sábado, 5 de julho de 2014

As mulas da corte


Após o verdadeiro dilúvio que assolara a região na última semana, Poliana reúne-se com dois de seus bobos para discutir os problemas de mobilidade urbana do reino.
- Eu não aguento mais ouvir as queixas sobre esse maldito trânsito, meus bobos. Esse povinho só sabe reclamar. Queixam-se dos buracos que dificultam a locomoção e também da falta de locais para estacionar. Não decidem se querem andar ou parar. Querem mesmo é se queixar! O choratéu dos comerciantes, então, está me deixando louca. - reclama a perseguida rainha.
- O povo é muito exigente, Poliana. Quer tudo para ontem. Não sabem esperar. Estamos estudando uma forma de resolver definitivamente a questão das vagas de estacionamento. Mas o povo e os comerciantes precisam ter um pouquinho de paciência. - esclarece o bobo do tráfego.
- Estamos estudando isso há anos, meu bobo! Dava para fazer um doutorado no assunto. - ironiza a rainha.
- É que esse inovador modelo de parquímetros é bastante complexo. Mas com as mudanças que faremos nas ruas centrais e a ampliação do estacionamento oblíquo, iremos dobrar o número de vagas de estacionamento rotativo.
- Sei... Inovador, né? - resmunga sua alteza com certo sarcasmo - E essa história de dobrar o número de vagas, me parece história pra boi dormir. Mesmo com o estacionamento oblíquo, não consigo imaginar que se consiga duplicar as vagas no centro.
- Na verdade, rainha, nós dobraremos mesmo as vagas. Mas elas serão distribuídas de forma democrática e inclusiva por todo o reino. Não apenas no centro. Colocaremos parquímetros até na zona rural! - entusiasma-se o bobão.
- Era o que eu imaginava. - desespera-se Poliana - Os comerciantes vão adorar saber que seus clientes precisarão caminhar quilômetros para chegar ao centro.
- Ora, Poliana, o povo precisa deixar de ser tão acomodado! Uma caminhadinha básica faz muito bem para a saúde! - manifesta-se o bobo das obras, Santo Jorge – o exu tranca rua, trovador e desportista - terminando sua sessão de alongamentos.
- Você, meu caro bobo das obras, se conseguisse tapar buracos com a mesma velocidade com que fala bobagens, seria o mais produtivo dos meus bobos.- alfineta a monarca. - Sua última manifestação à Imprensa Livre de que não teríamos tantos problemas com os buracos se nossas ruas fossem de calçamento, foi uma pérola! Não sei o que é pior, aguentar sua cantoria nos corredores do castelo, ou escutar suas entrevistas.
- Obrigada rainha! - agradece o deslumbrado companheiro, dedilhando seu violão - As pessoas não reclamam dos buracos no asfalto, onde o asfalto não existe. É uma estatística impressionante! E além disso o calçamento é ecologicamente mais correto por permitir a penetração da água no solo.
- Nossos buracos no asfalto também. Alguns podem até ser usados como poços artesianos! - continua Poliana, ainda mais sarcástica.
- O problema de nossos súditos é que eles criaram a cultura do tapete negro. Querem asfalto em todas as ruas do reino. Na porta de suas casas. Uma visão burguesa e ecologicamente atrasada. - esclarece o bobo das obras, que como filósofo era um excelente animador de manifestações socialistas.
- Nossos tapetes negros estão parecendo mais uma suja colcha de retalhos. E mal remendada! Já tem buraco se criando até nas avenidas recém pavimentadas. - conclui a monarca.
- Culpa do comodismo e falta de comprometimento com o meio ambiente desse nosso povinho deslumbrado. Se não tivéssemos tantos veículos rodando, não haveriam tantos buracos e o meio ambiente estaria salvo.- continua o conhecedor e engajado bobo das obras.
- Quem sabe, meu adorável Santo Jorge, devêssemos deixar os buracos se unirem a ponto de voltarmos a era do chão batido? O lençol freático agradeceria. Os veículos circulariam com menor velocidade e, ainda, combateríamos a mentalidade burguesa, europeia e atrasada do tapete negro. - sugere a rainha.
- Seria perfeito, alteza! - entusiasma-se o companheiro.
- E poderíamos sugerir a substituição de carros por carroças. Ou mulas! Uma mula ocupa bem menos espaço no estacionamento que os veículos tradicionais. Mataríamos dois problemas com uma ideia idiota só. E de brinde, acabaríamos com a choradeira dos conservadores com relação ao nosso projeto de revitalização do mato. A velharada irá ao delírio ao ver o velho mato ocupado novamente por mulas.
- Perfeito rainha! - entusiasmam-se os dois bobos responsáveis pela mobilidade urbana.
- Meu único problema nos próximos anos – reflete Poliana, circunspecta - será o que fazer com todo o esterco produzido por esses dois sábios bobos juntos. Era bom pensar em construir uma esterqueira no castelo, afinal, se seus bobos não eram suficientemente competentes na produção de soluções práticas para os súditos, produziam bosta em inacreditável abundância. Tudo, ao menos, era ecologicamente sustentável.

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