O
jovem médico percorria os corredores azulejados, a essa altura da
madrugada, silenciosos. Chega ao posto de enfermagem da unidade de
internação hospitalar, pega uma das pastas e senta-se para
analisá-la. Acabara de atender um idoso internado, ansioso e
intranquilo, que não sentia-se confortável por estar longe de casa
e da família. A escuridão da noite, a angústia da doença e o
ambiente impessoal, frio e asséptico dos hospitais, costumavam
causar aflição aos pacientes internados. Sentimentos parecidos
corriam nas veias dos médicos e profissionais de saúde também. Mas
era melhor que ninguém soubesse disso. E essa gente de branco, que
vagava pelos quartos e corredores, na calada da noite, sabia bem
dissimular suas angustias e sentimentos. Aprenderam nos bancos
escolares. Era, afinal, o que se esperava deles.
Esfregando
os olhos cansados, o jovem faz uma varredura rápida nos registros da
história e da clínica do paciente recém avaliado. Parecia ser,
realmente, apenas ansiedade e angústia de um idoso que estava
internado, longe da família e de seu lar. Chamados e sintomas
corriqueiros em uma madrugada de domingo, pensa o jovem médico,
passando mais uma vez as mãos nos olhos. Mais de 48 horas de plantão
sem dormir, sempre cobravam seu preço, mesmo aos mais jovens.
Assumira o plantão de um colega, por isso faria tantas horas
ininterruptas. Fazia isso por dinheiro, acreditava a maioria. Na
realidade, assumira esse plantão porque o colega médico, bem mais
velho, tinha a formatura de um dos seus filhos. E se tem coisa que um
médico, mesmo os mais jovens, aprende desde cedo a valorizar, são
os poucos e pequenos momentos com a família. Esses pequenos eventos
valiam mais que qualquer dinheiro, e só quem já tivera de abdicar
de tantos desses ao longo da formação e da vida profissional, sabia
dar o seu devido valor. Para os que olhavam de fora, era só ânsia
por dinheiro de uma gente que afinal, não é dada a sentimentos, já
que pouco podem ou devem demonstrar. Ossos, um tanto duros, do
ofício, pensa o médico fechando a pasta a sua frente.
Olhando
um jornal displicentemente esquecido na mesa próxima, lê as
manchetes de mais um escândalo milionário de corrupção e desvios
de verbas públicas em uma grande Estatal do país. Um país onde
faltavam recursos, equipamentos, exames e materiais básicos em
hospitais públicos, como esse grande hospital onde hoje fazia
plantão. O mesmo país onde se via doentes amontoados em macas de
emergências lotadas ou esperando há meses por exames diagnósticos
nos postos de saúde. Um país que o fazia, como médico, perder todo
dia. Que o fazia perder pacientes para um câncer tardiamente
diagnosticado. Perder dignidade ao ter de mendigar um leito de
internação em UTI, angustiantemente necessário, mas
inadmissivelmente indisponível. Que o fazia perder a paciência, por
não ter um medicamento necessário e vital ao tratamento de um de
seus pacientes. Que o fazia, a cada dia, perder a esperança e pensar
em desistir.
Por
ser jovem e, ainda, idealista, sempre acreditara que podia ser parte
da solução, da mudança e da melhora do sistema público de saúde
para seu povo. Mas, pelo que ouvia nos atuais discursos e nas
posturas dos políticos - verdadeiros responsáveis pelas necessárias
melhorias no SUS - ele era apenas uma parte asquerosa do problema.
Não era suficientemente humano, diziam os discursos raivosos. Não
gostava de atender os pobres. Não tinha amor ou apreço pelo povo. O
seu povo! Era um mercenário. Apenas isso. E mercenários mereciam
desprezo em qualquer sociedade, talvez mais que os corruptos. Entre
os corruptos que roubavam bilhões que poderiam salvar vidas em
diagnósticos e tratamentos, e esse jovem médico acusado de
mercenário, melhor crucificar quem está mais próximo. E como são
insensíveis a dor e ao sofrimento, os médicos, mesmo os jovens,
suportam o linchamento coletivo e público. Nisso todos concordam ou
ao menos se omitem.
Esse
jovem médico não serve para seu país, à saúde pública, ao
governo ou ao povo brasileiro, como não servem, ou serviram, os
médicos mais velhos. Deve ser isolado e combatido, feito praga.
Outros médicos, melhores e mais humanos, vieram e virão, de fora,
para atender, com o devido zelo e respeito, ao seu - ao nosso - povo.
Sem recursos, exames, leitos ou estrutura, tomara sejam
suficientemente insensíveis, “os Mais Humanos” médicos
importados. Pela saúde mental dos profissionais estrangeiros,
torceremos, os mercenários, que eles consigam trilhar esse caminho
de descaso, desleixo, fracassos e corrupção, sem perder a ternura
jamais - torce também, o jovem insensível e desacreditado médico
nacional. Melhor mesmo desistir, largar de mão e seguir outro
caminho, constata o jovem médico mercenário. Só não desistiria
hoje, porque tinha vários pacientes com exames pendentes para lhe
mostrar. E a dona Isaltina, que lhe levara ontem um pano de prato
bordado em homenagem ao dia do médico, tinha consulta no final da
semana. Mas na semana que vem largaria tudo isso, decidira, convicto,
o jovem médico desumano. Nada que uma reles noite de oito horas de
sono não conseguisse adiar. Coisas, decisões e sentimentos, que só
os médicos nacionais, mercenários e desumanos compreendem, ninguém
mais.
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