sábado, 15 de dezembro de 2012

Os Fantasmas de Poliana


Sozinha em sua redoma de vidro fumê, folheando velhos livros de grandes figuras da história mundial, Poliana afogava suas mágoas e desilusões da forma que mais gostava: degustando caixas e mais caixas de bombons de amarula. Depois de tantos deslizes cometidos ao longo de seu escandaloso reinado, o pecado da gula certamente seria perdoado no dia do juízo final. E o juízo final parecia cada vez mais próximo para nossa voraz rainha. Se não tivesse ido com tanta fome ao pote, talvez não tivesse entornado o cocho. Ou se não tivesse escolhido bobos e aliados igualmente tão gananciosos e descomedidos, lastima-se sua alteza acariciando sua adorada coroa.
Erguendo-se tropegamente Poliana repete a frase que ouvira de seus companheiros tantas vezes nos últimos dias. Quem sabe se repetisse mil vezes conseguisse convencer a todos, até a si mesma:
- Um delito tão pequeno! Eu não posso cair por algo tão insignificante!
- É claro que pode, caríssima! Pequenos tropeços já derrubaram grandes homens.
Assustada, Poliana se volta para a estranha voz e prontamente reconhece o homem de chapéu, sentado na poltrona, e que lhe lançava um certo olhar de deboche por trás da fumaça do charuto que trazia entre os dedos.
- Mas eu só cometi uma pequena asneira. O erro tolo de fazer propaganda quando não era permitida. Só isso! – defende-se sua alteza, ofendida.
- Ora, ora, minha cara. Você cometeu várias tolices e não foi apenas essa a que lhe derrubou. – afirma o homem, tirando um isqueiro do colete e reavivando a chama do charuto que esmorecia. 
- O que você entende disso Capone? Você é só um fantasma que veio me assombrar, não conhece meu reino nem meu reinado!
- Mas conheço a arrogância e a soberba, cara. Conheço o gosto que o poder tem. Sei como é pensar que se está acima das leis dos homens. Sei como é infringir todas elas. E, assim como você, sei como é tropeçar em ninharias.
- Você era um gangster! Um mafioso! Bem diferente de mim! – indigna-se a rainha.
- Nisso você tem razão, cara mia. Essa é a grande diferença entre nós. Eu tinha uma organização. Um grupo com regras e conceitos rígidos, a nosso modo é claro. Mas eu mantinha as rédeas curtas e firmes sobre meu grupo. Existia certo código de ética entre os gangsters em meu tempo. Você, Poliana, escolheu muito mal seus asseclas. Homens sem limites, sem qualquer senso de ética. Há que se ter ética, Poliana. Até mesmo na contravenção. Você, como líder de organização, não soube impor limites em sua turma. Assim como eu, tropeçou em seu próprio ego. Você e eu, rainha, acabamos nos deixando enrolar por nossos menores pecados.
- Mas eu não vou cair! Eu tenho o apoio do povo. O povo me idolatra! – afirma a monarca insolente.
Do outro lado do recinto uma nova voz se faz ouvir:
-O povo está ao lado dos fortes e foge dos fracassados, majestade. O povo que ontem lhe carregou no colo com honrarias e glórias, será o mesmo que lhe virará as costas e lhe chamará de facínora ao cerrar das negras cortinas. – afirma a outra figura saída das trevas da embriagada rainha.
Poliana observa esse outro conhecido personagem. De pé, muito ereto e altivo, cabelo bem penteado e engomado, de postura autoritária e arrogante em seu uniforme onde se sobressaia a imponente suástica.
- Adolf? – questiona a rainha incrédula.
- A seu inteiro dispor majestade. – responde a ilustre personagem.
- Você também veio se intrometer no meu reinado e na minha desgraça?! Agora que eu estou afundando na lama até os mortos resolveram tripudiar de mim! O que você entende do meu reino? Você foi um tirano, eu sou uma soberana adorada por meu povo, viu seu Adolf Hitler!
