domingo, 4 de maio de 2014

O clamor do povo no aniversário do reino


Da ampla janela do castelo, por trás da blindagem do vidro fumê que sempre protegera a rainha de qualquer imagem menos romântica e mais realista do lado de fora de seu palácio, Poliana observava extasiada o povo que se aglomerava lá embaixo. Eles vinham chegando aos poucos e já eram mais de uma centena, pelos cálculos da monarca. Era aniversário do reino. Nada mais justo nessas horas, que seus súditos viessem louvar sua alteza, afinal,mesmo que os livros e registros históricos teimassem em dizer o contrário, a rainha e sua corte estavam convictos de que o pequeno reino só passara a existir depois da chegada da desbravadora Poliana ao poder.
Que bela imagem da legítima participação e reconhecimento popular, emociona-se sua alteza. O povo abanava pequeninas bandeiras e gritavam com idolatria o nome de Poliana, a rainha mãe dos excluídos e defensora dos assalariados. Nunca antes na história desse reino os súditos haviam se mobilizado de forma tão espontânea para reconhecer o valor de uma monarca.
- Preparem minha vestimenta de sair da redoma, eu vou descer para ser saudada por meu povo. - ordena a rainha para seus pajens.
- Que fantasia sua alteza vai querer usar nessa ocasião? Popstar socialista? Operária em campo de obras? Agricultora calejada? Empreendedora de sucesso? Matriarca benevolente dos desfavorecidos...
- Hoje é um dia especial. Precisamos compor um figurino diferente. O povo quer ver a rainha que sozinha colocou esse reinozinho mequetrefe no mapa. - anuncia a monarca passando os olhos pelas fantasias e adereços disponíveis. - Vou colocar o capacete de operária para mostrar que eu mesmo ajudo a levantar cada parede de crescimento por essas bandas.
- Não seria mais interessante o chapéu de agricultora, mostrando suas históricas raízes de colona? - indaga um dos pajens.
- Nem   pensar! Detesto esse chapelão. Fico parecendo uma jeca desengonçada. E além do mais, é só eu abrir a boca nos discursos que todo mundo percebe minhas raízes coloniais.- constata a rainha, continuando a compor o figurino.- Vou colocar uma camiseta do movimento sindical, afinal o Dia do Trabalhador está próximo. E minhas botas amarelas, mostrando que sou também uma desbravadora.
- Suas botas amarelas estão cobertas de piche, majestade. A senhora as usou na última vez que inaugurou um buraco  do asfalto recém coberto, lembra?
- É mesmo! Me atolei até o joelho naquela meleca mal feita. Tiveram de chamar um guincho pra me içar. Foi um fiasco! - recorda-se Poliana – Mas vou usar as botas mesmo assim. Mostrarei meu empenho na repavimentação da malha asfáltica e com a trafegabilidade no reino. - continua a rainha terminando de se vestir.
Enquanto isso, adentra apressado na redoma, o bobo do marketing e mídia, olhando estarrecido a confusão de fantasias espalhadas pelo local. - O que significa toda essa quinquilharia? - questiona um tanto irritado.
- Eu estou me fantasiando para receber os cumprimentos de meus súditos. Que tal estou, queridinho? - pergunta a monarca, dando voltinhas na sala.
- Ridícula! - rosna o outro, esquecendo-se momentaneamente de que lado do poder e do senso crítico se encontrava nesse momento. - Onde você pensa que vai vestida desse jeito, Poliana?
- Ora, meu caro. Me atirar nos braços do povão, é lógico! Me admiro de alguém tão bem informado quanto você, meu fiel bobo, não conseguir enxergar um palmo diante do nariz. Você não viu a multidão lá fora clamando por sua magnífica monarca? Abanando bandeirinhas em minha homenagem? O povo quer carregar novamente nos braços sua adorada rainha. Por isso, vá até lá e diga ao povo que vou! - ordena a deslumbrada Poliana, fazendo caras e poses em frente ao espelho.
- Você vai é tratar de tirar já essa roupa horrorosa e colocar algo bem prático e confortável. Precisamos tirar você daqui o mais depressa possível.- informa o marqueteiro atirando um par de tênis para a rainha.
- Mas por que? - questiona Poliana já cruzando os braços emburrada e ensaiando um beicinho de contrariedade.
- Porque, minha alteza – começa o outro impaciente – aquele povo todo lá fora está ameaçando invadir o castelo. E não é para beijar suas adoradas mãozinhas, mas para torcer seu pescoço real! As bandeirinhas que você enxerga da embaçada vidraça de sua janela, são os carnês do IPTU que os contribuintes acabaram de receber. Eles querem o seu fígado, não seus discursos fajutos! Agora, trate de calçar esses tênis e arrumar sua mala. Nós vamos fugir pulando a janela dos fundos e escondê-la por uns dias em um lugar onde ninguém possa vê-la, até os ânimos esfriarem.
- Vão me mandar de novo para a torre de marfim?! - choraminga Poliana.
- Não. Escolhemos um lugar mais discreto dessa vez. Você vai se esconder nos canos da transposição do rio. São quilômetro de área para sua alteza usufruir, e não passa nada de útil, nem mesmo água, por lá. - conclui o marqueteiro, arrastando Poliana sorrateiramente pelos fundos do castelo.
  Enquanto isso, em frente ao castelo, os contribuintes indignados questionavam em uníssono para que bolsos seriam transpostos os salgados reajustes que com o suor de seu trabalho estavam pagando este ano.

Um comentário:

  1. Nooooossssaaaa. Isso acontece também no reino em que resido !!!!!!!!!!! Seria o mesmo????????!!!!!!!!!!!!!

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