domingo, 27 de março de 2016

Os delírios da realeza


Parada em frente a enorme janela do palácio real, a Rainha Mãe, sorvendo um pequeno gole de chá, observava a aglomeração no lado de fora. Todos os dias, pessoas se reuniam no local em manifestações pedindo que sua alteza deixasse o trono. Por isso que o reino não saía da crise, com esse bando de desocupados agitando bandeirinhas ao invés de trabalhar, reflete a monarca, contrariada. Na sala ao lado, jornalistas estrangeiros aguardavam a rainha para uma entrevista coletiva. O grupo viera preparado. Além de gravadores e tradutores, trouxeram também psicólogos, psicanalistas e especialistas em neurolinguística. Afinal, era internacionalmente conhecida a difícil tarefa de compreender a complexidade de raciocínio e fala da Rainha Mãe de Gigante Adormecido.

Calma e serenamente, sua alteza se dirige aos jornalistas dando início a entrevista. A tranquilidade da monarca em tempos de guilhotina eminente, chamou a atenção de todos. Até mesmo o tradicional discurso desconexo parecia um tantinho melhor. A dificuldade dos membros de Imprensa Livre, seria acompanhar o estranho raciocínio paranoide, recheado de teorias de conspiração.

- Rainha, como a senhora caracteriza o atual momento político de seu reinado?

- Veja bem, meu querido, estamos vivendo um período de graves ataques à democracia. Uma tentativa golpista de impedir a continuidade de uma monarca legitimamente aclamada pelo povo.

- Mas as manifestações populares, e o clamor do povo nas ruas, não são provas inequívocas de democracia?

- É evidente que não! Essa gente toda é simpatizante de Oposição que não aceita a derrota. Felizmente, os movimentos vermelhos, os verdadeiros representantes da sociedade, têm se mobilizado para defender a democracia e contra o golpe. Em horário comercial, enquanto a elite se mantém ocupada explorando os trabalhadores, de pão e mortadela em punho, o povo legítimo vai espontaneamente às ruas! – esclarece a grande líder.

- E como a senhora explica que Oposição tenha sido vaiada e expulsa dessas mesmas manifestações golpistas?

- Aquilo foi tudo combinação, está bem claro. Os desocupados, que passam os dias nas tais redes sociais, armaram as vaias e xingamentos para disfarçar que são financiados pelas aves bicudas de Oposição. Para dar algum ar de legitimidade ao golpe que articularam. – continua a monarca, servindo-se de mais chá.

- A senhora acredita, então, que Oposição, que não consegue reunir mais que poucas dúzias nas ruas em época de eleição, está por trás dos milhões de manifestantes que tomaram Gigante Adormecido?

- You, abordou um ponto muito importante, my darling. – continua a magnânima, tentando impressionar os presentes com seu profundo conhecimento da língua inglesa. – E eu digo que é importante por que é um ponto central. E é central por estar no centro, se é que cê me entende... Cê understand me? E esse ponto, que é central, não é periférico. Isso quer dizer que não chegou as periferias. Ou seja, o povo que vai às ruas pedindo minha saída, é um povo que mora no centro. É uma elite golpista que não anda de metrô! – expõe a rainha, para uma apoplética plateia.

- Os escândalos de corrupção desvendados por Justiça não seriam as causas desse descontentamento, alteza? – questiona outro correspondente, um pouco aturdido.

- Isso é outra coisa que vocês estrangeiros têm de entender melhor. O povo daqui nunca deu bola pra corrupção. Sempre se roubou por aqui! Os índios, há mais de quinhentos anos, roubavam jabuticabas uns dos outros. Depois vieram os Portugueses, que subornaram os índios com espelhos e outras quinquilharias e instituíram a propina. Todos sabem! A maioria desses manifestantes que hoje se vestem de verde e amarelo, já colou nas provas de geografia do primário ou cabulou aula pra jogar bolinha de gude e namorar! E por que agora, assim, de uma hora pra outra, resolveram se indignar com esse dinheirinho desviado? É óbvio que estão sendo manipulados pelos bicudos de Oposição que se infiltraram no meio de Justiça, da polícia e da mídia para tentar me derrubar.

