sábado, 25 de janeiro de 2014

A engenharia de trânsito da corte de Poliana



Deste ano não passava, garantia a rainha. A questão do trânsito no reino seria finalmente resolvida após anos de promessas e enrolações. Ninguém, nem mesmo sua alteza, aguentava mais as lamúrias e lamentações dos súditos e de Imprensa Livre cobrando ações mais efetivas para o problema. Contabilizar como grandioso feito de sua corte a reabertura do que não devia ter sido fechado, o remodelamento de uma única rótula, com a colocação de meia duzia de gelos baianos no meio da pista, e a construção de um novo terminal de transporte público, já era assunto gasto e surrado desde a última turnê a Horário Eleitoral. Poliana tinha consciência de que precisava avançar bem mais rápido que os automóveis em horário de pico. E como fazer isso em uma questão tão técnica e complexa como essa? Nossa visionária rainha, como sempre, tinha a resposta. Convocara um seleto grupo de conhecedores para decidirem juntos o futuro do tráfego e o rumo dos engarrafamentos. Seus bobos da corte é claro! Todos perfeitamente qualificados para palpitarem no assunto. Com a vantagem especial de que nenhum deles ousava discordar de sua alteza. Mesmo os recém chegados eram conhecedores das famosas crises de TPM da rainha quando contrariada. E preferiam manter suas cabeças e seus carguinhos perfeitamente alinhados.
- A maior bandeira que vamos levantar nesse ano será a dos meios alternativos de transporte e locomoção, rainha. É um assunto ecologicamente correto, moderníssimo e que ganha cada vez mais adeptos da geração saúde. Vai render muita mídia e propaganda real. Talvez até algum prêmio para sua alteza. O uso de bicicletas, por exemplo, é um sucesso na Holanda! - explana Golesminha, especialista em abanar bandeirinhas e vender ideologias utópicas
- Não podemos nos esquecer, queridinho, que estamos bem mais para Índia do que para a Holanda, em quase tudo, principalmente no trânsito. - intervém secamente, a monarca.
- Precisamos estimular o uso de bicicletas como transporte alternativo para reduzir o número de veículos circulando Poliana. - afirma Santo Jorge, padroeiro dos desocupados e novo bobo das obras, que não tirava o capacete e as cotoveleiras nem na hora das reuniões.
- E como faremos isso meu caro? Nossos súditos são muito acomodados, adoram seus automóveis, não acredito que troquem os veículos por bicicletas tão facilmente. Eu mesma não iria sair pedalando com um calorão desses! Ainda mais com tanta lomba nesse reino.
- O povo precisa é de incentivo, rainha. Quando entenderem que é muito mais cômodo e barato andar de bicicleta, vão aderir a ideia. Temos certeza. - reforça o bobo do trânsito – Já estamos trabalhando para melhorar as condições das vias, reduzindo os desníveis e solavancos aos ciclistas. Por isso implantamos o alinhamento asfáltico.
- O que diabos é alinhamento asfáltico? Mais algum rolo que estamos fazendo com dinheiro público?
- Também, mas o projeto é sério. Estamos alinhando o asfalto das vias com as calçadas e eliminando o meio-fio. Isso facilita a circulação das bicicletas e evita o empoçamento de água nas laterais das avenidas. Questão de segurança no trânsito, você sabe. Diminui a aquaplanagem.
- Sei. E vai aumentar o gasto dos comerciantes locais com baldes e rodos também. - conclui Polina. - E que tipo de incentivo vocês tem em mente para fazer nosso povo abraçar a ideia das bicicletas? - indaga a rainha, ainda descrente.
