Uma
encharcada e enlameada Poliana adentra esbravejante em sua redoma,
para atirar-se em seu confortável divã cor de rosa. As provas do
rally tiveram fim. Sucesso de público e organização, mesmo sem ter
sido obra da rainha e sua corte.
- Credo!
Quanto barro e lodo nesse negócio de rally. Olhem só os meus
sapatos caríssimos! Completamente inutilizados! - queixa-se a
contrariada monarca.
- Eu
bem que avisei que botinhas de camurça não combinavam com o
evento. - lembra o assessor de marketing real e personal stilyst
de sua alteza.
- Mas
eu precisava dar um toque de requinte naquela jaquetinha sem graça.
A cor não me valorizava. E depois havia centenas iguais a minha!
Onde já se viu tamanho desaforo! Para o próximo rally exijo um
modelito exclusivo. À altura da minha classe e posição.
- Providenciaremos,
alteza. - concorda um dos bajuladores real.
- Nossa!
Que dor nas pernas! Quem foi que teve a infeliz ideia de criar um
esporte onde nós, os espectadores, temos de ficar horas de pé,
sem qualquer conforto?
- É
um rally, Poliana. Não um desfile de modas. O que você esperava?
Poltronas e ar condicionado? - pergunta o bobo do marketing, um
tanto impaciente. - E depois, você muito pouco ficou em pé. Nós,
seus bobos da corte, lhe carregamos nos ombros a maior parte do
tempo. Como sempre, aliás.
- Não
fizeram mais que a obrigação! Não esqueça, queridinho, que sou
eu que sustento todos vocês em seus carguinhos. Seu bando de
inúteis! - indigna-se sua alteza, ultrajada.
- Na
verdade, quem nos sustenta são os contribuintes.- sussurra o
outro.
- Mas
isso são águas, e barro, passados. O próximo rally será
completamente diferente. Nada de gente pendurada em barranco há
quilômetros da civilização. Meu projeto inclusivo, democrático
e participativo de um rally popular e cidadão, será enfim
implantado.
- Pronto!
Era só o que faltava. Quando a companheirada emenda todas essas
palavras vazias em um projeto, já sei que vou ter de me espichar
em mídia e marketing para justificar mais uma ideia ridícula e
que não serve pra nada. - desabafa o bobo mor do ilusionismo
patrocinado com dinheiro público.
- Pois
você está completamente enganado. Há anos eu venho maquinando uma
forma de fazer essa pocaria de rally, que vocês, seus colonos,
acham grande coisa, em um evento civilizado e a altura do reino que
eu construí.
- E
o que você pretende fazer, rainha? - questiona o bobo, já temendo
a resposta.
- Vou
transferir as provas para a zona urbana do reino, é lógico!-
declara a monarca.
- Na
cidade? Você só pode estar brincando! - espanta-se o outro.
- É
seriíssimo! Eu sou uma desportista nata, e uma visionária sem
precedentes. O esporte só terá a ganhar no meio urbano.
Ganharemos status internacional.
- Já
temos status internacional! E não tem como fazer rally na zona
urbana, Poliana! É um disparate!
- Você,
meu bobo do marketing pirotécnico, anda tão imerso nas
propagandas fantasiosas e mentirosas que divulgamos, que se esquece
de olhar o reino como ele está. Como você enxerga as ruas e
avenidas de nosso reino sem o photoshop?
- Uma
buraqueira infernal.
- Mais
que isso. É buraco e poeira em dias de sol. E ainda mais buracos e
lama em dias de chuva. Cenário perfeito para o rally! E com muito
mais emoção! Boa parte de nossas ruas estão em muito piores
condições que aquelas estradinhas cercadas de pirambeiras e
grotas que vimos nas últimas provas. E devem ficar ainda piores.
Os pilotos vão precisar de muita mais destreza para desviar dos
buracos, não afundar nas crateras ou fraturar a coluna com os
solavancos, e, ainda, saltar em nossas travessias elevadas para
alpinistas. Vai ser pura emoção!
- Você
está louca, rainha?! Isso não tem o menor cabimento. -
desespera-se o outro.
- Sem
contar com a comodidade dos espectadores que poderão assistir a
tudo de suas sacadas e janelas. No conforto de seu lar. Sem chuva e
frio para atrapalhar. Faremos o povinho de Mônaco morrer de
inveja! - entusiasma-se a monarca.
- Em
Mônaco tem prova de Fórmula 1! É completamente diferente!
- É
claro que eu sei as diferenças, seu molóide! - desdenha a rainha
- Os carros são bem menores. Lá o asfalto é um tapete. Os
impostos pagos pelo contribuinte são investidos e não subtraídos.
E a corte real não é uma cambada de inúteis, mamadores dos
recursos públicos, como aqui. Mas eles não tem uma rainha com o
meu encanto, nem a visão privilegiada e de longo alcance que eu
possuo. - conclui, erguendo o queixinho em orgulho.
- Mesmo
assim, rainha! Não tem como transferir o rally para o centro do
reino em tão curto tempo. - argumenta o marqueteiro, quase em
pânico.
- Você
é muito novinho, e ainda inexperiente no ramo da incompetência
administrativa, benzinho. Com um inverno bem chuvoso, nossa
conhecida ineficiência e morosidade em resolver problemas simples
e corriqueiros, como tapar buracos e repavimentar vias públicas,
em poucos meses todas as ruas do reino farão Dakar se corroer de
puro despeito. É só deixar tudo sob minhas ordens e nas mãos,
mais afeitas ao violão que ao trabalho, de nosso bobo das obras.
Até o próximo rally, não haverá mais asfalto entre os buracos.
Só haverá brita sobre pó de brita. Perfeito para as derrapagens!
Pura emoção e deleite para a torcida. Enfim, o rally que eu
idealizei na estrutura viária que eu negligenciei. Não é a cara
de meu reinado? - conclui a oportunista Poliana, como sempre
imbatível na arte de transformar a desgraça dos súditos em
marketing institucional e promoção pessoal.
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