Reunidos em assembléia, o seleto grupo do clã de Poliana,
debatia assuntos de relevância para o reino e o futuro de Gigante Adormecido.
Em prol de um debate qualificado e desvinculado de preconceitos ou visões
estereotipadas, o democrático e coeso séquito, reuniu somente membros umbilicalmente
unidos a velha e estrelada doutrina do grande clã. Com platéia assim tão
adestrada, era impossível não se chegar ao consenso. E um consenso barulhento e
revoltado, era sempre mais coerente e justo que o silêncio daqueles que não
foram convidados a se manifestar. Assim se faz democracia no reino de Poliana e
de seus aliados. Quem discordar tem pleno direito de se calar.
- Precisamos nos unir, companheirada, para acabar de vez com
a oligarquia asquerosa dos curandeiros em Gigante Adormecido! Essa gente
maquiavélica que por séculos tem enriquecido à custa das moléstias de nosso
povo! Como se políticos fossem, os infames! Filhinhos de papai, que se
aproveitam da miséria e da falta de saneamento básico de nossa população para ascender
socialmente! – bradava empolgado um membro do Movimento Só Tramóia e Trago
(MSTT).
- Apoiado, companheiro! Uma gentinha mercenária que se recusa
a trabalhar onde ninguém, nem mesmo nós, ousamos nos afundar, merece todo nosso
desprezo, de defensores do povo oprimido por políticas públicas demagógicas. –
concorda um representante dos movimentos sociais.
- Eu, como curandeiro vinculado ao grande clã, tenho que
concordar. Saúde pública se faz só com boa vontade e um aparelho de pressão.
Recursos, remédios e tecnologias são para nossos pares, não para nosso povo.
Quem quiser qualidade e resolutividade, que tenha dinheiro para pagar. Como
nós! – afirma o coerente e centrado doutor.
- Muito bem companheirada! Temos de acabar de vez com essa
categoria nefasta para a sociedade e para nosso socialismo desbotado e mal
cheiroso. Precisamos mostrar ao povo que se a saúde agoniza, há anos, é por
culpa exclusiva dos curandeiros desumanos, mercenários e corporativistas. A
falta de hospitais, leitos, exames e remédios, é unicamente conseqüência de uma
conspiração ardilosa dessa classe odiosa e maquiavélica que se uniu para
deteriorar e difamar todo o investimento que nós, políticos, não fizemos em
prol dos doentes. – defende, com a eloqüência dos palanques, o deputado
Torresminho.
- Esperar o que dessa elite classista?! São pessoas
endinheiradas, que tropeçaram em uma vaguinha na faculdade como quem pisa em
merda de cachorro! Muito diferente de nossa classe política, que tem que suar a
camisa e se embuchar de pão com lingüiça e repolho para se eleger, a cada
quatro anos. Isso sim é desempenho e mérito! Os malditos curandeiros ganharam
sempre tudo de mãos beijadas. Não conhecem o trabalho árduo e o sofrimento. Não
sabem o que é sujar as mãos em propinas. No máximo sujam as mãos de sangue. E
sangue, qualquer água oxigenada barata tira. Propina mancha pra vida toda. –
conclui rubro da mais pura indignação, um dos companheiros da câmara de
vendilhões.
- E para acabar com essa corja corporativista local, companheiros,
temos de defender a importação de curandeiros de Cuba! A ilha da fantasia
produz e exporta curandeiros como charutos! Embalados, aos milhares, em caixas!
E são muito mais palatáveis e maleáveis que os nacionais. E não precisaremos
nos preocupar com taxa de importação e aquelas balelas de leis trabalhistas! –
defende o eterno defensor dos proletários explorados e líder do SindiPelego.
- É a pura verdade! Como são humanistas e desprovidos de
interesses capitalistas, esses abnegados curandeiros cubanos! Aceitam deixar
aquele maravilhoso paraíso socialista, para vir trabalhar nos confins do mundo,
sem qualquer estrutura, e por pouco mais de um salário mínimo. São o sonho de
consumo de qualquer governo ineficiente e desprovido de escrúpulos. – concorda,
emocionado, um militante.
- Graças a Che e a revolução, podermos contar, nesse mundo
moderno e capitalista, de gente tão socialista e caridosa. Os curandeiros daqui
só querem saber de qualidade de vida, de condições de trabalho e remuneração
justa. Os tais cubanos, como não conhecem nada disso, aceitam o que vier. E pedem
benção a Fidel! – emociona-se uma matriarca do clã.
- São realmente generosos os cubanos. Largar aquele paraíso
socialista, onde ganhavam uma cesta básica e quase quarenta dólares por mês,
sem contar o rum e os charutos, para virem se enterrar nesse capitalismo
selvagem e cruel, ganhando dez vezes mais e sem direito a cigarros, a exames,
macas ou leitos! É um tapa na cara dos mercenários doutores locais. Essa asquerosa
elite golpista! – brada outro companheiro.
- A corja de curandeiros locais já esta tremendo nas bases,
apavorada com a concorrência caribenha. Não querem perder suas benesses
elitistas. Chega a ser patético vê-los
esperneando em agonia. Temem perder as regalias de solicitar e não dispor. De
indicar, sem conseguir. De precisar e ter de esperar por meses. De perder e
lastimar. Essas criaturas cruéis receiam deixar seus postos de algozes para os
cubanos, muito mais preparados que eles a sofrer sem se queixar e a ver um
paciente morrer pela desestrutura estatal, sem ousar questionar. – acrescenta
outro vendilhão.
- E mais importante de tudo, companheirada, precisamos
atender a demanda de centenas de companheiros nossos que foram treinados em
curandeirismo na ilha. Não podemos deixar nossa gente na mão! – lembra outro
militante das causas sociais.
- Muito bem, turma. Como coordenador e promotor desse
produtivo debate, tenho de resumir nossas democráticas e imparciais
constatações para serem divulgadas na mídia. Depois de longa e participativa
discussão, me parece consensual e inquestionável, que o povo todo clama pelos curandeiros
cubanos!
-Apoiado! – gritam todos em euforia.
-E que declaramos guerra aos odiosos e peçonhentos
curandeiros nacionais.
- Muito bem! – delira a cativa platéia.
- E eu, como membro do parlamento e influente junto ao poder
central, vou sugerir a Rainha Mãe, um programa de exportação forçada de nossos
curandeiros para Cuba. Tenho certeza que uma temporada na democracia de lá, vai
fazer com que voltem muito mais adestrados, cabresteados e aptos a aceitar, sem
reclamar, todas as mazelas sociais e o descaso pela saúde em nosso país. É de
profissionais assim que nosso país precisa. – anuncia um dos políticos.
- É isso aí! – bradam todos os presentes, aplaudindo
fervorosamente a ideia. – Mais curandeiros! Menos cérebros questionadores!
Abaixo a resistência burguesa!
E assim termina mais um participativo debate do clã de
Poliana, onde a unanimidade sempre impera e o rancor e o ranço são a o alicerce
e a tônica para todas as convicções e certezas.