terça-feira, 18 de outubro de 2016

Trinca de reis

Sentados ao redor de uma mesa sem arestas estavam os três. Três antigos reis desse reino. Décadas de história em um mesmo ambiente. Um passado de divergências e disputas, agora deixado de lado. Era outro o presente. Eram outras as intenções. E os interesses. Três poderosas forças que mostraram novamente seu poder. Unidos, como temiam os adversários, e desacreditaram tantos desavisados e incautos. Vencedores. Agora, ainda mais do que antes. Era hora de comemorar a vitória. Mas, para esses velhos, as comemorações eram supérfluas, o jogo estava apenas começando.

- Bati! – comemora Chucrute, o ariano, com o largo sorriso que o caracterizava. – Uma bela cartada! Com uma Dama, doze pontos, derrubei outra dama, a das treze estrelas! – festeja com seu jeitão efusivo.

- Tinha eu, meu velho e estimado amigo, a indubitável certeza de que lograríamos êxito nesse tortuoso e competitivo caminho. Congratulações! – parabeniza o Alquimista, com voz cadenciada.

- Doze pontos. Foi quase uma zebra. Mas você conseguiu alemão. – acrescente Zangão - o sisudo - econômico até nas comemorações.

- Pois não teria conseguido sem vocês dois, meus velhos novos amigos! – exulta Chucrute, abraçando calorosamente os outros dois.

- Tá, tá, tá... – resmunga Zangão, desvencilhando-se do aperto. – A turnê a Horário eleitoral já acabou. Chega de tanto abraço.

- Me recordo como se hoje fosse, prezado alemão, do dia em que o acolhi em meus braços, décadas atrás. Você, tão jovem na época, mas tão repleto de vontades. E deveras questionador. – relembra o Alquimista, perdido em suas memórias. – Você me azucrinava tanto, Chucrute, que fui obrigado a lhe arrumar um cargo que o mantivesse algumas horas por dia bem distante de mim. Pois minha paz de espírito de outrora, hoje resultou em bons frutos.

- É. Questionador, beijoqueiro e teimoso. Excêntrica mistura para um rei. – constata o sisudo, rosnando de lado.

- Teimoso não, Zangão! – sorri Chucrute, apoiando o braço nos ombros do outro. – Sou flexível como bambu. O bambu se curva frente aos maiores vendavais, e retorna sempre e firme à posição original. Paciência e determinação. Vocês sabiam que, após plantada, a semente de bambu leva cinco anos até começar a brotar? E que a curvatura de um bambu pode chegar a...

- Tá bom, tá bom! – interrompe Zangão, o que prometia ser uma aula de botânica e espiritualidade Chinesa. – Você não é teimoso, é só persistente.

- De fato, amigo ariano, sua persistência causa inveja a qualquer de seus adversários. Como os bambus, você ficou soterrado em cinco disputas. Agora, finalmente brotou. Que seus brotos sejam tenros e rígidos, como sempre tenro é o poder, eu bem sei. – discorre o Alquimista, nostálgico.

- Eu tenho, amigos Zangão e Alquimista, a mais límpida e clara convicção de que como novo rei, humildemente escolhido pelo meu querido e estimado povo, precisarei atender as necessidades urgentes da população. Não posso esquecer, e não esquecerei, do pedido que me fez a senhora Stanislava Shryghinskwiscky – relata o ariano, com pronúncia perfeita. – para que fossem agilizados seus procedimentos cirúrgicos, marcados para 2023. – emociona-se o rei eleito. – Nem poderei dar as costas à pequena Maykelen Ketlhyin Pamella das Dores, que aos dez anos de idade me implorou por uma castração de seu gato Mocotó. E, lembro como se fosse hoje, e meus olhos se enchem de lágrimas – discorre Chucrute, lacrimejante. – do seu Astrogildo Ezequiel, filho da dona Secundina, neto de Primeirina, vizinho do casal Setembrino e Agostina, que são donos dos poodles Sansão e Dalila, que moram na rua...

- Aff! – resmunga Zangão, balançando a cabeça e deixando de ouvir a extensa explanação do Alemão – Isso é alguma doença? – pergunta ao Alquimista.

- É uma memória prodigiosa e invejável. E uma chatice incontestável. – responde o doutor, sucinto.

- Mas vai melhorar com o tempo? – indaga o sisudo.

- Não. Vai piorar. – prognostica o Alquimista, lacônico.

- Como foi que nos metemos nisso, Alquimista? – pergunta Zangão, com as mãos na cabeça, observando seu mais novo pupilo que continuava a discorrer nomes, sobrenomes e endereços.