- Quer dizer então que esses escândalos todos estão sendo fabricados por Justiça?

- Of course que sim! De onde vocês acham que saiu esse representantezinho de Justiça que está sendo aclamado nas ruas, em faixas e gritos histéricos de louvor, como se fosse um Robin Wood tupiniquim? Ele é um bicudo infiltrado! Está provado! Uma tia de um vizinho dos pais dele namorava um simpatizante dos bicudos! É isso mesmo, podem acreditar! Além disso, ele postou uma foto de infância no facebook, em um zoológico, bem em frente de uma gaiola cheia de tucanos. Isso mostra claramente que ele estava sendo treinado pelos bicudos golpistas desde a infância. E tem mais! Muito mais! Ele fez várias viagens ao exterior para fazer cursos. O que vocês acham que ele foi aprender lá fora?  Táticas de guerrilha golpista judicial, é lógico! Não sei como tem gente que não consegue ligar os fatos. – empolga-se a rainha, saboreando mais um pouco de chá.

A essa altura da coletiva, até os psicanalistas e psicólogos presentes, olhavam-se abobalhados, quando um jornalista mais audacioso questiona a Rainha Mãe sobre os áudios das interceptações telefônicas que causaram furor em Gigante Adormecido nos últimos dias.

- Escuta aqui, queridinho... – irrita-se a rainha, rosnado para o outro. – Eu não disse aquilo que eu disse, que fique bem entendido! Eu não posso ser acusada ou responsabilidade pelo que digo ou o que tramo quando não sei que estou sendo gravada e bisbilhotada! Se eu soubesse das interceptações não teria telefonado, né?!  Só mandava o papel lá, pro Ilusionista assinar, e não estaríamos no meio dessa crise toda. Então, quem é responsável por essa crise? Eu te digo quem é responsável: Justiça! Que fica escutando o que não devia, a bisbilhoteira. E a operadora de telefonia também! Só que com isso ninguém se preocupa, não é verdade? Isso não sai estampados nos jornais! O papel golpista das operadoras de telefonia que grampeiam suspeitos a mando de Justiça. Em que época as operadoras começaram a crescer por aqui? No reinado dos bicudos! Então é obvio que as empresas de telefonia fazem parte do golpe! – completa a rainha, para a, cada vez mais confusa, plateia internacional.

- A senhora, rainha, se me permite dizer, parece bastante calma nessas épocas tão bicudas... quero dizer, golpistas. Como tem feito para manter o pouco de sanidade mental que ainda lhe resta? – indaga outro jornalista, suavizando o sarcasmo com um sorriso.

- O mais novo membro de meu time de Bobos da Corte tem me ajudado bastante. Não o Ilusionista, meu criador, por que este ainda está impedido pela arbitragem de entrar no time. Mas o Ilusionista vai entrar no time, viu? Vai sim! Nem que seja na vaga para servir cafezinho. Eu não aguento mais essa vida de rainha quase deposta! Não vejo a hora de devolver o trono definitivamente pra ele e me dedicar ao crochê e as palavras cruzadas. Se bem que eu me confundo um pouco no crochê e nas palavras cruzadas, cês sabem? Acho um pouco complexos. Prefiro economia, que é bem mais simples... Mas, como eu estava te dizendo, queridinho, o meu novo Bobo da Justiça mal chegou e já me ajudou um monte. Graças a ele não tenho insônia. Durmo como governo: feito um defunto! – esclarece alegre e simploriamente, provocando risos discretos nos presentes.

- E como é que seu novo Bobo da Justiça consegue lhe tranquilizar com todo esse barulho lá fora?

