domingo, 23 de outubro de 2016

O dilema dos ratos

E, em Gigante Adormecido, estava instalado o pânico. As filas nos luxuosos banheiros parlamentares quase se igualavam as das emergências superlotadas do sistema público de saúde. O trânsito intestinal dos congressistas trabalhava tão rápido como rápidas sempre foram as boas intenções dessa gente ao se locupletarem com a coisa pública. O mau cheiro impregnava o ambiente, mas ninguém notava, acostumados que estavam com o próprio odor.

Pois não é que o homem fora realmente preso. Não aquele, o chefe maior, este ainda roía as unhas em expectativa, e dormia de sapatos sem cadarço. Quem baixara o cadeião fora outro, desta vez. O antigo todo poderoso do parlamento. Algoz implacável da decapitada Rainha Mãe. O queridinho dos coxinhas. Inimigo número um da companheirada. Os companheiros o detestavam, com absoluta certeza. Não pela sua questionadíssima moral, ou por seu fisiologismo torpe. Afinal, essas qualidades foram úteis ao grande clã estrelado por mais de uma década, e apenas convenientemente esquecidas nos últimos tempos. Ter rancorosamente mordido a corda e se voltado contra a, até então, ofuscante estrela vermelha, era o maior pecado do sujeito.

E a esquerdalha sequer podia comemorar com o merecido entusiasmo que o momento exigia. O homem caiu, e sua queda prometia derrubar todo Parlamento. A companheirada, a exemplo de seu messias, o Ilusionista, temia muito mais essa ruína do que a da perseguida Rainha Mãe. Este, para infelicidade de muitos, sabia falar. E se decidir abrir a boca, faltarão celas no gigantesco reino da corrupção e das jabuticabas. Melhor mandar cercar o Parlamento, transformando-o em presídio de segurança máxima.

E Justiça?! Ah, Justiça, criatura cruel e desumana! Aniquilara, de um só golpe, todo o discurso vitimista tão bem elaborado pela companheirada. Justiça, que impiedosamente perseguia o virtuoso e bem intencionado clã estrelado, resolvera colocar a corda no pescoço justamente do carrasco mor dos companheiros. Assim, não havia mimimi que se sustentasse. Maldita Justiça! – continuam bradando os seguidores da estrela, cada vez mais apalermados, mergulhados em contradições, como de hábito.

E assim, segue a vida no pitoresco reino de Gigante Adormecido. Lugar onde a bandeira da moralidade e da coerência é golpismo. E onde o roubo e a corrupção não têm cheiro, têm cor, e a sem-vergonhice escarlate é mais doce e digna que qualquer outra. Quem não concordar é golpista.

terça-feira, 18 de outubro de 2016

Trinca de reis

Sentados ao redor de uma mesa sem arestas estavam os três. Três antigos reis desse reino. Décadas de história em um mesmo ambiente. Um passado de divergências e disputas, agora deixado de lado. Era outro o presente. Eram outras as intenções. E os interesses. Três poderosas forças que mostraram novamente seu poder. Unidos, como temiam os adversários, e desacreditaram tantos desavisados e incautos. Vencedores. Agora, ainda mais do que antes. Era hora de comemorar a vitória. Mas, para esses velhos, as comemorações eram supérfluas, o jogo estava apenas começando.

- Bati! – comemora Chucrute, o ariano, com o largo sorriso que o caracterizava. – Uma bela cartada! Com uma Dama, doze pontos, derrubei outra dama, a das treze estrelas! – festeja com seu jeitão efusivo.

- Tinha eu, meu velho e estimado amigo, a indubitável certeza de que lograríamos êxito nesse tortuoso e competitivo caminho. Congratulações! – parabeniza o Alquimista, com voz cadenciada.

- Doze pontos. Foi quase uma zebra. Mas você conseguiu alemão. – acrescente Zangão - o sisudo - econômico até nas comemorações.

- Pois não teria conseguido sem vocês dois, meus velhos novos amigos! – exulta Chucrute, abraçando calorosamente os outros dois.

- Tá, tá, tá... – resmunga Zangão, desvencilhando-se do aperto. – A turnê a Horário eleitoral já acabou. Chega de tanto abraço.

- Me recordo como se hoje fosse, prezado alemão, do dia em que o acolhi em meus braços, décadas atrás. Você, tão jovem na época, mas tão repleto de vontades. E deveras questionador. – relembra o Alquimista, perdido em suas memórias. – Você me azucrinava tanto, Chucrute, que fui obrigado a lhe arrumar um cargo que o mantivesse algumas horas por dia bem distante de mim. Pois minha paz de espírito de outrora, hoje resultou em bons frutos.

