Sozinho na sala de estar, assistindo ao noticiário, o velho
remoía as lembranças de uma vida. Com quase noventa anos parecia já ter visto
de tudo. Se ainda não vira tudo, muito pouco devia faltar agora. Esse era o
preço a pagar pela almejada longevidade. Se tivesse fumado alguns palheiros a
mais em sua vida, talvez tivesse perdido a oportunidade ímpar de confrontar de
perto tantas incoerências. As certezas e convicções, aprendera o velho com a
idade, quase sempre mudavam de forma com o passar dos anos. As ideologias
também, constata o velho, ainda um pouco assombrado. Discursos! Sempre adorara
os discursos. Talvez por ser um tolo ignorante que pouco pudera frequentar a
escola. Admirava a eloquência e oratória perfeita dos palanques. A punjança
cortante e comovente das palavras bradadas e jogadas, como profecias, ao povo.
Só o tempo, e a maturidade, mostravam o que eram. Palavras apenas. Tristemente
vazias de significado.
Em tantas décadas de vida já presenciara toda forma de poder
nesse país. Da República Velha a Nova República. Da ditadura a democracia. Vira
seu povo nas ruas gritando por diretas. Empolgara-se com as primeiras eleições
pós-abertura. Emocionara-se com a luta ferrenha e destemida das ditas esquerdas
contra a corrupção e a favor da justiça e da liberdade de expressão.
Decepcionara-se ao ver os mesmos chafurdarem na lama densa do descaramento e
desfaçatez. Deprimira-se com a completa ausência de hombridade de conhecidos
baluartes da ética e retidão. Lamentava, até hoje, pela fraqueza de caráter de
alguns. Lastimava, ainda mais, pela fragilidade assombrosa da tão sonhada
democracia. Com que tristeza via as mesmas figuras que há poucas décadas defendiam
o fim da repressão, o voto direto e a liberdade de imprensa, erguerem-se, sem
vergonha ou pudor, em favor do controle da mídia e do Judiciário. Não se trata,
é claro, de nenhuma medida pseudo-totalitária ou antidemocrática. Nem mesmo um
golpe sorrateiro no tão sonhado Estado Democrático de Direito. Há de se fazer
as devidas correções semânticas ou de forma. Chama-se, agora, controle de
democratização e tudo fica onde sempre esteve. Nas mãos daqueles que pouco se
importam com seu povo e sua pátria.
O peso da idade também tinha lá suas vantagens. Hoje se
divertia com discursos que antigamente lhe arrepiavam. Como era patético ver Governadores
que até ontem criticavam bravamente seus antecessores pelos ínfimos salários
pagos aos professores, persistirem na mesma política, e ainda se acharem
perseguidos por uma imprensa golpista que não entende seu novíssimo modelo de
gestão. Provavelmente, as dificuldades visuais de ancião é que faziam com que achasse
tudo uma grande piada. Pura senilidade, com certeza. Deviam proibir aos velhos
de ler jornais. Talvez isso já estivesse nos planos também. Com sorte, não
viveria o suficiente para ver este dia chegar. Quem sabe viveria o bastante
para saborear as magníficas azeitonas que o Governador fora conhecer no Oriente
Médio. Pareciam ser realmente divinas, a contar pela enorme comitiva que o
acompanhava na viagem. Pena, que a esse velho patético, já faltavam os dentes.
Teria que contentar-se em chupar apenas os caroços. Como as sofridas e
dedicadas professoras, alicerce de qualquer nação decente. Teriam, essas
incansáveis batalhadoras, que esperar, pacientemente, pelos aperitivos
ofertados por nossos ilustres governantes. Esse filme, pensa o velho, já vira dezenas de
vezes, sem nunca deixar de chorar. Talvez o Governador tivesse mesmo razão.
Tudo era culpa da imprensa golpista. Devia ter deixado, há décadas, de ler
jornais. Ou fumado mais alguns palheiros, constata o velho tristonho.
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