O
Gigante Adormecido hoje não era mais o mesmo. Por trinta dias seria
o reino encantado com que sempre sonhara seu crédulo povo. Sem as
pequenas, e nessa época insignificantes, mazelas diárias da
população. Nada de transporte público sucateado ou insuficiente.
Nenhuma emergência hospitalar superlotada, com falta de
profissionais, medicamentos ou estrutura básica. Nenhum assalto ou
violência. Sem rodovias ou estradas inseguras e abandonadas pelo
poder público. Pobreza, ah a pobreza, essa há anos deixara de
existir. Por decreto da Rainha Mãe, todo aquele que se declarasse
pobre era automaticamente promovido à classe média. Pois esta
semana, como em um passe de mágica, o povo adormeceu na inércia e
incompetência padrão descaso, e acordou na alegre e carnavalesca
terra, padrão Fifa. Era pura euforia, padrão carnaval.
Pena
que seu povo não siga o padrão oficial de educação
internacional - pensa a Rainha Mãe, emburrada, depois de vaias e
palavras grosseiras dirigidas a sua alteza na abertura dos jogos
mundiais. Coisa de uma elite branca, desocupada, e que nasceu em
berço esplêndido - consola seu antecessor no trono e eterno
messias, o Ilusionista. Que sorte da Rainha Mãe poder contar com o
apoio e suporte do popular e carismático Ilusionista. Nunca antes na
história de Gigante Adormecido houve um rei tão destemido, corajoso
e adorado por seu povo. Coragem e hombridade só lhe faltou na hora
de assumir, em frente a milhares de torcedores, a paternidade da
criticada copa de futebol em um país assolado por ineficiência e
insuficiência de serviços básicos. Preferiu, nosso ídolo, ficar
em casa, o destemido, cercado por seus eternos puxa sacos, que não
criticam sequer sua graciosa e hilária tendência em proferir
absurdos em público. E com as janelas fechadas, longe de qualquer
vaia que pudesse macular sua performance messiânica perante a
imprensa internacional.
Desgrudar-se
descaradamente do que compromete sua imagem irretocável, era uma das
especialidades do Ilusionista. Era capaz até de negar sua íntima e
fraterna relação com alguns de seus companheiros mais chegados e
fieis, os mensaleiros. Capaz de alegar nada saber, mesmo o que
ocorria bem debaixo de suas barbas de rei. Tivera até de raspar a
barba, que se tornara rala para encobrir tanta mesada, propina e
descaramento. Mas, ao Ilusionista, nada constrangia. Até sua
covardia era bem justificada. Por mera opção e comodidade escolhera
assistir os jogos no conforto de seu lar, longe do estádio do time
de seu coração e da copa que tanto lutou para trazer a seu reino.
Em nenhum momento pensara em abandonar sua pupila e escolhida, a
Rainha Mãe, sozinha para suportar as vaias e críticas de um povo
justificadamente revoltado e descontente. Como homem, há de se
convir, comportava-se quase sempre, como um verdadeiro molusco. Um
carismático molusco, é verdade. Hábil na arte da manipulação. Em
ambiente fértil aos moluscos estrelados, cercado de asseclas e
companheiros, classificava, em eloquentes brados, os protestos
populares, como obra de uma elite que estudou demais e que se sente
incomodada ao ver os pobres comendo melhor e frequentando aeroportos.
Discursinho delirante, simplório e asqueroso, padrão Hugo Chaves,
capaz de levar a estrelada plateia, padrão bolchevique, ao delírio.
Tudo certo, no país do carnaval, padrão fantasia, dos altos
impostos, padrão Suíça, mas de miseráveis retornos sociais,
padrão Bangladesh.
Para
um povão manipulável, padrão boi de canga, não precisamos
oferecer muito, aconselha o Ilusionista à Rainha Mãe, hoje
descabelada, ofendida e ultrajada. Basta apenas o futebol e a
fantasia, padrão pão e circo, continua o profeta. Um país, padrão
porcaria, sempre há de louvar um governo padrão falsidade e
hipocrisia. Àqueles que ainda sonham com um país, padrão
dignidade, resta apenas espernear, padrão desespero, ou acabar em
calabouços e paredões, ideal padrão socialista.
Felizmente
há o futebol, espetáculo de paixão popular, para nos desviar por
um tempo do padrão bom senso e senso crítico, e nos jogar na
fantasiosa realidade verde e amarela, padrão Gigante Adormecido,
conclui o eterno mestre do descaramento, o Ilusionista, padrão
desfaçatez.
Parabéns, Kátia! Outro texto fabuloso!
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