domingo, 13 de setembro de 2015

A revolução dos mimados


 Poliana e sua cada vez mais vasta corte, assistiam abismados a nova onda de protestos que virara moda no reino. Como eram diferentes as cores e entonações de manifestantes quando vistos do lado de cá, pensa a socialista Poliana, do alto de seu castelo. Democracia e liberdade de expressão tornavam-se uma incômoda e desconfortável pedra no sapato quando se está no poder, e antigas bandeiras de seus companheiros, hoje, pareciam ridículas e sem fundamento.
- De onde surgiu essa gente toda que está em frente ao meu castelo?! - questiona a irritadiça rainha, preocupada com o risco de desabamento do velho e judiado prédio com tantas pessoas amontoadas nas escadarias centrais.
- São sem-teto, rainha. Reivindicam o direito à moradia. - elucida um assessor.
- Sem-teto, é? E estavam se escondendo onde até hoje? Se toda essa gente estivesse morando nas ruas, as ruas do reino seriam intransitáveis, ora bolas! Isso até parece os tradicionais embustes orquestrados por nosso clã! - constata a rainha, indignada, observando o movimento popular através da janela do salão real.
- São duas centenas de famílias, Poliana, que invadiram nos últimos dias uma grande área pública. Elas exigem terrenos onde possam erguer suas casas.
- E quem é o líder que está por trás dessa balburdia? - questiona a rainha.
- Não existe líder, é um movimento espontâneo. - responde o assessor.
- Sem essa, companheiro! Não esqueça que você está falando com uma socialista da gema. Só um débil mental acreditaria que essa gente toda acordou numa manhã nublada e resolveu ocupar a tal área, num rompante sincronizado de luta por direitos. - ironiza Poliana, fazendo trejeitos.
- Tem toda razão, minha rainha. - concorda o ilustre membro do MSTT (Movimento Só Tramoia e Trago) – São um bando de desocupados e baderneiros, certamente liderados por Oposição. Querem o direito à terra, sem pagar por ela. Um verdadeiro absurdo golpista. Essa gente de direita perdeu completamente o senso de ridículo!
- É isso mesmo, companheiros! A direita sempre foi sórdida defensora da propriedade privada. Por isso, deve estar estimulando que o povo tome posse de áreas públicas. É a mais descabida privatização dos espaços púbicos! Um absurdo sem igual.
- Golpistas sem coração! Usando o povão como massa de manobra. - choraminga uma ortodoxa líder de movimentos sociais.
- E o que vamos fazer com esse povo todo? - questiona Poliana.
- Vamos enrolá-los, é claro! Não podemos, jamais, ceder às pressões da direita. Seria o fim de nosso sonho socialista. - responde, prontamente, outro engajado companheiro.
- Então façam isso! Vocês, os desocupados pagos com verbas públicas do MSTT e representantes dos autênticos ativistas dos movimentos sociais, estão encarregados de iludir esses invasores sem noção. - sentencia Poliana. - E que outros ignorantes manipuláveis estão se manifestando hoje no meu reino? - indaga a democrática rainha.
- Estudantes, alteza. Universitários queimaram entulhos e estão obstruindo a saída dos ônibus durante toda a manhã de hoje.
- Um criaredo ranhento e burguês, que não demonstra qualquer respeito pelos pobres proletários que dependem do transporte público para chegarem a seus locais de trabalho. Não respeitam, esses filhinhos de papai reacionários, o legítimo direito de ir e vir da classe operária. - discursa efusivamente o companheiro sindicalista, comodamente esquecido dos tempos em que queimava pneus em vias públicas e impedia o acesso de trabalhadores às empresas.
- E eles querem o quê, afinal? - pergunta a monarca.
- Querem passe livre no transporte público. - informa o assessor de marketing.
- Certamente não estudam economia, esses jovens energúmenos! - indigna-se Poliana, com os olhinhos de biscuit irradiando impaciência e contrariedade. - Eles acham que ônibus, motoristas e combustível caem do céu, feito propinas em estatais? Não têm qualquer senso de ridículo? Onde estudam esses mimadinhos elitistas?
- Na universidade pública, alteza.
- Só podia ser! É tudo culpa de nosso clã! - reclama a rainha, queixosa. - Passamos décadas vendendo a ideia insustentável de que o Estado deve prover de tudo a todos, como se todo saco não tivesse fundo. E mais de uma década enfiando nossas alienadas crias nas universidades para formarem mais e mais tolos ideologicamente adestrados. Agora, nós mesmos estamos colhendo os frutos podres. - suspira, desolada - Devíamos ter investido mais recursos públicos em formação, e não em ideologização sem consistência prática. - constata, desesperada, a monarca.
- O que faremos agora, magnânima?
- Por certo, deveríamos dar um tundão de laço em todos esses pirralhos mal educados e neo-revolucionários das causas impraticáveis. Mas, aí sim, ficaríamos mal nas fotos e manchetes. - reflete Poliana. - Terei de posar, ao lado dos manifestantes, como uma legítima monarca socialista que respeita as pautas e reivindicações esdrúxulas. Tragam-me aquela velha e mofada camiseta do Che, e um boné encardido dos meus tempos de líder estudantil. - ordena a rainha.
- E nossa bandeira vermelha e estrelada, alteza?
- Não! Essa não! - apavora-se Poliana. - Atualmente essa coisa queima o filme de qualquer um. Precisamos nos desgrudar desse símbolo como nos desgrudamos de nosso passado e nossos discursos. - filosofa Poliana. - Mas, pensando bem... um pãozinho com mortadela até pode agradar. Se bem me lembro, esses jovens revolucionários idealistas costumam ficar esfomeados depois de um fuminho e algumas horas de pichação de propriedade privada. E nós, do grande clã, sempre soubemos alimentar essas verdadeiras consciências populares. - conclui Poliana, a velha defensora das causas insustentáveis, sustentadas com dinheiro alheio.

Um comentário:

  1. Beber do próprio veneno, pode ser uma forma amarga de aprendizado....

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