- Se me permite Poliana, tenho algumas ideias práticas. - continua o bobo das obras, com ares de doutor - Modéstia a parte, eu sou entendido no assunto. Sempre fui um pedalão, desde os tempos de escola. Pedalei nos sindicatos, no movimento estudantil, na Escola de Ensino Superior, e tenho pedalado todos esses anos de seu reinado.
- Eu sei disso, Santo Jorge. Todos nós sabemos que você sempre gostou mais de pedalar do que trabalhar. Mas se isso servir de qualificação, vai faltar bicicleta pra tanta companheirada que segue essa sua ideologia. O que quero saber é que tipo de estímulo prático vocês vão dar para o povo normal, que trabalha de sol a sol para sustentar nossas estripulias e manobras radicais?
- Na realidade não se trata propriamente de estímulo. Sera uma espécie de coerção.
- Vai me dizer que vocês pretendem obrigar os súditos a pedalar também?!
- Nada tão radical ou comunista Poliana. Pensamos em reduzir uma das pistas nas avenidas principais do reino para criar uma ciclovia.
- Mas o projeto não era fazer a tal ciclovia nos canteiros centrais. - questiona sua alteza.
- Era, mas se reduzirmos os canteiros, onde vamos plantar nossas flores e trocar a grama a cada 3 meses? Essa tem sido uma das ações mais importantes e frequentes de nosso reinado nesses anos todos. - esclarece o bobo do marketing.
- Tem razão. Nosso projeto de revitalização permanente dos canteiros iria asfalto abaixo. - concorda a monarca. - Mas se reduzirmos ainda mais o espaço para os carros o trânsito vai se tornar insuportável!
- Essa é a fórmula, alteza. Fazer o trânsito ficar tão congestionado e caótico que os motoristas se sintam obrigados a andar de bicicletas e patinetes!
-Parece uma boa ideia. Como aquela que tivemos de fechar os retornos para fazer os automóveis circularem mais, dando a impressão de que o trânsito fluía.
- Exatamente! - confirma o bobalhão do trânsito sorridente.
- E o asfaltamento das demais ruas intransitáveis do reino? E os semáforos inteligentes, o fim das rótulas e a implantação das vias de mão única que estamos prometendo há anos?
- Faz tudo parte do plano, Poliana. Visualiza a cena dos próximos meses. Rótulas nas ruas principais sendo demolidas. Asfalto escorrendo nas calçadas. Sinaleiras piscando enlouquecidas. Meia dúzia de azuizinhos atrapalhando o trânsito. Essa colonada barbeira perdida com a mudança de mão. O que você vê?
- O retrato do inferno com a moldura do desespero!
- Isso mesmo! Ninguém mais vai ousar sair de carro num cenário desses!
- Perfeito! Nada como ouvir gente entendida de vez em quando. - entusiasma-se Poliana. - Vamos implantar logo esse magnífico projeto. Vocês tem meu total apoio. Só preciso confessar uma coisinha. - continua Poliana encabulada – Eu não sei andar de bicicleta.
- Oh! Que peninha Poliana. Mas não se sinta excluída magnânima. Existem outro meios de transporte alternativo. Vamos providenciar um para você. - prontifica-se o prestativo companheiro - Que tal um jegue?
- Jegue?! - pergunta Poliana surpresa, deixando os bobos apreensivos com a perspectiva de uma crise de histeria real. - Boa ideia! Para quem já convive a tanto tempo com asnos... Podem encomendar um Jegue para mim. Vou aderir a nova moda do transporte ecologicamente correto. - anuncia a rainha, satisfeita com a desenvoltura de sua equipe técnica em engenharia de trânsito.

