Seu corpo há muito perdera o vigor de outrora, pensava o
velho enquanto cruzava, com passos curtos, o trajeto do mercadinho até sua
casa. Galgar os quatro degraus da
entrada também exigia certo esforço e concentração. Ainda podia recordar os
tempos em que os saltava de dois em dois sem sequer piscar os olhos. A pressa e
a arrogância da mocidade impediam de pensar em tolas e mesquinhas
consequências, como um tornozelo torcido ou um quadril fraturado. Com o passar
das décadas e a lentidão cruelmente imposta ao seu enrugado corpo, já não havia
espaço para pressa na vida desse ancião. Mas sobrava tempo para recordar e
refletir. Quanta hipocrisia um velho precisava assistir e presenciar ao longo
de uma vida inteira. Talvez fosse por isso que a tolerância advinha com a
maturidade no mesmo ritmo em que se enrijeciam as articulações e enfraqueciam
os músculos. De sua varanda, sorvendo o bom chimarrão, eterno parceiro de
reflexões, podia visualizar o antigo hospital da cidade. Como crescera e
envelhecera, esse também. Apesar das inúmeras reformas e ampliações por que
passara e ainda passava, guardava alguns traços nostálgicos do prédio que um
dia fora. Muito em breve não restariam mais as grandes janelas com venezianas,
típicas dos longínquos anos de sua inauguração. O concreto e as formas lineares
e austeras, próprias da modernidade, mudariam para sempre a velha e fora de moda
arquitetura do prédio. Eram os ganhos do progresso e do crescimento. O vai e
vem frenético de carros, vans e ambulâncias mostrava que a saúde avançava
também. Só não sabia ao certo para que lado, pensa o velho observador. Sorvendo
mais um gole de seu mate, observa a grande quantidade de pessoas que aguardavam
na recepção do pronto socorro. Dizia-se atualmente na mídia que faltavam
médicos em seu país para atender a demanda de doentes em municípios pequenos e
até médios como o seu. Essa era a causa principal da falência da saúde,
afirmavam os mais entendidos membros do governo: a falta de médicos e
principalmente a escassez desses profissionais que se dedicassem a atuar na saúde
básica e preventiva. Preferiam, os jovens doutores, dedicar-se as
especialidades médicas. Hoje em dia, na medicina, o ser humano se dividia em
partes. E, ao que parecia a este idoso, poucos eram os que se dispunham a juntá-las.
Coisas dessa modernidade um tanto quanto desconexa. Mas não caberia justamente
ao Estado deliberar e regular quantos e que tipo de profissionais suas
universidades e faculdades formariam? Para esse velho ignorante as coisas
pareciam confusas. Diferentes do tempo em que trabalhara na agricultura. Tudo
era mais coerente naquela época. Quando o mercado pedia por feijão, plantava-se
mais feijão. Jamais plantara mandioca e esperara colher feijão. Não fazia
sentido. E só plantava feijão se o preço fosse justo e competitivo, caso
contrário, plantava-se pasto para engordar o gado. Uma comparação simplista de
um velho tolo, certamente.
Se o problema residia apenas em pequenos municípios, onde os
médicos não se firmavam pelas precárias condições locais, então como explicar
as constantes manchetes da mídia de superlotações em gigantes hospitais públicos
de grandes metrópoles? Não era raro assistir as imagens de pessoas em cadeiras
de rodas e macas aguardando uma internação. Em sua miopia de idoso, não parecia
possível que mesmo várias centenas de médicos pudessem resolver a falta de
leitos, remédios e exames. Ou será que podiam? Talvez fossem sobre-humanos
esses profissionais. Mesmo em grandes centros urbanos sobravam queixas de falta
de médicos no sistema público para atender em emergências e postos de saúde. Seria
mesmo, como deixavam entender alguns, pura falta de humanidade dessa categoria na
hora de honrar seu juramento? Não queriam trabalhar no SUS por mera
mesquinharia e falta de compaixão? Com um suspiro, o velho recorda-se do tempo
em que abandonara a vida no campo. Perder sua lavoura, repetidas vezes, pela
estiagem, lhe causava ainda hoje, enorme aperto no peito. Que diria se fossem
vidas humanas perdidas. Os médicos, com certeza, não deviam se abalar com as
pequenas agonias do cotidiano da saúde pública brasileira. Deviam ser insensíveis,
os tais homens de branco. Gente sem coração, certamente. Conseguiam pairar alheios,
e de mãos amarradas, a dor, ao sofrimento e a morte. Trariam médicos do
exterior, anunciavam os governantes. Estaria resolvido o problema. O velho,
ignorante e tosco, pensava em que tipo de profissionais seriam estes, os de
fora. Deviam ser como máquinas. Provavelmente robôs. Só assim conseguiriam suportar,
e escapar ilesos, à ineficiência e desumanidade de nosso caótico sistema
público de saúde. Pelo menos poderiam assistir aos jogos da Copa do Mundo no
Brasil, os tais estrangeiros. Estádios de futebol sempre hão de abundar no país
do carnaval eterno. Na experiência desse velho, onde se plantam falácias só se
colhe hipocrisia.
Muito Bom!
ResponderExcluirTriste Realidade.Pobre Velho. Belo E Triste Texto.
ResponderExcluirMuito Bom!
ResponderExcluir