- É. Questionador, beijoqueiro e teimoso. Excêntrica mistura para um rei. – constata o sisudo, rosnando de lado.

- Teimoso não, Zangão! – sorri Chucrute, apoiando o braço nos ombros do outro. – Sou flexível como bambu. O bambu se curva frente aos maiores vendavais, e retorna sempre e firme à posição original. Paciência e determinação. Vocês sabiam que, após plantada, a semente de bambu leva cinco anos até começar a brotar? E que a curvatura de um bambu pode chegar a...

- Tá bom, tá bom! – interrompe Zangão, o que prometia ser uma aula de botânica e espiritualidade Chinesa. – Você não é teimoso, é só persistente.

- De fato, amigo ariano, sua persistência causa inveja a qualquer de seus adversários. Como os bambus, você ficou soterrado em cinco disputas. Agora, finalmente brotou. Que seus brotos sejam tenros e rígidos, como sempre tenro é o poder, eu bem sei. – discorre o Alquimista, nostálgico.

- Eu tenho, amigos Zangão e Alquimista, a mais límpida e clara convicção de que como novo rei, humildemente escolhido pelo meu querido e estimado povo, precisarei atender as necessidades urgentes da população. Não posso esquecer, e não esquecerei, do pedido que me fez a senhora Stanislava Shryghinskwiscky – relata o ariano, com pronúncia perfeita. – para que fossem agilizados seus procedimentos cirúrgicos, marcados para 2023. – emociona-se o rei eleito. – Nem poderei dar as costas à pequena Maykelen Ketlhyin Pamella das Dores, que aos dez anos de idade me implorou por uma castração de seu gato Mocotó. E, lembro como se fosse hoje, e meus olhos se enchem de lágrimas – discorre Chucrute, lacrimejante. – do seu Astrogildo Ezequiel, filho da dona Secundina, neto de Primeirina, vizinho do casal Setembrino e Agostina, que são donos dos poodles Sansão e Dalila, que moram na rua...

- Aff! – resmunga Zangão, balançando a cabeça e deixando de ouvir a extensa explanação do Alemão – Isso é alguma doença? – pergunta ao Alquimista.

- É uma memória prodigiosa e invejável. E uma chatice incontestável. – responde o doutor, sucinto.

- Mas vai melhorar com o tempo? – indaga o sisudo.

- Não. Vai piorar. – prognostica o Alquimista, lacônico.

- Como foi que nos metemos nisso, Alquimista? – pergunta Zangão, com as mãos na cabeça, observando seu mais novo pupilo que continuava a discorrer nomes, sobrenomes e endereços.

- Parecia uma auspiciosa ideia na época. – reponde o outro, agora um tanto titubeante.

- Tomara que a memória dele seja boa também em cifras, finanças e orçamentos. – torce comedidamente Zangão.

- Tomara que ele não esqueça de meu apoio e minhas finanças. – sussurra o Alquimista, pensativamente.

- E quais serão seus próximos passos, Chucrute? – indaga Zangão, preocupado.

- Caro ex-rei, Zangão. Preciso retribuir a confiança e o afeto em mim depositados pelo amado povo desse reino. Se por mil anos trabalhasse não seria suficiente para pagar o carinho que recebi nessas últimas semanas.

- Você não vai ter mil anos, ariano. Apenas quatro. E carinho, beijos e abraços não vão resolver os problemas dos contribuintes. Trate de pensar em receitas e despesas. Em corte de gastos e na economicidade do dinheiro público. – aconselha o sisudo, objetivo como sempre.

- Sim, sim! – gargalha Chucrute, abraçando fortemente o outro. – Você já me disse isso tantas vezes nos últimos meses, Zangão, que mesmo que eu tivesse a memória de um peixinho de aquário, eu já teria decorado. Por falar nisso, vocês sabiam que pesquisadores australianos demonstraram que um peixe pode se lembrar de seus predadores por até um ano, e que...

- Tá bom! Tá bom! – corta Zangão uma outra aula, dessa vez de biologia marinha. – Espero que você se lembre de seus erros do passado, e que não torne a repeti-los.

- E evite, fraterno Chucrute, as más companhias de outros tempos. Sua inexorável persistência em cercar-se de amizades questionáveis já lhe renderam suficientes dissabores e derrocadas. – relembra o Alquimista.

- Sou, meus dois amigos, hoje, um outro homem. Amadureci muito nesses dezesseis anos. Hoje sou firme como um carvalho! – responde o outro, com seriedade.

- De repolho à carvalho, é uma evolução considerável. – constata Zangão, com um discreto torcer de lábios, provavelmente um sorriso de escárnio.

