Deste
ano não passava, garantia a rainha. A questão do trânsito no reino
seria finalmente resolvida após anos de promessas e enrolações.
Ninguém, nem mesmo sua alteza, aguentava mais as lamúrias e
lamentações dos súditos e de Imprensa Livre cobrando ações mais
efetivas para o problema. Contabilizar como grandioso feito de sua
corte a reabertura do que não devia ter sido fechado, o
remodelamento de uma única rótula, com a colocação de meia duzia
de gelos baianos no meio da pista, e a construção de um novo
terminal de transporte público, já era assunto gasto e surrado
desde a última turnê a Horário Eleitoral. Poliana tinha
consciência de que precisava avançar bem mais rápido que os
automóveis em horário de pico. E como fazer isso em uma questão
tão técnica e complexa como essa? Nossa visionária rainha, como
sempre, tinha a resposta. Convocara um seleto grupo de conhecedores
para decidirem juntos o futuro do tráfego e o rumo dos
engarrafamentos. Seus bobos da corte é claro! Todos perfeitamente
qualificados para palpitarem no assunto. Com a vantagem especial de
que nenhum deles ousava discordar de sua alteza. Mesmo os recém
chegados eram conhecedores das famosas crises de TPM da rainha quando
contrariada. E preferiam manter suas cabeças e seus carguinhos
perfeitamente alinhados.
- A
maior bandeira que vamos levantar nesse ano será a dos meios
alternativos de transporte e locomoção, rainha. É um assunto
ecologicamente correto, moderníssimo e que ganha cada vez mais
adeptos da geração saúde. Vai render muita mídia e propaganda
real. Talvez até algum prêmio para sua alteza. O uso de
bicicletas, por exemplo, é um sucesso na Holanda! - explana
Golesminha, especialista em abanar bandeirinhas e vender ideologias
utópicas
- Não
podemos nos esquecer, queridinho, que estamos bem mais para Índia
do que para a Holanda, em quase tudo, principalmente no trânsito.
- intervém secamente, a monarca.
- Precisamos
estimular o uso de bicicletas como transporte alternativo para
reduzir o número de veículos circulando Poliana. - afirma Santo
Jorge, padroeiro dos desocupados e novo bobo das obras, que não
tirava o capacete e as cotoveleiras nem na hora das reuniões.
- E
como faremos isso meu caro? Nossos súditos são muito acomodados,
adoram seus automóveis, não acredito que troquem os veículos por
bicicletas tão facilmente. Eu mesma não iria sair pedalando com
um calorão desses! Ainda mais com tanta lomba nesse reino.
- O povo precisa é
de incentivo, rainha. Quando entenderem que é muito mais cômodo e
barato andar de bicicleta, vão aderir a ideia. Temos certeza. -
reforça o bobo do trânsito – Já estamos trabalhando para
melhorar as condições das vias, reduzindo os desníveis e
solavancos aos ciclistas. Por isso implantamos o alinhamento
asfáltico.
- O que diabos é
alinhamento asfáltico? Mais algum rolo que estamos fazendo com
dinheiro público?
- Também, mas o
projeto é sério. Estamos alinhando o asfalto das vias com as
calçadas e eliminando o meio-fio. Isso facilita a circulação das
bicicletas e evita o empoçamento de água nas laterais das
avenidas. Questão de segurança no trânsito, você sabe. Diminui
a aquaplanagem.
- Sei. E vai
aumentar o gasto dos comerciantes locais com baldes e rodos também.
- conclui Polina. - E que tipo de incentivo vocês tem em mente
para fazer nosso povo abraçar a ideia das bicicletas? - indaga a
rainha, ainda descrente.
- Se
me permite Poliana, tenho algumas ideias práticas. - continua o
bobo das obras, com ares de doutor - Modéstia a parte, eu sou
entendido no assunto. Sempre fui um pedalão, desde os tempos de
escola. Pedalei nos sindicatos, no movimento estudantil, na Escola
de Ensino Superior, e tenho pedalado todos esses anos de seu
reinado.
- Eu
sei disso, Santo Jorge. Todos nós sabemos que você sempre gostou
mais de pedalar do que trabalhar. Mas se isso servir de
qualificação, vai faltar bicicleta pra tanta companheirada que
segue essa sua ideologia. O que quero saber é que tipo de estímulo
prático vocês vão dar para o povo normal, que trabalha de sol a
sol para sustentar nossas estripulias e manobras radicais?
- Na
realidade não se trata propriamente de estímulo. Sera uma espécie
de coerção.
- Vai
me dizer que vocês pretendem obrigar os súditos a pedalar
também?!
- Nada
tão radical ou comunista Poliana. Pensamos em reduzir uma das
pistas nas avenidas principais do reino para criar uma ciclovia.
- Mas
o projeto não era fazer a tal ciclovia nos canteiros centrais. -
questiona sua alteza.
- Era,
mas se reduzirmos os canteiros, onde vamos plantar nossas flores e
trocar a grama a cada 3 meses? Essa tem sido uma das ações mais
importantes e frequentes de nosso reinado nesses anos todos. -
esclarece o bobo do marketing.
- Tem
razão. Nosso projeto de revitalização permanente dos canteiros
iria asfalto abaixo. - concorda a monarca. - Mas se reduzirmos
ainda mais o espaço para os carros o trânsito vai se tornar
insuportável!
- Essa
é a fórmula, alteza. Fazer o trânsito ficar tão congestionado e
caótico que os motoristas se sintam obrigados a andar de
bicicletas e patinetes!
-Parece
uma boa ideia. Como aquela que tivemos de fechar os retornos para
fazer os automóveis circularem mais, dando a impressão de que o
trânsito fluía.
- Exatamente!
- confirma o bobalhão do trânsito sorridente.
- E o
asfaltamento das demais ruas intransitáveis do reino? E os
semáforos inteligentes, o fim das rótulas e a implantação das
vias de mão única que estamos prometendo há anos?
- Faz
tudo parte do plano, Poliana. Visualiza a cena dos próximos meses.
Rótulas nas ruas principais sendo demolidas. Asfalto escorrendo
nas calçadas. Sinaleiras piscando enlouquecidas. Meia dúzia de
azuizinhos atrapalhando o trânsito. Essa colonada barbeira perdida
com a mudança de mão. O que você vê?
- O
retrato do inferno com a moldura do desespero!
- Isso
mesmo! Ninguém mais vai ousar sair de carro num cenário desses!
- Perfeito!
Nada como ouvir gente entendida de vez em quando. - entusiasma-se
Poliana. - Vamos implantar logo esse magnífico projeto. Vocês tem
meu total apoio. Só preciso confessar uma coisinha. - continua
Poliana encabulada – Eu não sei andar de bicicleta.
- Oh!
Que peninha Poliana. Mas não se sinta excluída magnânima.
Existem outro meios de transporte alternativo. Vamos providenciar
um para você. - prontifica-se o prestativo companheiro - Que tal
um jegue?
- Jegue?!
- pergunta Poliana surpresa, deixando os bobos apreensivos com a
perspectiva de uma crise de histeria real. - Boa ideia! Para quem
já convive a tanto tempo com asnos... Podem encomendar um Jegue
para mim. Vou aderir a nova moda do transporte ecologicamente
correto. - anuncia a rainha, satisfeita com a desenvoltura de sua
equipe técnica em engenharia de trânsito.
O pior é que tudo é uma verdade tão clara e todo mundo faz de conta que vê.
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