Sentados ao redor de uma mesa sem
arestas estavam os três. Três antigos reis desse reino. Décadas de história em
um mesmo ambiente. Um passado de divergências e disputas, agora deixado de
lado. Era outro o presente. Eram outras as intenções. E os interesses. Três
poderosas forças que mostraram novamente seu poder. Unidos, como temiam os
adversários, e desacreditaram tantos desavisados e incautos. Vencedores. Agora,
ainda mais do que antes. Era hora de comemorar a vitória. Mas, para esses
velhos, as comemorações eram supérfluas, o jogo estava apenas começando.
- Bati! – comemora Chucrute, o
ariano, com o largo sorriso que o caracterizava. – Uma bela cartada! Com uma
Dama, doze pontos, derrubei outra dama, a das treze estrelas! – festeja com seu
jeitão efusivo.
- Tinha eu, meu velho e estimado
amigo, a indubitável certeza de que lograríamos êxito nesse tortuoso e
competitivo caminho. Congratulações! – parabeniza o Alquimista, com voz
cadenciada.
- Doze pontos. Foi quase uma
zebra. Mas você conseguiu alemão. – acrescente Zangão - o sisudo - econômico
até nas comemorações.
- Pois não teria conseguido sem
vocês dois, meus velhos novos amigos! – exulta Chucrute, abraçando
calorosamente os outros dois.
- Tá, tá, tá... – resmunga
Zangão, desvencilhando-se do aperto. – A turnê a Horário eleitoral já acabou.
Chega de tanto abraço.
- Me recordo como se hoje fosse,
prezado alemão, do dia em que o acolhi em meus braços, décadas atrás. Você, tão
jovem na época, mas tão repleto de vontades. E deveras questionador. – relembra
o Alquimista, perdido em suas memórias. – Você me azucrinava tanto, Chucrute, que
fui obrigado a lhe arrumar um cargo que o mantivesse algumas horas por dia bem
distante de mim. Pois minha paz de espírito de outrora, hoje resultou em bons
frutos.
- É. Questionador, beijoqueiro e
teimoso. Excêntrica mistura para um rei. – constata o sisudo, rosnando de lado.
- Teimoso não, Zangão! – sorri
Chucrute, apoiando o braço nos ombros do outro. – Sou flexível como bambu. O
bambu se curva frente aos maiores vendavais, e retorna sempre e firme à posição
original. Paciência e determinação. Vocês sabiam que, após plantada, a semente
de bambu leva cinco anos até começar a brotar? E que a curvatura de um bambu
pode chegar a...
- Tá bom, tá bom! – interrompe
Zangão, o que prometia ser uma aula de botânica e espiritualidade Chinesa. –
Você não é teimoso, é só persistente.
- De fato, amigo ariano, sua
persistência causa inveja a qualquer de seus adversários. Como os bambus, você
ficou soterrado em cinco disputas. Agora, finalmente brotou. Que seus brotos
sejam tenros e rígidos, como sempre tenro é o poder, eu bem sei. – discorre o
Alquimista, nostálgico.
- Eu tenho, amigos Zangão e
Alquimista, a mais límpida e clara convicção de que como novo rei, humildemente
escolhido pelo meu querido e estimado povo, precisarei atender as necessidades
urgentes da população. Não posso esquecer, e não esquecerei, do pedido que me
fez a senhora Stanislava Shryghinskwiscky – relata o ariano, com pronúncia
perfeita. – para que fossem agilizados seus procedimentos cirúrgicos, marcados
para 2023. – emociona-se o rei eleito. – Nem poderei dar as costas à pequena
Maykelen Ketlhyin Pamella das Dores, que aos dez anos de idade me implorou por
uma castração de seu gato Mocotó. E, lembro como se fosse hoje, e meus olhos se
enchem de lágrimas – discorre Chucrute, lacrimejante. – do seu Astrogildo
Ezequiel, filho da dona Secundina, neto de Primeirina, vizinho do casal Setembrino
e Agostina, que são donos dos poodles Sansão e Dalila, que moram na rua...
- Aff! – resmunga Zangão,
balançando a cabeça e deixando de ouvir a extensa explanação do Alemão – Isso é
alguma doença? – pergunta ao Alquimista.
- É uma memória prodigiosa e
invejável. E uma chatice incontestável. – responde o doutor, sucinto.
- Mas vai melhorar com o tempo? –
indaga o sisudo.
- Não. Vai piorar. – prognostica
o Alquimista, lacônico.
- Como foi que nos metemos nisso,
Alquimista? – pergunta Zangão, com as mãos na cabeça, observando seu mais novo
pupilo que continuava a discorrer nomes, sobrenomes e endereços.
