Reunidos, os três homens discutiam sobre os problemas e dilemas do
lugar onde nasceram e consolidaram suas raízes e destinos.
Acumulavam a experiência dos que já haviam governado esse reino.
Três ex-monarcas. Três importantes figuras da política local. Três
nomes eternamente na boca do povo quando o assunto era sucessão.
Faltando pouco menos de um ano para a próxima turnê a Horário
Eleitoral, era demasiado cedo para lançar nomes, mas nunca era cedo
demais para confabulações e articulações.
- Você tem acompanhado as redes sociais, Zangão? - pergunta
Chucrute, sorridente.
- Muito pouco. Não vejo utilidade nessas coisas. Acho uma perda de
tempo ver fotos de comida. Por que eu iria querer saber quem está
comendo o que, com quem e onde? - responde Zangão, o sisudo, com
sua praticidade corriqueira.
- Seu nome, longevo amigo, é reiteradamente mencionado nas tais
redes, como exemplo de seriedade e competência na administração
da coisa pública. - esclarece o Alquimista, com o ar sempre
professoral.
- Saber disso não o faz repensar a aposentadoria, Zangão? Que tal calçar novamente as chuteiras e entrar em campo rumo ao hexa, hein
seu velho turrão? - pergunta Chucrute, expansivo, abraçando o
sisudo com um dos braços.
- Nem pensar. - responde o outro, desvencilhando-se do abraço. Nos
últimos dois anos já acostumara-se um pouco com o jeito efusivo
de seu antigo rival, hoje, novo amigo. Mas tantos abraços e apertos
ainda lhe deixavam desconfortável. - A política atual está muito
diferente do que era nos meus tempos. As campanhas são muito mais
populistas. Vale mais beijar criancinhas e abraçar velhinhos do
que ter um projeto para o reino. E vocês sabem que beijos e
abraços não combinam comigo.
- Ao contrário de mim, não é sisudo? - gargalha o ariano, dando
um tapinha na perna de Zangão.
- Você? – continua o outro, com um discreto torcer de lábios, que
ao seu modo era um sorriso. - Você deve beijar até os buracos do
asfalto.
- E chamá-los pelos nomes. - completa o Alquimista, também
sorrindo. - O estado calamitoso de nossas vias, isso sim me
entristece a alma. Quanto orgulho sentíamos de nossas ruas e
avenidas! Cada um de nós, ao seu tempo, cobriu um pouco dessas
vias com o negrume quente do conforto e do progresso. Hoje, estão
cobertas de descaso e abandono.
- E as propagandas? Tantas mentiras coloridas. Quanto dinheiro jogado
fora, meu Deus!Dinheiro público! - desola-se Zangão, balançando
a cabeça inconformado. - Quantas obras podiam ser feitas com essa
dinheirama toda. Escolas, creches, pavimentação!
- Podia se investir em saúde. Restaurar prédios históricos. -
acrescenta o Alquimista, saudoso.
- Moradias populares. Esgotos, galerias... - continua Chucrute,
pensativo. - Eu já disse para vocês que quando eu fui rei fiz
tantos quilômetros de esgoto que dava para fazer a volta na
circunferência da terra e...
- Sim, sim! Nós já sabemos. - corta o Alquimista - Você nos jogou
isso na cara mais de uma vez nas disputas em Horário Eleitoral.
Agora, no reinado de Poliana, se perfilarem todos os buracos do
asfalto, deve dar para ir e voltar de Marte umas três vezes.
- E por falar em restaurar prédios históricos, isso está lhe dando
dor de cabeça até hoje, você não se arrepende?
- Durmo eu com a consciência tranquila e límpida daqueles que
fizeram o que precisava ser feito ao seu tempo. - começa o
Alquimista, com seu timbre de barítono. - Os erros que Justiça a
mim imputa como crimes, são os acertos pelos quais sou e serei
lembrado por meu povo. Se o preço pelas obras e legados que deixei
a esse reino for a permanente espada de Justiça sobre minha
cabeça, andarei de cabeça erguida e espinha ereta, como andam
apenas aqueles convictos da retidão de suas condutas. Pago o
preço da injustiça, com o amor que sempre cultivei e acalentarei
por esse reino.
- Ele fez de novo, Zangão! Sempre me faz chorar. - reclama Chucrute,
que a essas alturas esvaía-se em lágrimas.
