domingo, 4 de agosto de 2013

O peso da culpa

Sentado no banco da praça, o velho observa, com os olhos já cansados pela idade, mas ainda atentos pelo hábito, o movimento diferente que ocorria no largo. Homens e mulheres, vestidos de branco e com faixas negras nos braços, distribuíam panfletos e argumentavam com os transeuntes. Médicos em paralisação nacional. O velho pensara que já havia visto quase tudo, mas, pelo visto, muito ainda havia a ser visto e lamentado em suas mais de oito décadas de vida. Quando médicos, unidos, resolvem parar, é por que quase tudo estava demasiado próximo do fim. Não lhe parecia ser muito afeita a manifestações coletivas e paralisações a tal classe médica. Na verdade, a dita classe, sempre lhe parecera excessivamente silenciosa com todas as agruras por que passava o povo em momentos de doença. São muito cínicos e práticos esses profissionais. Pairavam sobre-humanos, alheios a dor e sofrimento de seus doentes. Essa ao menos, era a visão que vendia a grande mídia e, atualmente, os governos. Médicos são seres insensíveis que visam apenas o lucro e demonstram somente desprezo pelo sofrimento alheio. Corporativistas. Nada mais do que isso.
Para esse velho ignorante que mal frequentara a escola, os bancos da vida ensinaram quase tanto quanto os universitários. Seres humanos não deixam de sofrer com a dor de outros seres humanos, por mais que tenham estudado e se preparado para isso, conclui o idoso. Ninguém, mesmo uma bem paga e elaborada mídia, convenceria a esse ancião que um médico, por mais cínico que seja, consiga passar imune em uma emergência lotada. Não parecia, a esse idoso senil, que um ser humano, por mais frio que possa parecer, consiga dormir tranqüilo, o sono dos justos, ao perder um, e outro, e mais outro paciente, por falta de recursos e infra-estrutura. Esse velho, que já perdera toda uma lavoura pela impiedosa e inevitável estiagem, ainda hoje lembrava a dor pungente da perda. Nem ousava pensar se fossem vidas humanas perdidas. A perda de vidas devia ser ferida dolorosa que jamais cicatriza. Mesmo para essa gente, vestida de branco, e que parece flutuar acima do bem e do mal. Quem acredita no contrário, deve viver em outro planeta, onde robôs fazem o papel de médicos, pensa o ancião. Não lhe parecia certo e justo que todo o peso da falência crônica do sistema de saúde fosse simploriamente imputado aos profissionais da área. As manchetes de jornais e TV nas últimas décadas eram claras: pessoas agonizavam em emergências, aguardando leitos para internação, exames e cirurgias. Notícias de grandes capitais do país. A esse velho senil parecia óbvio, não se tratava de falta de médicos apenas, como fazia crer a propaganda estatal. Faltava estrutura. Leitos, remédios e exames. Imputar a qualquer trabalhador de saúde o peso da culpa por um sistema falido por gestões inconsequentes e financiamentos irrisórios ou corrompidos, além de criminoso, era no mínimo imoral. Mas imoralidade não é crime, reflete o velho cabisbaixo. Moral se aprende em casa. Assim como o valor de uma vida. Não em bancos universitários ou em cadeiras de congressistas e governantes. Quisera, soubessem nossos governantes, o peso da responsabilidade de ter de escolher quem, dentre uma centena, terá direito ao único leito disponível em um dia de plantão. Quem, dentre os necessitados de uma cirurgia, será o próximo a ser operado. Quem, dentre os infartados, será o único a receber o necessário e adequado tratamento em UTI. Quisera, nossos eleitos governantes, tivessem a coragem e o profissionalismo diários de voltar às costas para os que ficaram sem o tratamento digno, igualitário e gratuito que prega nossa Carta Magna e, ainda assim, persistir. Se tivessem, nossos bem remunerados políticos, que escolher todo dia, quem vai e quem fica, quem ganha, e quem perde, quem vive e quem morre nas desumanas e putrefatas emergências desse país.  Se, soubessem eles, reles mortais imorais, eleitos pelo povo, como bem sabem os médicos desumanos e cruéis, o peso perene da responsabilidade diária na lida da saúde pública, o fardo da culpa seria mais bem distribuído, pensa o idoso, acendendo um palheiro. Quem sabe esse seu vício - reflete o ancião tristonho, entre uma tragada e outra do palheiro, condenado por seu mercenário cardiologista - me leve mais rápido do que a vergonha que sinto de tudo que ainda vejo e não posso mudar, e de todos que ainda se iludem com promessas vazias sem ao menos questionar. - reflete o ancião voltando com passos curtos para casa.


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