- Eu também fui idolatrado por meu povo, magnânima. O povo alemão me venerava. Lotavam as ruas e praças para me ouvir falar. Meus discursos e minhas palavras proféticas, assim como as suas, comoviam e mobilizavam as massas. Minhas ideias e convicções, por mais doentias que pareçam hoje para vocês, reles mortais, convenceram milhares. Eu era Deus! Mas até os deuses caem, Poliana.
- Você era um ditador! – afirma a rainha indignada.
- Um ditador com o apoio das massas, magnânima. Não se iluda. As massas foram e sempre serão massas de manobra. Na minha ditadura e no seu reinado democrático. O povo só enxerga o que nós queremos que ele enxergue. O povo alemão queria uma Alemanha limpa. Era isso que eu vendia a ele. O povo não precisava ver os horrores do holocausto. Ao povo bastava a imagem de uma Alemanha progressista, forte e patriótica. Era isso que eu lhes mostrava em propagandas e discursos.  O mesmo ocorre em seu democrático reinado, majestade. O seu adorado e ingênuo povo quer um reino feliz e harmonioso, como uma marchinha de carnaval. E é isso que você oferece a seus súditos, Poliana, em marketing, mídia, banners e alegorias. Mas ao final do carnaval, vem a quarta feira de cinzas e você precisa se preparar para esse dia, minha rainha.
- Mas eu não quero cair! Não aceito isso! É uma injustiça! Uma perseguição!
Nisso, um novo vulto se aproxima da rainha discursando:
-Na verdade, companheira Poliana, é uma perseguição midiática de uma elite reacionária e antidemocrática que detém o poder nesse reino desde o seu descobrimento. – sentencia uma conhecida voz, de timbre um tanto mais rouco, mas não menos carismático e hipnótico.
- Luiz?! É você mesmo? Pensei que já estivesse preso! Quer dizer... – corrige-se prontamente a embaraçada rainha - ... sabe como é, com os meus problemas atuais só pego uns flashes aqui outro ali dos telejornais e você parece mais atolado que eu em escândalos ultimamente.
- Como você companheira Poliana, eu estou sendo vítima de um grande complô armado para desestabilizar esse grande projeto, idealizado por mim, de um país democrático e justo para nossos comparsas. Assim como está ocorrendo com você Poliana, eu e nossos amigos mensaleiros estamos sendo perseguido por um judiciário antidemocrático que resolveu cumprir a Constituição e o código penal e passar por cima das regras básicas de conduta impostas por meu partido. Uma total insubordinação as autoridades instituídas. Uma violação clara ao Estado Democrático de esquerda, companheira! – inflama-se o velho líder, sem jamais perder a vergonha ou a compostura.
- Eu concordo plenamente companheiro Luiz Inácio! Até que em fim alguém lúcido nessa minha noite de embriaguez! Eu só ouvi tolices essa noite. Alias, tenho ouvido e lido tolices a semana inteira. Ainda bem que você apareceu Luiz! Só você pode me compreender. – exclama a monarca emocionada.
- Bem, bem.  – rosna Capone erguendo-se da poltrona – Melhor irmos embora Adolf. A sala ficou cheia demais. É muito ego para pouco espaço, meu caro. Vamos tomar um Whisky. Por minha conta, é claro.
- Tem razão Capone. O ar ficou um tanto pesado. – acrescenta o empertigado militar, franzindo o diminuto bigode – Vamos brindar a arrogância dos tolos, a soberba dos fracos de caráter, e ao tênue fio que sustenta os poderosos a ignorância de seu povo. E a Justiça! Que seja cega, mas certeira!
- E aos pequenos tropeços! – sorri Capone, abraçando efusivamente Adolf pelos ombros. – Que estrago farão os pequenos tropeços quando esses egos inflados atingirem o solo árido de uma cela, hein Adolf? Nós sabemos! – gargalha o mafioso enquanto o ariano lançava um sorriso de escarnio para a dupla que permanecia no recinto.



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