- Primeiro por que ele não é tão cagão como o outro que o antecedeu, né? Ele veio pra botar a polícia nos trilhos. Nos nossos trilhos. Depois, por que ele faz uns chazinhos que são fora de série! Uma xaropada esquisita, cheia de ervas exóticas. Umas receitas que ele aprendeu em uma seita que frequenta. Um grupo, assim, meio bicho-grilo, que bebe essa infusão de ervas e fuma uns cigarrinhos orgânicos e medicinais. Os cigarros não experimentei. Parece que abre o apetite, e eu estou de dieta, vocês sabem. Já o chá, é bem relaxante! Nos primeiros goles posso olhar pela janela e toda aquele mundaréu de burguesinhos golpistas de verde e amarelo me xingando, se transformam em uma multidão vermelha que me idolatra. Ao final da xícara, durmo e sonho com o dólar baixo, a economia bombando, o Ilusionista governado e eu só de figurante. Um verdadeiro paraíso! – relata a Rainha Mãe de Gigante Adormecido, suspirando. - Vou dar umas garrafas para vocês degustarem, enquanto estiverem redigindo essa entrevista. Vai fazer todos vocês entenderem melhor o momento atual de Gigante Adormecido. – anuncia a governanta, erguendo-se e encerrando a coletiva.

“Deviam ter servido o tal chá no início da entrevista.” – pensam os jornalistas, olhando seus confusos apontamentos.

 “Deviam internar essa mulher!” – pensam os psicólogos e psicanalistas.

“Tenho certeza de que enrolei bem esses gringos otários!” – acredita, convicta, a soberana maior desse reino, saboreando seu chá e petiscando deliciosas fatias de pão com mortadela.

Chá alucinógeno, discursos paranoicos com exóticas teorias conspiratórias, e pão com mortadela. Este indigesto conjunto, resumia o dia a dia do poder em Gigante Adormecido. Seria quase cômico, se fosse apenas sarcasmo e ficção.

domingo, 20 de março de 2016

A história do lado de cá


Em Gigante Adormecido, a última semana se parecia com os derradeiros capítulos de novelas mexicanas: uma emoção após a outra. Suspense a cada final de noite. E haja coração! Milhões de pessoas vestiram-se de verde e amarelo e foram às ruas pedir a saída da Rainha Mãe e a prisão de seu antecessor, o Ilusionista. Justiça era louvada em versos, cantos e gritos de apoio e reconhecimento. Do lado de lá, na linha vermelha, apenas postagens em redes sociais desmerecendo as manifestações, ofendendo Justiça e idolatrando estrelas decadentes. Tudo em seu lugar, portanto.

Dois dias depois, enquanto o time verde-amarelo se regozijava com a maior manifestação pública da história desse reino, o reinado da estrela vermelha dá sua cartada de mestre. O Ilusionista, rei dos reis, assumiria um carguinho no reino da Rainha Mãe e, com isso, adiaria seu inevitável e eminente acerto com Justiça. Os socialistas se vestem, nas redes sociais, de rubra alegria e júbilo. Os oposicionistas, trajam-se de luto e descrédito. Gigante Adormecido voltaria a hibernar, pensavam os canarinhos, desanimados. O Ilusionista seria novamente o rei, acreditavam os fiéis seguidores da estrela. A Rainha Mãe seria deposta afinal, para curiosa felicidade do exército vermelho, em um golpe perfeito.

Mas, Justiça provaria que mesmo cega, surda e muda, não era burra, e podia ser matreira. E, no entardecer de um dia que seria histórico, diálogos infames viriam a público. Era a relação promíscua entre o poder e a patifaria vindo à tona. Conversas que escandalizavam, menos pelo baixo nível das orações, muito mais pelo subnível das intenções. Até mesmos os mais céticos e desacreditados na política, nos políticos e no governo, foram surpreendidos por um profundo sentimento de revolta e desprezo. Não era mais suposição. Estava ali, explicitado, na rouquidão da voz, todo escárnio dos poderosos com seu povo e as instituições legítimas.

E Gigante Adormecido novamente acordou. Espontânea e indignadamente se ergueu, e tomou as ruas mais uma vez, em uma noite onde estrelas só eram vistas no céu. O chão, esse chão, era de um povo que não aceitava mais conchavos e achaques. Era de uma gente que, em coro, gritava: basta! E fora a mais longa noite da história desse povo e seus governantes.

