrido povo desse reino se alimenta de sonhos e ilusões, e contentava-se com remendos e remédios de última hora. Um povo que aceita apenas medidas paliativas, merece uma rainha placebo, muito mais farinha que conteúdo.

domingo, 24 de julho de 2016

Macaquinhos Olímpicos

E Gigante Adormecido estava em contagem regressiva para o início dos jogos mundiais. Os holofotes do mundo inteiro, em breve, voltar-se-iam para o reino e seu mais belo cartão postal. O povo suspendia a respiração em expectativa. E temor. O povo dessa terra tinha orgulho de suas belezas naturais, suas festas e do seu jeito alegre e cordial de ser. Mas, mesmo essa gente tão acolhedora e festiva, temia o ridículo. Habituaram-se com a violência, a insegurança e a sujeira. Há muito não estranhavam obras superfaturadas e estruturas que não funcionavam, ou até mesmo desabavam sob seus pés ou sobre suas cabeças. Faziam, como nenhum outro povo seria capaz, piada e graça de sua própria desgraça. Muito mais que a malandragem da qual também conseguiam se orgulhar, essa era marca de Gigante Adormecido: rir de si mesmo. Era o seu modo de seguir em frente.
 
Mas havia vergonha também, por trás do riso fácil. A certeza de que as coisas não deviam ser como por aqui são, fazia com que esse povo temesse suas mazelas diárias expostas aos olhos do mundo.  O medo do ridículo era maior que o dos atentados terroristas que inquietavam outros povos. Para quem já liderava o ranking mundial de homicídios, o terror era cotidiano e sair ileso merecia medalha.
 
Enquanto os estrangeiros temiam o famigerado mosquito transmissor de doenças exóticas, os nativos temiam doenças, qualquer delas, que os arremessassem no moribundo sistema de saúde local. Agonizar em macas ou estendidos em acomodações improvisadas no chão de emergências superlotadas era o desafio diário de milhares de doentes. Sobreviver era a grande conquista.
 
Aqueles vindos de fora, torciam o nariz para a fétida lagoa, onde peixes disputavam espaço com dejetos e perdiam a batalha. O povo de Gigante Adormecido já não sentia mais o cheiro, acostumado que estava com a imundície de um lugar onde o acesso a saneamento básico também era coisa para campeão.
 
Os atletas do mundial, cercados de todo aparato militar jamais visto por essas bandas, sentiam-se inseguros nas acomodações novas e repletas de problemas da vila especialmente construída para eles. O resto da plebe sentia-se insegura em suas próprias casas, vias públicas e no transporte coletivo, todos os minutos do ano. Insegurança em tempo integral, mais um recorde de nossa gente.
 
Em breve, eles por aqui chegarão. Seremos novamente vistos pelo mundo. Mostraremos aos mais desavisados que não somos uma imensa selva tropical povoada por macacos. Que eles sejam críticos dos nossos defeitos, sarcásticos com nossas qualidades e benevolentes com nosso comodismo e inércia. Se tudo correr como o esperado, ao partirem levarão consigo a imagem de um povo simpático, carismático e alegre, que faz graça com seus próprios dejetos, feito macaquinhos de zoológico. E nós, os macaquinhos, não precisaremos mais temer o fiasco. Seremos o que aceitamos ser: ridículos, mas na medida certa.