domingo, 19 de janeiro de 2014

Fala sério! Procura-se um Robin Hood


No país da intelectualidade rasa o que falta é um Robin Hood. Não carecemos de educação de qualidade, única forma legítima de inclusão social. Pelo contrário. Promovemos nos últimos anos o maior apartheid social da história, oferecendo ensino  pobre para pobres e despejando milhares de analfabetos funcionais no mercado. Jovens incapazes de interpretar um texto ou resolver operações matemáticas básicas. Jovens despreparados para o mercado de trabalho, condenados ao subemprego, a perpetuar o ciclo de exclusão e a serem eternamente tutelados pelo Estado. Afastamos cada vez mais pessoas pobres daquelas que, com um pouco mais de condição econômica, conseguem escapar da espúria educação pública brasileira. Pretendemos corrigir a injustiça com cotas. Cotas para quem? Esses jovens jamais chegarão perto das cotas. Talvez se pretenda criar cotas para analfabetos funcionais também.
Mas ensino público de qualidade não será jamais bandeira de nossos intelectuais de botequim. Esses cérebros pensantes, formadores de opinião, sonham com Robin Hoods tupiniquins. Revolucionários sociais. Excluídos e marginalizados voltando-se contra a asquerosa elite branca do mal. E elite é qualquer um que não more em favelas e não dependa de programas assistenciais. E sendo brancos e de elite, são necessariamente racistas, contra políticas de inclusão social e sentem-se enojados e ameaçados pela ideia de que pobres possam ascender socialmente e ocupar os mesmos espaços deles. Tudo perfeitamente lógico para a turminha do botequim. Quem não concordar com a teoria é, logicamente, do mal.
Nossos intelectualóides adoram pobres e negros, mas não esses pobres e negros que aí estão. Sonham com pobres e negros com ideal revolucionário. Que peguem em armas para combater essa elite opressora e desumana. Que cobrem, através da força, a tal dívida social que a elite branca do mal carrega consigo no DNA. Não descansarão, nossos esquizofrênicos pensadores, enquanto não conseguirem uma legítima luta de classes. Jamais dormirão tranquilos enquanto brancos e negros não se odeiem verdadeiramente nesse país. Tudo é permitido em nome do ideal revolucionário desses semeadores de imposturas. Eles têm sede de sangue. Não se faz justiça social sem ódio e derramamento de sangue. Talvez fosse possível através da educação. Mas educação não é bandeira para intelectualidade rasteira das mesas de botequim.


domingo, 12 de janeiro de 2014

Papo de cozinha


Poliana comemorava a volta de Santo Jorge ao palácio, agora como o novo bobo das obras da rainha. Santo Jorge era figura indispensável nos shows pirotécnicos da Orquestra Partidária (OP), por isso Poliana se empenhava tanto em mantê-lo por perto. E ele tinha a capacidade incomparável de desocupar o mesmo lugar no espaço quantas vezes fosse preciso, desde que quem pagasse a conta fosse o contribuinte, é claro.

- Brum! Brum!Brum! - divertia-se Santo Jorge em seu triciclo, fazendo manobras radicais em meio ao salão real. De capacete e joelheira, dava voltas em torno da mesa, para assombro dos seus mais novos subordinados.
- Era só o que nos faltava! - cochichavam os serviçais de carreira. - O homem acha que isso aqui é um parquinho de diversões.
-Temos de dar desconto pro coitado. Passou tantos anos como showman da OP, que para ele obras de verdade são balanços, escorregadores e academias ao ar livre.
- Pelo visto, passaremos mais um ano construindo apenas canchas de bocha e tapando buracos no asfalto.
- E ouvindo as queixas dos contribuintes.
- Eu fui discutir com ele sobre as reclamações dos súditos com um problema de canalização de um esgoto a céu aberto e sabem o que ele me disse? Que se não passou na OP, não é uma reivindicação legítima da população, e que ele não ia perder tempo com demandas sem importância.
- Importância para ele é tampa de boeiro.
- Poliana afirmou que ele veio para somar.
- Somar mais uma chefia inútil a dezena que já temos, isso sim.
- Mas a rainha disse que ele vai resolver definitivamente o problema da mobilidade urbana no reino.
- De mobilidade ele deve entender, nem esquentou a cadeira como serviçal da Escola de Ensino Superior e já foi emprestado duas vezes para rainha. Fora o período em que atuou como vendilhão maior de Poliana. Se mover de boquinha em boquinha ele sabe como poucos.
- E de andar de triciclo também. É só o que tem feito nesses primeiros dias como bobo mor. Já estou ficando tonto com ele ziguezagueando pelo palácio. Só para na hora de posar para as fotos.
- Ele é o rei dos espetáculos, disso não dá pra duvidar. Incorporou o discurso politicamente correto da acessibilidade e do estímulo aos meios alternativos de transporte para solucionar a questão do trânsito no reino. Vai construir uma ciclovia na avenida central, agora que foi repavimentada.
- E pistas de bicicross nas demais ruas esburacadas do reino.
- Ouvi dizer que ele quer que a gente venha trabalhar de patins.
- Hoje eu vim de patinete. Fui obrigada, depois de correr ontem a manhã toda atrás dele pra assinar um ofício.
- Verdade seja dita, ele não é nada afeito ao trabalho, mas que fôlego para pedalar!
- E pra pedalar os problemas e os contribuintes também. E olha que só chegou essa semana, imaginem quando se sentir em casa.
- Bi-bi! - aproxima-se Santo Jorge, silenciando o grupo. De toalhinha no pescoço e saboreando um Gatorade, anuncia sorridente: - Meio-dia, meus serviçais. Hora do almoço!
- Turno de verão chefinho! Trabalhamos até as 14 horas. - informa um dos servos, contendo o sarcasmo.
Vocês trabalham, meus subordinados. Eu preciso almoçar. Com tanto exercício, tenho de repor as energias com uma boa base de proteínas e carboidratos. Recomendações de meu personal trainer. Vocês vão conhecer ele na semana que vem. Arrumei um carguinho para ele também. Vai ser chefe de vocês. Vocês vão precisar aprender a se mexer se quiserem seguir meu ritmo. Até amanhã! Não volto mais hoje. Preciso fazer a sesta depois do almoço e só acordo depois das 14 horas, quando infelizmente já terminou o expediente. Essa vida de bobo vai acabar me matando! Devia ter optado por minha vaguinha de serviçal público, não é mesmo? Teria muito menos trabalho e responsabilidades, assim como vocês. Mas minha ideologia e comprometimento com o futuro desse reino me fizeram assumir essa árdua trajetória. - conclui Santo Jorge, pedalando alegremente para fora do castelo.

