Sentado no banco da praça, o velho observa, com os olhos já
cansados pela idade, mas ainda atentos pelo hábito, o movimento diferente que
ocorria no largo. Homens e mulheres, vestidos de branco e com faixas negras nos
braços, distribuíam panfletos e argumentavam com os transeuntes. Médicos em
paralisação nacional. O velho pensara que já havia visto quase tudo, mas, pelo
visto, muito ainda havia a ser visto e lamentado em suas mais de oito décadas
de vida. Quando médicos, unidos, resolvem parar, é por que quase tudo estava
demasiado próximo do fim. Não lhe parecia ser muito afeita a manifestações
coletivas e paralisações a tal classe médica. Na verdade, a dita classe, sempre
lhe parecera excessivamente silenciosa com todas as agruras por que passava o
povo em momentos de doença. São muito cínicos e práticos esses profissionais.
Pairavam sobre-humanos, alheios a dor e sofrimento de seus doentes. Essa ao
menos, era a visão que vendia a grande mídia e, atualmente, os governos. Médicos
são seres insensíveis que visam apenas o lucro e demonstram somente desprezo
pelo sofrimento alheio. Corporativistas. Nada mais do que isso.
Para esse velho ignorante que mal frequentara a escola, os
bancos da vida ensinaram quase tanto quanto os universitários. Seres humanos
não deixam de sofrer com a dor de outros seres humanos, por mais que tenham
estudado e se preparado para isso, conclui o idoso. Ninguém, mesmo uma bem paga
e elaborada mídia, convenceria a esse ancião que um médico, por mais cínico que
seja, consiga passar imune em uma emergência lotada. Não parecia, a esse idoso
senil, que um ser humano, por mais frio que possa parecer, consiga dormir
tranqüilo, o sono dos justos, ao perder um, e outro, e mais outro paciente, por
falta de recursos e infra-estrutura. Esse velho, que já perdera toda uma
lavoura pela impiedosa e inevitável estiagem, ainda hoje lembrava a dor
pungente da perda. Nem ousava pensar se fossem vidas humanas perdidas. A perda
de vidas devia ser ferida dolorosa que jamais cicatriza. Mesmo para essa gente,
vestida de branco, e que parece flutuar acima do bem e do mal. Quem acredita no
contrário, deve viver em outro planeta, onde robôs fazem o papel de médicos,
pensa o ancião. Não lhe parecia certo e justo que todo o peso da falência
crônica do sistema de saúde fosse simploriamente imputado aos profissionais da
área. As manchetes de jornais e TV nas últimas décadas eram claras: pessoas
agonizavam em emergências, aguardando leitos para internação, exames e
cirurgias. Notícias de grandes capitais do país. A esse velho senil parecia
óbvio, não se tratava de falta de médicos apenas, como fazia crer a propaganda
estatal. Faltava estrutura. Leitos, remédios e exames. Imputar a qualquer
trabalhador de saúde o peso da culpa por um sistema falido por gestões
inconsequentes e financiamentos irrisórios ou corrompidos, além de criminoso, era
no mínimo imoral. Mas imoralidade não é crime, reflete o velho cabisbaixo. Moral
se aprende em casa. Assim como o valor de uma vida. Não em bancos
universitários ou em cadeiras de congressistas e governantes. Quisera,
soubessem nossos governantes, o peso da responsabilidade de ter de escolher
quem, dentre uma centena, terá direito ao único leito disponível em um dia de
plantão. Quem, dentre os necessitados de uma cirurgia, será o próximo a ser
operado. Quem, dentre os infartados, será o único a receber o necessário e
adequado tratamento em UTI. Quisera, nossos eleitos governantes, tivessem a
coragem e o profissionalismo diários de voltar às costas para os que ficaram
sem o tratamento digno, igualitário e gratuito que prega nossa Carta Magna e,
ainda assim, persistir. Se tivessem, nossos bem remunerados políticos, que
escolher todo dia, quem vai e quem fica, quem ganha, e quem perde, quem vive e
quem morre nas desumanas e putrefatas emergências desse país. Se, soubessem eles, reles mortais imorais,
eleitos pelo povo, como bem sabem os médicos desumanos e cruéis, o peso perene
da responsabilidade diária na lida da saúde pública, o fardo da culpa seria
mais bem distribuído, pensa o idoso, acendendo um palheiro. Quem sabe esse seu
vício - reflete o ancião tristonho, entre uma tragada e outra do palheiro,
condenado por seu mercenário cardiologista - me leve mais rápido do que a
vergonha que sinto de tudo que ainda vejo e não posso mudar, e de todos que
ainda se iludem com promessas vazias sem ao menos questionar. - reflete o
ancião voltando com passos curtos para casa.
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