sábado, 18 de outubro de 2014

Medicina e hipocrisia


O jovem médico percorria os corredores azulejados, a essa altura da madrugada, silenciosos. Chega ao posto de enfermagem da unidade de internação hospitalar, pega uma das pastas e senta-se para analisá-la. Acabara de atender um idoso internado, ansioso e intranquilo, que não sentia-se confortável por estar longe de casa e da família. A escuridão da noite, a angústia da doença e o ambiente impessoal, frio e asséptico dos hospitais, costumavam causar aflição aos pacientes internados. Sentimentos parecidos corriam nas veias dos médicos e profissionais de saúde também. Mas era melhor que ninguém soubesse disso. E essa gente de branco, que vagava pelos quartos e corredores, na calada da noite, sabia bem dissimular suas angustias e sentimentos. Aprenderam nos bancos escolares. Era, afinal, o que se esperava deles.
Esfregando os olhos cansados, o jovem faz uma varredura rápida nos registros da história e da clínica do paciente recém avaliado. Parecia ser, realmente, apenas ansiedade e angústia de um idoso que estava internado, longe da família e de seu lar. Chamados e sintomas corriqueiros em uma madrugada de domingo, pensa o jovem médico, passando mais uma vez as mãos nos olhos. Mais de 48 horas de plantão sem dormir, sempre cobravam seu preço, mesmo aos mais jovens. Assumira o plantão de um colega, por isso faria tantas horas ininterruptas. Fazia isso por dinheiro, acreditava a maioria. Na realidade, assumira esse plantão porque o colega médico, bem mais velho, tinha a formatura de um dos seus filhos. E se tem coisa que um médico, mesmo os mais jovens, aprende desde cedo a valorizar, são os poucos e pequenos momentos com a família. Esses pequenos eventos valiam mais que qualquer dinheiro, e só quem já tivera de abdicar de tantos desses ao longo da formação e da vida profissional, sabia dar o seu devido valor. Para os que olhavam de fora, era só ânsia por dinheiro de uma gente que afinal, não é dada a sentimentos, já que pouco podem ou devem demonstrar. Ossos, um tanto duros, do ofício, pensa o médico fechando a pasta a sua frente.
Olhando um jornal displicentemente esquecido na mesa próxima, lê as manchetes de mais um escândalo milionário de corrupção e desvios de verbas públicas em uma grande Estatal do país. Um país onde faltavam recursos, equipamentos, exames e materiais básicos em hospitais públicos, como esse grande hospital onde hoje fazia plantão. O mesmo país onde se via doentes amontoados em macas de emergências lotadas ou esperando há meses por exames diagnósticos nos postos de saúde. Um país que o fazia, como médico, perder todo dia. Que o fazia perder pacientes para um câncer tardiamente diagnosticado. Perder dignidade ao ter de mendigar um leito de internação em UTI, angustiantemente necessário, mas inadmissivelmente indisponível. Que o fazia perder a paciência, por não ter um medicamento necessário e vital ao tratamento de um de seus pacientes. Que o fazia, a cada dia, perder a esperança e pensar em desistir.
Por ser jovem e, ainda, idealista, sempre acreditara que podia ser parte da solução, da mudança e da melhora do sistema público de saúde para seu povo. Mas, pelo que ouvia nos atuais discursos e nas posturas dos políticos - verdadeiros responsáveis pelas necessárias melhorias no SUS - ele era apenas uma parte asquerosa do problema. Não era suficientemente humano, diziam os discursos raivosos. Não gostava de atender os pobres. Não tinha amor ou apreço pelo povo. O seu povo! Era um mercenário. Apenas isso. E mercenários mereciam desprezo em qualquer sociedade, talvez mais que os corruptos. Entre os corruptos que roubavam bilhões que poderiam salvar vidas em diagnósticos e tratamentos, e esse jovem médico acusado de mercenário, melhor crucificar quem está mais próximo. E como são insensíveis a dor e ao sofrimento, os médicos, mesmo os jovens, suportam o linchamento coletivo e público. Nisso todos concordam ou ao menos se omitem.
Esse jovem médico não serve para seu país, à saúde pública, ao governo ou ao povo brasileiro, como não servem, ou serviram, os médicos mais velhos. Deve ser isolado e combatido, feito praga. Outros médicos, melhores e mais humanos, vieram e virão, de fora, para atender, com o devido zelo e respeito, ao seu - ao nosso - povo. Sem recursos, exames, leitos ou estrutura, tomara sejam suficientemente insensíveis, “os Mais Humanos” médicos importados. Pela saúde mental dos profissionais estrangeiros, torceremos, os mercenários, que eles consigam trilhar esse caminho de descaso, desleixo, fracassos e corrupção, sem perder a ternura jamais - torce também, o jovem insensível e desacreditado médico nacional. Melhor mesmo desistir, largar de mão e seguir outro caminho, constata o jovem médico mercenário. Só não desistiria hoje, porque tinha vários pacientes com exames pendentes para lhe mostrar. E a dona Isaltina, que lhe levara ontem um pano de prato bordado em homenagem ao dia do médico, tinha consulta no final da semana. Mas na semana que vem largaria tudo isso, decidira, convicto, o jovem médico desumano. Nada que uma reles noite de oito horas de sono não conseguisse adiar. Coisas, decisões e sentimentos, que só os médicos nacionais, mercenários e desumanos compreendem, ninguém mais.

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