- Parecia uma auspiciosa ideia na
época. – reponde o outro, agora um tanto titubeante.
- Tomara que a memória dele seja
boa também em cifras, finanças e orçamentos. – torce comedidamente Zangão.
- Tomara que ele não esqueça de
meu apoio e minhas finanças. – sussurra o Alquimista, pensativamente.
- E quais serão seus próximos
passos, Chucrute? – indaga Zangão, preocupado.
- Caro ex-rei, Zangão. Preciso retribuir
a confiança e o afeto em mim depositados pelo amado povo desse reino. Se por
mil anos trabalhasse não seria suficiente para pagar o carinho que recebi
nessas últimas semanas.
- Você não vai ter mil anos,
ariano. Apenas quatro. E carinho, beijos e abraços não vão resolver os
problemas dos contribuintes. Trate de pensar em receitas e despesas. Em corte
de gastos e na economicidade do dinheiro público. – aconselha o sisudo,
objetivo como sempre.
- Sim, sim! – gargalha Chucrute,
abraçando fortemente o outro. – Você já me disse isso tantas vezes nos últimos
meses, Zangão, que mesmo que eu tivesse a memória de um peixinho de aquário, eu
já teria decorado. Por falar nisso, vocês sabiam que pesquisadores australianos
demonstraram que um peixe pode se lembrar de seus predadores por até um ano, e
que...
- Tá bom! Tá bom! – corta Zangão uma
outra aula, dessa vez de biologia marinha. – Espero que você se lembre de seus
erros do passado, e que não torne a repeti-los.
- E evite, fraterno Chucrute, as
más companhias de outros tempos. Sua inexorável persistência em cercar-se de
amizades questionáveis já lhe renderam suficientes dissabores e derrocadas. –
relembra o Alquimista.
- Sou, meus dois amigos, hoje, um
outro homem. Amadureci muito nesses dezesseis anos. Hoje sou firme como um
carvalho! – responde o outro, com seriedade.
- De repolho à carvalho, é uma
evolução considerável. – constata Zangão, com um discreto torcer de lábios,
provavelmente um sorriso de escárnio.
- Vocês dois são meus mais fiéis
amigos, estou certo disso. – afirma Chucrute. -
E espero contar com seus conselhos durante meu reinado. Aprendi muito
com vocês nesse tempo, e me dedicarei a aprender cada vez mais. Serei um aluno
aplicado. Suas experiências abrilhantarão meu governo. Ao lembrar da confiança
com que vocês me presentearam me surgem lágrimas nos olhos. – continua o
ariano, com voz embargada e o rosto molhado.
- Toma isso, seu chorão! –
resmunga zangão, oferecendo um lenço de tergal ao outro. A essas alturas da
trajetória já estava acostumado com as frequentes enxurradas de lágrimas de seu
novo amigo.
Depois de assoar o nariz, secar
os olhos e devolver o lenço ranhento ao sisudo, acrescenta Chucrute: - Eu
estava pensando ... Tenho apenas uns dois amigos da velha guarda, que talvez eu
convide para compor meu reinado. Eles estão há anos longe do reino. O Santinho me telefonou para me parabenizar
pela vitória e tem insistido em voltar. Então eu pensei em...
- Eu lhe arranco essas orelhas
vermelhas, seu alemão teimoso! – grita Zangão, em um incomum arroubo de fúria.
- E eu lhe aplico uma mistura
química que lhe fará hibernar por mais duas décadas! – completa o Alquimista,
igualmente irritado.
- Hahaha! – gargalha Chucrute, se
contorcendo em zombaria. – Estou brincando! Só brincando! Vocês precisavam ver as
caras que fizeram. – diverte-se o ariano, com o rosto rubro, abraçando entusiasticamente
os dois homens e depositando beijos estalados nas calvas cabeças.
- Brincadeira sem graça! –
reclama Zangão, desprendendo-se do abraço e marchando com passos firmes para
a saída. – Quase me mata do coração! Vou ter de procurar um cardiologista. E
você sabe o preço de uma consulta?! Custa os olhos da cara! – continua
grunhindo o sisudo.
- E eu vou precisar de um
calmante depois desse susto! – desabafa o Alquimista, acompanhando Zangão para
fora do recinto.
Ainda sorrindo, Chucrute segue os
amigos, abandonando também o local. O trono o espera, logo adiante. Bem sabe o
alemão que a desconfiança de muitos paira sobre sua cabeça e seu reinado. Que o
futuro rei, escolhido para ser a mudança, saiba honrar não suas alianças, mas o
crédito que lhe foi concedido por seu povo. Honrar ao povo, é o que se espera
de um rei. Que as lições do passado tenham sido aprendidas, e não apenas
decoradas.
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