Dentro de sua redoma de vidro fumê, Poliana observava seu reino
nesta fria e nublada primeira manhã do inverno. Passados tantos
invernos como soberana popular e carismática, seu reinado parecia
estar se desgastando, quase tanto como desgastado encontrava-se o
velho e rachado castelo real. Poliana, sempre tão otimista, já não
tinha certeza de quem ruiria primeiro: ela ou o histórico prédio.
Nem mesmo a blindagem cor de rosa de sua redoma protegia sua alteza
da dura realidade do mundo real. Se, em tempos de vacas gordas, com
recursos jorrando sobre seu estrelado reino, não conseguira sequer
tapar os buracos no asfalto, como faria agora para cobrir os rombos
no orçamento?
- Parece, Espelho Mágico, que o nosso alinhamento era tão perfeito
que nos alinhamos até na desgraça. - constata Poliana,
dirigindo-se ao seu fiel objeto.
- Como sempre, alteza, devo concordar. Esperemos que sua popularidade
consiga escapar do alinhamento, caso contrário estaremos em maus
lençóis. Em tempos de crise, será necessário muito mais do que
bater uma bolinha na periferia, servir linguiçinha para o povão e
inaugurar churrasqueiras. O povo costuma ficar bastante rabugento
quando a crise bate em suas portas.
- Mas o que mais eu posso fazer, Espelho Mágico? Gerenciar as
finanças do reino é como trafegar nas nossas vias públicas. É
só desviar de um buraco para cair em uma cratera! - lamuria-se a
sofredora monarca.
- Nesse momento, rainha, é hora de mostrar a que veio. Você
precisar cortar Poliana!
- Os pulsos? - pergunta a monarca, depressiva, desembrulhando um de
seus adorados bombons de amarula.
- Não. Os gastos.
- Eu estou cortando! Mas cada vez que eu corto uma coisinha, a
maldita Imprensa Livre e as odiosas redes sociais, se unem para me
desmoralizar. Gentinha desocupada e sem noção de economia. -
resmunga Poliana, a monarca incompreendida.
- Você cortou o quê, alteza? - questiona o Espelho, desconfiado.
- Fotocópia para as crianças nas escolas.
- Sei... - suspira o outro, medindo as palavras para não desencadear
as conhecidas crises de destempero da rainha. - Não seria o caso
de cortar algo um pouco mais supérfluo?
- Eu cortei! Cortei ambulâncias e socorro, e quase fui linchada por
isso! - lamuria-se.
- Com todo respeito, alteza, mas cortar recursos para crianças e
doentes não me parece lá estrategicamente muito inteligente. -
rebate Espelho Mágico.
- Você está me chamando de burra, seu espelho imprestável?! -
exaspera-se Poliana, com seu conhecido timbre esganiçado.
- Claro que não, magnânima! Todos sabemos o quão profunda é sua
inteligência e sabedoria! Tão profunda quanto o pré-sal! -
ensaboa o Espelho para evitar uma crise de estrelismo real. - "E
quase tão inexplorada, também." - completa em pensamento. -
Talvez, alteza, esteja lhe faltando assessoria.
- Assessoria, é? Pode ser. Talvez eu deva criar mais umas pastas e
contratar mais bobos e pajens. - reflete a rainha, saboreando outro
bombom.
- Pelo amor de Deus, Poliana! Você já tem tantos bobos da corte e
pajens que, se por desgraça, todos resolvessem comparecer nos seus
locais de trabalho o velho castelo desmoronaria por excesso de
peso!
- Esse risco não corremos. O de todos meus bobos e pajens resolverem
trabalhar, quero dizer. A maioria deles nem sabe onde fica o
castelo. Quanto ao castelo desabar, é bastante provável, devo
admitir. Ele parece um pouco surradinho, visto de perto. - afirma,
dando de ombros e levando mais um bombom de amarula à boca.
- Pois é isso mesmo que estou tentando dizer! Seu reinado tem mais
glúteos que cadeiras. E, definitivamente, mais cabeças do que
cérebros. É preciso cortar cabeças, Poliana!
- Cortar meus adoráveis bobos e pajens? - pergunta a rainha,
perplexa.
- Isso mesmo.
- Mas então, quem irá concordar comigo?! Massagear meu ego em
momentos de crise? Enxergar o mesmo reino cor de rosa que eu? E
carregar minhas malas nas viagens?!- apavora-se Poliana, frente a
um cenário tão catastrófico.
- Pense um pouquinho, Poliana. Você tem um bobo da corte só para
carregar sua bagagem. Outro bobo para coordenar a pintura dos
estacionamentos oblíquos. E mais outro para cuidar das duas únicas
câmeras de segurança do reino. E assessores, então?!São duzias
deles! Veja só a pasta de Marketing, Mídia e Ilusão de Ótica?
Tem um assessor só para tirar fotos suas, outro para fazer
fotoshop, outro para editá-las e um bobo só para divulgá-las. E
cada um desses, tem um outro assessor para fiscalizar o serviço.
Tem pasta que tem mais chefes que subordinados, Poliana! Tem até
chefe que recebe salário para chefiar a si mesmo!
- Da forma como você pinta, Espelho Mágico, parece mesmo que há um
pouquinho de exagero.- pondera a rainha, reflexiva.
- Ufa! Até que enfim caiu a ficha. - respira o outro, aliviado. -
Você finalmente vai cortar o que está sobrando, rainha?
- Claro que sim! - confirma a monarca, erguendo-se decidida. -
Preciso tomar coragem e ousar!
- Bravo, Poliana! É isso que o povo espera de uma verdadeira
monarca!
- Pois, assim será! - anuncia - Começarei cortando a contratação
dos serviçais aprovados no concurso! Como você bem me alertou, já
temos gente demais. Não podemos nos dar ao luxo de admitir ainda
mais médicos ou professores. Os salários deles são
estratosféricos, todos sabem. Não devemos esbanjar o suado dinheiro do contribuinte. Depois, cortarei um pouco dos
remédios distribuídos à população. São tantas variedades que
os doentes nem vão dar por falta de alguns itens. Quem sabe cortar
alguns exames também? Com tantas academias ao ar livre construídas
por mim, o povo deve andar com a saúde em dia. E as viagens!
Poderemos cortar as viagens! Não as para a Costa do Sauípe, é
lógico, mas podemos reduzir a quilometragem absurda do transporte
escolar.
- Mas, Poliana... - tenta retrucar o desesperado Espelho Mágico.
- E o mais importante de tudo! - grita Poliana, apontando o dedo para
o surpreso espelho. - Você, seu espelho estúpido, vai voltar para
a gaveta de onde não devia ter saído! Se eu quisesse escutar
críticas e verdades, ouviria o povo e aquelas ridículas redes
sociais! - continua a rainha, rubra da mais legítima indignação.
- Já pra gaveta, e não me saia mais de lá! Você vai mofar por
lá junto com minha ideologia socialista e todas as promessas de
Horário Eleitoral. - sentencia Poliana, soberana absoluta em
soluções estapafúrdias para momentos de crise, e a liderança
perfeita para um exército de sem serventia remunerados com
dinheiro público.
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