Com olhos
serenos e sempre atentos, o velho observava a chuva mansa e contínua
que caía desde os primeiros minutos desse novo ano. Esperada e bem
vinda chuva, comemora o idoso. As águas que corriam pelas ruas e
sarjetas nos últimos dias, pareciam levar consigo as sobras dos
encantos e sonhos das festas de final de ano. E deixavam a esse
velho já uma saudade sentida. Mesmo que temperada por excessiva
ânsia consumista, nessa época as pessoas pareciam realmente tocadas
por certa nostalgia das coisas simples e que não podiam ser
embrulhadas para presente. Família. Amigos. Saúde. Valores que se
perdiam na correria do dia a dia. Conceitos que jaziam esquecidos ao
longo do ano. Sentimentos adormecidos na maior parte do tempo.
Nessas
noites festivas, como que por encanto, todos sentavam-se a mesa para
a ceia. Famílias inteiras se encontravam. Antigos ranços e
picuinhas eram deixados de lado. Crianças brincavam como crianças,
num alvoroço que, para esse ancião nostálgico, soava como música
natalina. Seus filhos e netos até se esqueciam daqueles irritantes
aparelhos que mandam mensagens, e conversavam uns com os outros como
nos velhos tempos. Riam e relembravam antigas histórias de suas
peraltices juvenis. Abraçavam-se e beijavam-se, como família e
amigos. Pura magia de final de ano! Uma pena durar tão pouco,
suspira o velho. Logo estouram os últimos foguetes e tudo retorna ao
que era antes. Valores simples voltam ao esquecimento, por não
poderem ser comprados ou vendidos, e não caberem em caixas
coloridas.
A chuva,
agora, levava o que sobrara dos foguetes. Lavava o que ficara do ano
findo, observa o idoso. Nada mais lembrava aqueles poucos dias de
encantamento. A esse octogenário melancólico, só restava esperar.
Esperar que tivesse ainda boa saúde. Saúde para galgar mais um ano
e então poder gozar novamente da magia das festas, ao lado da
família e dos amigos. Em cerca de trezentos e sessenta dias, saúde,
família e amigos, teriam valor novamente, acredita o velho
esperançoso, olhando a chuva através da vidraça. Resta apenas
torcer e esperar pelo próximo ano. No próximo ano, quem sabe,
pequenos valores teriam algum valor de mercado.
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