- Vocês dois são meus mais fiéis amigos, estou certo disso. – afirma Chucrute. -  E espero contar com seus conselhos durante meu reinado. Aprendi muito com vocês nesse tempo, e me dedicarei a aprender cada vez mais. Serei um aluno aplicado. Suas experiências abrilhantarão meu governo. Ao lembrar da confiança com que vocês me presentearam me surgem lágrimas nos olhos. – continua o ariano, com voz embargada e o rosto molhado.

- Toma isso, seu chorão! – resmunga zangão, oferecendo um lenço de tergal ao outro. A essas alturas da trajetória já estava acostumado com as frequentes enxurradas de lágrimas de seu novo amigo.

Depois de assoar o nariz, secar os olhos e devolver o lenço ranhento ao sisudo, acrescenta Chucrute: - Eu estava pensando ... Tenho apenas uns dois amigos da velha guarda, que talvez eu convide para compor meu reinado. Eles estão há anos longe do reino.  O Santinho me telefonou para me parabenizar pela vitória e tem insistido em voltar. Então eu pensei em...

- Eu lhe arranco essas orelhas vermelhas, seu alemão teimoso! – grita Zangão, em um incomum arroubo de fúria.

- E eu lhe aplico uma mistura química que lhe fará hibernar por mais duas décadas! – completa o Alquimista, igualmente irritado.

- Hahaha! – gargalha Chucrute, se contorcendo em zombaria. – Estou brincando! Só brincando! Vocês precisavam ver as caras que fizeram. – diverte-se o ariano, com o rosto rubro, abraçando entusiasticamente os dois homens e depositando beijos estalados nas calvas cabeças.

- Brincadeira sem graça! – reclama Zangão, desprendendo-se do abraço e marchando com passos firmes para a saída. – Quase me mata do coração! Vou ter de procurar um cardiologista. E você sabe o preço de uma consulta?! Custa os olhos da cara! – continua grunhindo o sisudo.

- E eu vou precisar de um calmante depois desse susto! – desabafa o Alquimista, acompanhando Zangão para fora do recinto.

Ainda sorrindo, Chucrute segue os amigos, abandonando também o local. O trono o espera, logo adiante. Bem sabe o alemão que a desconfiança de muitos paira sobre sua cabeça e seu reinado. Que o futuro rei, escolhido para ser a mudança, saiba honrar não suas alianças, mas o crédito que lhe foi concedido por seu povo. Honrar ao povo, é o que se espera de um rei. Que as lições do passado tenham sido aprendidas, e não apenas decoradas.

sábado, 8 de outubro de 2016

O futuro das estrelas

Na sede do time de Poliana, o clima era, inicialmente, de comoção. A surpresa não estava em terem perdido a disputa, mas no inacreditável placar final. Não era possível nadar tanto e morrer a sete braçadas da praia. Poucos minutos após o choque inicial, uma enxurrada de gritos e acusações tomara conta do ambiente. A derrota torna todos irracionais. Alguns mais irracionais que outros.

Era preciso encontrar culpados. Uns não se esforçaram o suficiente. Outros, que deviam ter ficado escondidos, se mostraram mais do que o povo gostaria de assistir. Ao invés de uma imensa e barulhenta carreata, deveriam ter batido um pouco mais de pernas nos subúrbios na véspera da disputa. As malas de dinheiro escuso não foram suficientes desta vez. Faltou pouco. Poucos trocados.

Curiosamente alheia ao clima tenso do local, estava Poliana. Sentada a um canto, saboreava lentamente seus adorados bombons de amarula. Os olhinhos de biscuit passeavam distraidamente pelos presentes. Observava seus bobos da corte. Alguns chorosos. Outros inflamados. Tantos inertes e alienados, como de costume. “Não sei como aturei essa gente sem vontade por tanto tempo.”, pensava a sempre dinâmica monarca, enquanto ouvia as lamúrias de seus pares.

- Não consegui! Não consegui! – choraminga Santo Jorge, com as mãos na cabeça, lamentando a vaga perdida na câmara de vendilhões, onde sequer chegara a esquentar a cadeira já que preferira pedalar – em ritmo lento – as midiáticas obras de Poliana. Não conseguia entender o que dera errado. Nos tempos em que fora maestro da Orquestra Partidária (OP) conquistara multidões com churrasqueiras e canchas de bocha nos festivais pirotécnicos da OP. Pois agora, com feitos mais notáveis e sólidos como ciclofaixa não conseguira agradar ao povo. Falta de consciência ecológica e espírito desportista dessa gente, com certeza.