- Parecia uma auspiciosa ideia na época. – reponde o outro, agora um tanto titubeante.

- Tomara que a memória dele seja boa também em cifras, finanças e orçamentos. – torce comedidamente Zangão.

- Tomara que ele não esqueça de meu apoio e minhas finanças. – sussurra o Alquimista, pensativamente.

- E quais serão seus próximos passos, Chucrute? – indaga Zangão, preocupado.

- Caro ex-rei, Zangão. Preciso retribuir a confiança e o afeto em mim depositados pelo amado povo desse reino. Se por mil anos trabalhasse não seria suficiente para pagar o carinho que recebi nessas últimas semanas.

- Você não vai ter mil anos, ariano. Apenas quatro. E carinho, beijos e abraços não vão resolver os problemas dos contribuintes. Trate de pensar em receitas e despesas. Em corte de gastos e na economicidade do dinheiro público. – aconselha o sisudo, objetivo como sempre.

- Sim, sim! – gargalha Chucrute, abraçando fortemente o outro. – Você já me disse isso tantas vezes nos últimos meses, Zangão, que mesmo que eu tivesse a memória de um peixinho de aquário, eu já teria decorado. Por falar nisso, vocês sabiam que pesquisadores australianos demonstraram que um peixe pode se lembrar de seus predadores por até um ano, e que...

- Tá bom! Tá bom! – corta Zangão uma outra aula, dessa vez de biologia marinha. – Espero que você se lembre de seus erros do passado, e que não torne a repeti-los.

- E evite, fraterno Chucrute, as más companhias de outros tempos. Sua inexorável persistência em cercar-se de amizades questionáveis já lhe renderam suficientes dissabores e derrocadas. – relembra o Alquimista.

- Sou, meus dois amigos, hoje, um outro homem. Amadureci muito nesses dezesseis anos. Hoje sou firme como um carvalho! – responde o outro, com seriedade.

- De repolho à carvalho, é uma evolução considerável. – constata Zangão, com um discreto torcer de lábios, provavelmente um sorriso de escárnio.

- Vocês dois são meus mais fiéis amigos, estou certo disso. – afirma Chucrute. -  E espero contar com seus conselhos durante meu reinado. Aprendi muito com vocês nesse tempo, e me dedicarei a aprender cada vez mais. Serei um aluno aplicado. Suas experiências abrilhantarão meu governo. Ao lembrar da confiança com que vocês me presentearam me surgem lágrimas nos olhos. – continua o ariano, com voz embargada e o rosto molhado.

- Toma isso, seu chorão! – resmunga zangão, oferecendo um lenço de tergal ao outro. A essas alturas da trajetória já estava acostumado com as frequentes enxurradas de lágrimas de seu novo amigo.

Depois de assoar o nariz, secar os olhos e devolver o lenço ranhento ao sisudo, acrescenta Chucrute: - Eu estava pensando ... Tenho apenas uns dois amigos da velha guarda, que talvez eu convide para compor meu reinado. Eles estão há anos longe do reino.  O Santinho me telefonou para me parabenizar pela vitória e tem insistido em voltar. Então eu pensei em...

- Eu lhe arranco essas orelhas vermelhas, seu alemão teimoso! – grita Zangão, em um incomum arroubo de fúria.

- E eu lhe aplico uma mistura química que lhe fará hibernar por mais duas décadas! – completa o Alquimista, igualmente irritado.

- Hahaha! – gargalha Chucrute, se contorcendo em zombaria. – Estou brincando! Só brincando! Vocês precisavam ver as caras que fizeram. – diverte-se o ariano, com o rosto rubro, abraçando entusiasticamente os dois homens e depositando beijos estalados nas calvas cabeças.

- Brincadeira sem graça! – reclama Zangão, desprendendo-se do abraço e marchando com passos firmes para a saída. – Quase me mata do coração! Vou ter de procurar um cardiologista. E você sabe o preço de uma consulta?! Custa os olhos da cara! – continua grunhindo o sisudo.

- E eu vou precisar de um calmante depois desse susto! – desabafa o Alquimista, acompanhando Zangão para fora do recinto.

Ainda sorrindo, Chucrute segue os amigos, abandonando também o local. O trono o espera, logo adiante. Bem sabe o alemão que a desconfiança de muitos paira sobre sua cabeça e seu reinado. Que o futuro rei, escolhido para ser a mudança, saiba honrar não suas alianças, mas o crédito que lhe foi concedido por seu povo. Honrar ao povo, é o que se espera de um rei. Que as lições do passado tenham sido aprendidas, e não apenas decoradas.

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