Depois de tanto tempo apenas lidando com os corriqueiros
problemas asfálticos do reino, com Imprensa Livre acomodada e Justiça
hibernando, Poliana já estava desacostumada com os escândalos e denúncias em
seu reinado. Pois eis que, para surpresa da rainha, os fantasmas vieram assombrar
sua majestade. Imprensa Livre noticiara acusações assombrosas no nosocômio
público do reino. Questões de trocas de sílabas e de faturamentos, alegava a
corte real. Mas Poliana ficara assustada, sempre tivera medo de fantasmas.
- Que história é essa de pacientes fantasmas, meus bobos? Eu
sempre fui informada que fantasma mesmo na saúde havia só o bobo da pasta, que
só aparece vez por outra no setor e só para assombrar! – afirma sua alteza com
sarcasmo.
- É apenas denuncismo tolo e sem fundamento rainha. Nada para
se preocupar. Coisa de uma Imprensa Livre desocupada e sem assunto, só isso. –
afirma tranquilamente um dos bobos nosocomiais.
- O que realmente ocorreu? – questiona a monarca.
- Nós só trocamos um nome, umas letras, umas datas e uns dígitos.
Só isso. Pura distração. – responde o outro.
- Mas Imprensa Livre anda gritando, com aquela boca enorme de trombone, que estão pipocando no reino outras denúncias dos mesmos “errinhos”
tolos. Estão nos acusando de faturar em cima de pacientes e procedimentos
fantasmas! – queixa-se a rainha, ultrajada.
- Nós já esclarecemos tudo Poliana. Comprovamos com nossos
dados de marketing, que noventa e cinco por cento dos pacientes atendidos por
nós não se queixam nem dos serviços nem do faturamento irregular.
- Claro! Nossa prestativa ouvidoria não fala ainda com os
fantasmas, acredito. Vocês acham que alguém vai engolir essa conversinha fiada
de vocês?! Nem eu engulo! Imprensa Livre deve estar gargalhando ao imaginar
nossas pesquisas, tão idôneas e transparentes, a ponto de perguntar aos
usuários: “O senhor esteve internado por diarréia, mas nós cobraremos do
sistema de saúde por um transplante cardíaco. O senhor se sente satisfeito com
seu coração novo?” Façam-me o favor! – irrita-se Poliana.
- Isso não acontece Poliana. Não há irregularidades desse
nível, podemos garantir. – afirma o bobo.
- Lógico que não. Tenho certeza absoluta disso. Nosso nosocômio
ainda não faz transplantes cardíacos. Mas se fizerem uma auditoria profunda,
vai faltar osso no reino para tanta fratura, não é mesmo meus queridinhos? –
acrescenta a rainha, caprichando no sarcasmo para provar que não era tão
estúpida como se fazia parecer.
- É que nós somos referência para toda a região no
atendimento dos quebrados, rainha! – apressa-se em justificar outro pomposo
assessor nosocomial.
- Sem dúvida! E o povo da região se quebra mais em um ano do
que os soldados em toda guerra do Vietnã. – ironiza ainda mais a monarca.
- Os acidentes de trânsito estão cada vez mais freqüentes,
alteza. – continua o outro, quase perdendo o rebolado e desfazendo o penteado.
- E, a julgar pelos números, a colonada daqui deve fazer rally
de trator todo dia. E são péssimos motoristas! Mas chega de papo furado e de osso
mal remendado! Quero que vocês resolvam esse caso e afastem os fantasmas do meu
reinado. Não quero Justiça novamente no meu calcanhar. Só de pensar nisso já
sinto uma dor nos tornozelos. – queixa-se Poliana.
- Dor nos tornozelos, é? Quem sabe, vamos até o nosocômio
público, rainha? Eles te fazem um raio x e colocam um gesso só pra imobilizar.
Depois trocam o gesso umas vinte vezes. E com um pouco de sorte, no final,
podemos faturar uma cirurgiazinha de quadril! Se você receber uma cartinha do
sistema de saúde, nem leia. Rasga e joga fora. E quando nosso serviço de
ouvidoria ligar para sua casa, não se esqueça de agradecer pela excelência do
serviço recebido! – orienta o prestativo assessor, arrumando o penteado e estufando
o peito, como um legítimo pavão ornamental da corte real na saúde.
- Fechado! Estou mesmo precisando de um atestadinho. –
responde a alteza, resolvendo mais uma pequena crise de perseguição midiática aguda,
sem maiores intercorrências ou complicações. Essa conta, como todas as outras,
quem paga é o contribuinte. Adoentado ou não.