- Você não tem do que reclamar! – resmunga Golesminha, cabisbaixo. – Ainda lhe resta aquela vaga na Escola de Ensino Superior que o contribuinte pagou e você nunca ocupou. E eu?! – exclama, emocionado. – O que será de mim? O que eu vou fazer? Vou viver do quê? – pergunta à Poliana, buscando uma solução para a insolúvel questão.

- Trabalhar, quem sabe. – reponde Poliana, placidamente, desembrulhando mais um bombom.

- Trabalhar? – indaga Golesminha, empalidecendo. – Trabalhar? – repete, a amorfa criatura, como se tentasse entender o significado da palavra.  – Mas eu nunca fiz isso na vida, Poliana! Eu sei falar bastante sobre exploração do proletariado. Decorei um monte dessas baboseiras para seduzir trabalhador de verdade nos tempos de sindicalista. E sei como atrapalhar a vida de quem quer trabalhar, mas... trabalhar?! – desespera-se ainda mais o homem.

- Você pode voltar a suas origens. Não de sindicalista, é claro. Com o desemprego correndo solto, já tem mais sindicalista parasitando do que gente trabalhando. Volta para agricultura. É a sua cara! – sugere a rainha, tentando conter o riso ao ver o pobre Golesminha empalidecer ainda mais.

- Pra colônia?!! – grita o outro com voz trêmula. – Plantar? Colher? Eu jamais plantei um pé de alface na vida, Poliana! Não sei a diferença entre uma mandioca e um pepino. Ou entre um porco e um gato! Meu passado de homem do campo era só para fazer bonito nas propagandas. Eu só sei plantar ideologias para colher dinheiro fácil. É o meu fim! – suspira.

- Não se menospreze, Golesma. Sua perícia em manejar supercola é reconhecida em toda região. Dizem por aí que você jamais colou os dedos. Uma façanha! Toda essa habilidade deve lhe credenciar para algum emprego, não é? – acrescenta Poliana, sarcástica.

- Eu sei como você está se sentindo, companheiro. – interrompe outro ortodoxo socialista, soluçante. Com o corpanzil embrulhado em uma imensa bandeira vermelha, secava as lágrimas e assoava o nariz na camiseta de Guevara. – Os reaça tomaram o poder! É o fim de um sonho. Mas não podemos nos submeter ao domínio opressor do capitalismo! Essas mãos calejadas de abanar bandeirinhas, e esse corpão sustentado com fast food e Coca-Cola pagos com dinheiro público, jamais servirão a um patrão! Não vai ter trabalho, vai ter luta! – grita com o punho erguido.

- E você vai viver de quê? – pergunta Golesminha, empático com a situação do outro.

- Da aposentadoria da mamãezinha, é claro. Só aceito dinheiro se for do Estado. Preciso ser fiel as minhas convicções.

- Muito coerente. – acrescenta Poliana, lambendo os dedos lambuzados de chocolate. – Ao invés de vocês ficarem choramingando, seus inúteis, deviam analisar as estrelas. – alerta sua alteza, em tom de impaciência. – Como vocês só sabem viver pendurados em carguinhos, deviam, nessas alturas, se preocupar com o desempenho de nosso clã em outros reinos. Quem sabe sobra alguma boquinha para algum de vocês em outros cantos. Mas é melhor se apressarem. Com a derrocada de nossa estrela, faltarão tetas públicas para tanto companheiro desempregado. Quem chegar primeiro leva. – profetiza a rainha, provocando a imediata reação da companheirada que em bando correram para a porta de saída, se acotovelando na tentativa de atrapalhar uns aos outros. Não faltaram chutes nas canelas e dedos nos olhos. Os companheiros, todos sabem, sempre lutam o bom combate.

Depois de quase esvaziado o recinto, Poliana corre novamente o olhar pela imensa sala. O chão coberto de bandeiras rasgadas e pisoteadas. Os tons pastel não enganaram suficientemente o povo, constata a rainha, abaixando-se para pegar uma única e solitária bandeira vermelha. Caminhava para a saída quando uma velha matriarca do grande clã estrelado lhe indaga: - E você, Poliana, qual será o seu rumo agora?

- Seguirei, companheira, o caminho que eu mesma tracei. Vou me dedicar as causas ecológicas e autossustentáveis, agora. Ideologias mudam ao sabor do vento. Foi bom e útil enquanto durou. Boa sorte para vocês! Talvez nos reencontremos algum dia. Vai depender do vento. O último que sair apague a luz. – despede-se a visionária e astuta Poliana, abandonando o grupo, e jogando displicentemente a bandeira vermelha no lixo.

“A servidão dos tolos sempre serve aos espertos.” – conclui a ardilosa Poliana, eterna rainha da situação.