Mas essas, com certeza, são as certezas de quem vê o momento, e a história, do lado de cá. Do lado de lá, as verdades são, e sempre serão, outras. E a história destes outros, cabe a eles contar. A história de Gigante Adormecido está sendo escrita por nós e por eles, não por nós, em guerra, contra eles, ou o contrário - antigo desejo acalentado por alguns. Mas já é história, afinal. Escrita por todos nós. Desconhecemos o final, mas protagonizamos o enredo. A isso se chama democracia.

domingo, 6 de março de 2016

FALA SÉRIO! Em defesa da imoralidade


Nunca antes na história deste país um ex-presidente havia sido conduzido coercitivamente à depor. As imagens e a repercussão na mídia, em época de informação em tempo real, correram o país de norte a sul e atravessaram o mundo. As críticas a decisão do juiz que determinou a condução coercitiva foram muitas, e críticas à atuação do Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal, devem e precisam ser feitas e debatidas em uma democracia. Tudo está em seu lugar, portanto. Mas algumas coisas, assustadoramente destoam do debate democrático e republicano de um país que pretende amadurecer. Não podemos mais fugir do debate da moralidade. Não cabe mais ao Brasil continuar se iludindo com a imagem de um país de povo alegre e hospitaleiro, de belezas naturais, geografia privilegiada, futebol arte e festividades populares de desbundar estrangeiros. Precisamos discutir moralidade. E a figura de nosso ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos convida, coercitivamente, a essa discussão. São vários, e inegáveis, os méritos de Lula enquanto Presidente da República. Só mesmo os muito extremistas e contrários a sua pessoa e seu partido são capazes de não reconhecê-los. Lula, ao contrário do que ele cafajestemente propala, não está sendo investigado ou chamado a se explicar por seus méritos enquanto presidente. Lula, está sendo interrogado e investigado por seus deméritos. Por suspeitas, até então, de receber favorecimentos incompatíveis e injustificáveis com os valores republicanos.
A militância petista, conclamada por Lula, tem total direito de defender seu ídolo, depositário de suas esperanças, sonhos e ideologias, por seus méritos como líder e ex-presidente. Mas, os militantes, pagos ou não, perdem totalmente o crédito, a dignidade e a honra, ao defenderem Lula em seus suspeitos atos de imoralidade e de enriquecimento duvidoso, dele e de seus filhos. Não é tênue a linha entre moralidade e retidão. Não são insignificantes os limites entre caráter e desfaçatez. São conceitos simples e que se aprende na infância. Não necessitam de grande intelecto ou engajamento político. Todos sabem o que é moralidade, até mesmo os desprovidos dela.
Aqueles, como o próprio Lula - cada dia mais patético, megalomaníaco e ridículo, jogando na latrina os antigos méritos seus - que atacam os poderes constituídos como o Judiciário, e que tentam encobrir suas imoralidades com acusações pueris de golpe e perseguição política, não são militantes, são imorais assumidos. Ultrapassaram a linha da moralidade. Optaram pelo desonroso, mas algumas vezes lucrativo, caminho da falta de vergonha, caráter e brio. Esses militantes, que se assumem, sem qualquer constrangimento como imorais, são dignos de pena, asco e desprezo, como de asco e desprezo é digno, cada dia mais, seu messias, Luiz Inácio Lula da Silva. Os militantes petistas que defendem seu líder por seus méritos, e o condenam por seus erros, são cidadãos, não cadelinhas adestradas. São dignos de respeito. São republicanos. Os outros, ah os outros, são pequenos, tão pequenos e medíocres quanto seu líder tem se mostrado. São imorais com muito orgulho. São o que são, sem qualquer constrangimento.
Muito mais admiráveis que aqueles que discursam pela moralidade, são aqueles que não demonstram qualquer sombra de constrangimento em defender a imoralidade explícita. Em defender as indignidades e ilicitudes de seu líder. Em se prestar ao indigno e melancólico papel de ir às ruas defender “O que não tem vergonha, nem nunca terá. O que não tem governo, nem nunca terá. O que não tem juízo”. (Chico Buarque, O que Será – à Flor da pele).
Vocês, os imorais assumidos e sem constrangimento, vão passar. O Brasil é maior que vocês. E o Brasil, pode até não saber, mas é muito mais que samba, carnaval, futebol e corrupção. O Brasil é um país onde se aprende na infância o que é moral. E aos imorais, mesmo que num futuro longínquo, será apontado seu lugar. A sarjeta. E haja sarjeta para tanta imoralidade. Faltará bandeiras vermelhas e gente para empunhá-las.