domingo, 5 de janeiro de 2014

Novo ano, velhos valores


Com olhos serenos e sempre atentos, o velho observava a chuva mansa e contínua que caía desde os primeiros minutos desse novo ano. Esperada e bem vinda chuva, comemora o idoso. As águas que corriam pelas ruas e sarjetas nos últimos dias, pareciam levar consigo as sobras dos encantos e sonhos das festas de final de ano. E deixavam a esse velho já uma saudade sentida. Mesmo que temperada por excessiva ânsia consumista, nessa época as pessoas pareciam realmente tocadas por certa nostalgia das coisas simples e que não podiam ser embrulhadas para presente. Família. Amigos. Saúde. Valores que se perdiam na correria do dia a dia. Conceitos que jaziam esquecidos ao longo do ano. Sentimentos adormecidos na maior parte do tempo.
Nessas noites festivas, como que por encanto, todos sentavam-se a mesa para a ceia. Famílias inteiras se encontravam. Antigos ranços e picuinhas eram deixados de lado. Crianças brincavam como crianças, num alvoroço que, para esse ancião nostálgico, soava como música natalina. Seus filhos e netos até se esqueciam daqueles irritantes aparelhos que mandam mensagens, e conversavam uns com os outros como nos velhos tempos. Riam e relembravam antigas histórias de suas peraltices juvenis. Abraçavam-se e beijavam-se, como família e amigos. Pura magia de final de ano! Uma pena durar tão pouco, suspira o velho. Logo estouram os últimos foguetes e tudo retorna ao que era antes. Valores simples voltam ao esquecimento, por não poderem ser comprados ou vendidos, e não caberem em caixas coloridas.
A chuva, agora, levava o que sobrara dos foguetes. Lavava o que ficara do ano findo, observa o idoso. Nada mais lembrava aqueles poucos dias de encantamento. A esse octogenário melancólico, só restava esperar. Esperar que tivesse ainda boa saúde. Saúde para galgar mais um ano e então poder gozar novamente da magia das festas, ao lado da família e dos amigos. Em cerca de trezentos e sessenta dias, saúde, família e amigos, teriam valor novamente, acredita o velho esperançoso, olhando a chuva através da vidraça. Resta apenas torcer e esperar pelo próximo ano. No próximo ano, quem sabe, pequenos valores teriam algum valor de mercado.