- Novidade! Você chora vendo os filmes da Lassie. - resmunga Zangão,
oferecendo um lenço ao outro.
- Ele tem o dom da palavra. Fico hipnotizado quando ele fala. -
continua, assoando o nariz. - E como é que você sabe que eu choro
nos filmes da Lassie?
- Você é um alemão beijoqueiro e chorão, já aprendi isso.
- E você é um velho ranzinza e pão-duro. Mas eu gosto de você! Me
dá cá um abraço!
- Nem pensar! Você vai sujar de ranho meu colete novo. Sai pra lá!
- rosna o outro, para em seguida se dirigir ao Alquimista. - Você
até pode ter a consciência tranquila no tal episódio da
restauração do prédio histórico, mas como é que anda sua
consciência quando você lembra que carregou Poliana nos braços e
a ajudou a chegar ao trono?
- Confesso, sempre astuto Zangão, que nesse caso em particular, nem
minhas poções de alquimia conseguem aplacar o inexorável peso de
minha consciência.
- A única forma de você se redimir com sua consciência é ajudar a
derrubar a turma de Poliana na próxima disputa. - afirma o alemão.
- Quem pariu Poliana que lhe tire a chupeta. - declara Zangão,
econômico e prático até nas sentenças.
- Estou ciente de meus mal feitos e minhas intransferíveis
responsabilidades. - responde o doutor.
- Precisamos nos manter unidos e encontrar um nome novo para a
disputa. Já tenho uma lista de possíveis candidatos. - comunica
Chucrute, tirando umas folhas do bolso.
- Tudo isso! - observa Zangão, ajeitando os óculos no nariz, com
olhar descrente. - Tem mais nomes que a convocação para seleção.
E nenhum artilheiro, também.
- É aí que nós entramos. Com nossa experiência, escolheremos um
nome e o tornaremos um novo ídolo do povo, pronto para entrar na
disputa e ser campeão.
- Esse é muito jovem.
- Acho esse muito fraco.
- Esse não tem sustentabilidade política.
- Aquele vai bem no centro, mas não entra bem nos bairros.
- Esse é meio arrogante.
Após horas de confabulações, prós, contras e argumentações, os
três ídolos da oposição, tão convictos na união de esforços
para derrubar Poliana, quase se engalfinhavam no chão. Dedos em
riste, rostos afogueados, humores inflamados.
- Você sempre acha que é o eterno dono da verdade, Zangão! - acusa
o Alquimista.
- Quem falando! Logo você, que vende a alma ao diabo só para ficar
na surdina manipulando em troca de favores. - indigna-se o sisudo.
- Vocês dois são intransigentes! - irrita-se o alemão.
- E você, seu alemão metido, sempre acha que pode fazer parte da
solução!
Emburrados, os três, de braços cruzados, sentados no imenso sofá,
emudeceram por longo tempo. Nenhum deles queria dar o braço a
torcer, como sempre fora. Para quem já foi rei,estar distante da
palavra final parecia muito mais difícil do que não ocupar mais o
trono. Coisas que os reles mortais não compreendiam.
Após infindáveis minutos, mais calmo, Chucrute levanta-se e coloca
um velho DVD no aparelho para apaziguar os ânimos. Na tela, em preto
e branco, a velha cadela Lassie mancava pesadamente em meio aos
escombros de uma cidade bombardeada pela Segunda Guerra. De repente,
os soluços invadem a sala. Zangão chorava copiosamente.
- Você, Zangão! Chorando assistindo a Lassie?! - espanta-se o
alemão.
- Essas ruas todas destruídas... toda essa desolação... Parecem as
ruas da nossa terra! - Soluça Zangão, em meio as lágimas.
- E aquele prédio desabando! - aponta o Alquimista, também aos
prantos. - Tão parecido com nosso velho castelo! - funga,
abraçando-se a Zangão.
Chucrute, curiosamente, observava os dois abraçados e sorria. Com
lágrimas nos olhos, é claro. Ainda havia tempo. Seriam muitas
brigas, acusações, e algumas lágrimas, talvez. Quem sabe poderiam
deixar os egos e interesses de lado e pensar unicamente no futuro
desse reino, que não era deles, nem de ninguém
mais, era de todo o seu povo. Quem sabe o final possa ser diferente,
pensa o alemão, enxugando os olhos e assistindo o mesmo velho e
surrado filme de outrora.
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