Poliana e sua cada vez mais vasta corte, assistiam abismados a nova
onda de protestos que virara moda no reino. Como eram diferentes as
cores e entonações de manifestantes quando vistos do lado de cá,
pensa a socialista Poliana, do alto de seu castelo. Democracia e
liberdade de expressão tornavam-se uma incômoda e desconfortável
pedra no sapato quando se está no poder, e antigas bandeiras de seus
companheiros, hoje, pareciam ridículas e sem fundamento.
- De onde surgiu essa gente toda que está em frente ao meu castelo?!
- questiona a irritadiça rainha, preocupada com o risco de
desabamento do velho e judiado prédio com tantas pessoas
amontoadas nas escadarias centrais.
- São sem-teto, rainha. Reivindicam o direito à moradia. - elucida
um assessor.
- Sem-teto, é? E estavam se escondendo onde até hoje? Se toda essa
gente estivesse morando nas ruas, as ruas do reino seriam
intransitáveis, ora bolas! Isso até parece os tradicionais
embustes orquestrados por nosso clã! - constata a rainha,
indignada, observando o movimento popular através da janela do
salão real.
- São duas centenas de famílias, Poliana, que invadiram nos últimos
dias uma grande área pública. Elas exigem terrenos onde possam
erguer suas casas.
- E quem é o líder que está por trás dessa balburdia? - questiona
a rainha.
- Não existe líder, é um movimento espontâneo. - responde o
assessor.
- Sem essa, companheiro! Não esqueça que você está falando com
uma socialista da gema. Só um débil mental acreditaria que essa
gente toda acordou numa manhã nublada e resolveu ocupar a tal
área, num rompante sincronizado de luta por direitos. - ironiza
Poliana, fazendo trejeitos.
- Tem toda razão, minha rainha. - concorda o ilustre membro do MSTT
(Movimento Só Tramoia e Trago) – São um bando de desocupados e
baderneiros, certamente liderados por Oposição. Querem o direito
à terra, sem pagar por ela. Um verdadeiro absurdo golpista. Essa
gente de direita perdeu completamente o senso de ridículo!
- É isso mesmo, companheiros! A direita sempre foi sórdida
defensora da propriedade privada. Por isso, deve estar estimulando
que o povo tome posse de áreas públicas. É a mais descabida
privatização dos espaços púbicos! Um absurdo sem igual.
- Golpistas sem coração! Usando o povão como massa de manobra. -
choraminga uma ortodoxa líder de movimentos sociais.
- E o que vamos fazer com esse povo todo? - questiona Poliana.
- Vamos enrolá-los, é claro! Não podemos, jamais, ceder às
pressões da direita. Seria o fim de nosso sonho socialista. -
responde, prontamente, outro engajado companheiro.
- Então façam isso! Vocês, os desocupados pagos com verbas
públicas do MSTT e representantes dos autênticos ativistas dos
movimentos sociais, estão encarregados de iludir esses invasores
sem noção. - sentencia Poliana. - E que outros ignorantes
manipuláveis estão se manifestando hoje no meu reino? - indaga a
democrática rainha.
- Estudantes, alteza. Universitários queimaram entulhos e estão
obstruindo a saída dos ônibus durante toda a manhã de hoje.
- Um criaredo ranhento e burguês, que não demonstra qualquer
respeito pelos pobres proletários que dependem do transporte
público para chegarem a seus locais de trabalho. Não respeitam,
esses filhinhos de papai reacionários, o legítimo direito de ir e vir da
classe operária. - discursa efusivamente o companheiro
sindicalista, comodamente esquecido dos tempos em que queimava
pneus em vias públicas e impedia o acesso de trabalhadores às
empresas.
- E eles querem o quê, afinal? - pergunta a monarca.
- Querem passe livre no transporte público. - informa o assessor de
marketing.
- Certamente não estudam economia, esses jovens energúmenos! -
indigna-se Poliana, com os olhinhos de biscuit irradiando
impaciência e contrariedade. - Eles acham que ônibus, motoristas
e combustível caem do céu, feito propinas em estatais? Não têm
qualquer senso de ridículo? Onde estudam esses mimadinhos
elitistas?
- Na universidade pública, alteza.
- Só podia ser! É tudo culpa de nosso clã! - reclama a rainha,
queixosa. - Passamos décadas vendendo a ideia insustentável de
que o Estado deve prover de tudo a todos, como se todo saco não
tivesse fundo. E mais de uma década enfiando nossas alienadas
crias nas universidades para formarem mais e mais tolos
ideologicamente adestrados. Agora, nós mesmos estamos colhendo os
frutos podres. - suspira, desolada - Devíamos ter investido mais
recursos públicos em formação, e não em ideologização sem
consistência prática. - constata, desesperada, a monarca.
- O que faremos agora, magnânima?
- Por certo, deveríamos dar um tundão de laço em todos esses
pirralhos mal educados e neo-revolucionários das causas
impraticáveis. Mas, aí sim, ficaríamos mal nas fotos e
manchetes. - reflete Poliana. - Terei de posar, ao lado dos
manifestantes, como uma legítima monarca socialista que respeita
as pautas e reivindicações esdrúxulas. Tragam-me aquela velha e
mofada camiseta do Che, e um boné encardido dos meus tempos de
líder estudantil. - ordena a rainha.
- E nossa bandeira vermelha e estrelada, alteza?
- Não! Essa não! - apavora-se Poliana. - Atualmente essa coisa
queima o filme de qualquer um. Precisamos nos desgrudar desse
símbolo como nos desgrudamos de nosso passado e nossos discursos.
- filosofa Poliana. - Mas, pensando bem... um pãozinho com
mortadela até pode agradar. Se bem me lembro, esses jovens
revolucionários idealistas costumam ficar esfomeados depois de um
fuminho e algumas horas de pichação de propriedade privada. E
nós, do grande clã, sempre soubemos alimentar essas verdadeiras
consciências populares. - conclui Poliana, a velha defensora das
causas insustentáveis, sustentadas com dinheiro alheio.
Beber do próprio veneno, pode ser uma forma amarga de aprendizado....
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