Na
democrática praça do reino o espetáculo não chegava a encher os olhos. Dezenas de
pessoas ocupavam o largo. Bandeiras vermelhas, novinhas em folha, se agitavam.
Eventuais aplausos mais efusivos ressoavam, mas não chegavam a contagiar a
massa um tanto descomposta. Discursos eloquentes e acalorados levavam a plateia
mais fanática ao delírio. Mas o calor que se impunha era o do sol escaldante,
não o da comoção popular com que sonhara a rainha e sua vasta corte. Vasta corte
que, ao que parecia, preferira aproveitar a manhã ensolarada para atividades
mais caseiras do que a de apoiar sua trôpega soberana. Palavras de ordem tentavam
acordar os ânimos mais dormentes. Ilustres e importantes figuras pesavam e se
arrastavam no palco da festa. Tentando manter a compostura e a pose de monarca
injustiçada e perseguida, Poliana olhava aquela meia dúzia de gatos pingados
pensando se haveriam braços suficientes para carregá-la. Melhor ficar no
palanque do que se arriscar cair ainda antes do que as previsões apontavam.
Mais um fiasco em sua meteórica e promissora carreira. Talvez devesse ter
ouvido seus críticos ao invés de seus aliados. As coisas pareciam não estar
correndo como planejaram seus companheiros, pensava a já desiludida rainha. Mas
a ideia era boa e tentadora. A velha luta dos fracos e injustiçados contra a
crueldade de uma elite desalmada. A pobre e perseguida Poliana seria, mais uma
vez, carregada pelos braços do povo como a estrela que sempre fora. Seu povo
era um povo solidário quando a causa era justa e nada poderia ser mais justo do
que uma orquestrada revolta popular contra a reacionária e antidemocrática Justiça.
Na cartilha de seu clã Poliana aprendera que justiça era apenas uma palavrinha
bonita que se usava em discursos eleitoreiros e na falta de coisa melhor para
dizer. Era conveniente que fosse assim. Cega, surda e muda, Justiça fora
evocada centenas de vezes pelas vozes alteradas e revolucionárias dos
militantes da grande causa do clã de Poliana. Uma relação perfeita que a
prepotente Justiça não soube valorizar. Justiça resolvera se rebelar e cometera
o mais imperdoável dos erros: julgar e aplicar as leis, sem distinção de cores
ou facções. Erro crasso, que o poderoso clã não deixaria passar em branco. Era hora
de mostrar à insubordinada Justiça que a voz do povo é a voz de Deus e que o
povo come na mão de Poliana e de seus poderosos amigos. Precisavam atar as mãos
dessa criatura insolente e quem sabe lhe arrancar o cérebro. Esse era o plano
do seleto grupo de mentes brilhantes que cercavam e sustentavam Poliana.
Enquanto as raposas mais ardilosas moviam mundos, e muitos fundos, na sede do
poder central para lobotomizar Justiça, a patrulha ideológica da rainha
mobilizava o povo contra esse monstro reacionário e vil que perseguia sua
alteza. Poliana e seus asseclas mal podiam esperar para ver a reação de Justiça
frente a toda essa mobilização. Os membros do núcleo duro do poder tentavam
esconder o sorrisinho de escárnio pelo golpe que se vislumbrava certeiro. Cochichavam, os mais ousados e impertinentes,
que já tinha gente abandonando o reino para fugir da verdadeira lavada
promovida pela rainha e sua trupe. A fórmula era perfeita, mas faltara o
ingrediente principal. Seu povo não comparecera, e Poliana não conseguia
entender o que poderia ter acontecido. Não fora por falta de convite, afinal
carros de som e propaganda maciça não faltaram. Menos ainda pela escassez de
pão com linguiça. Transporte então, nem se falava, frotas de ônibus e
prometidas excursões de apoio vinham de reinos que Poliana nem ao menos
conhecia. E mesmo com todo o trabalho de
seus companheiros, o povo, seu povo, deixara Poliana sozinha. Preferira fazer
as compras de Natal. Quanto pão com linguiça desperdiçado, lastima a rainha a
beira das lágrimas. Olhando de soslaio, com seus olhinhos de biscuit
lacrimejantes, Poliana já percebia seus companheiros mais chegados se
afastando. Ninguém queria ser fotografado ao lado da monarca decadente. Nos
bastidores do espetáculo, depois de cerradas as cortinas e longe dos holofotes,
seus aliados afirmavam a rainha que a guerra estava ganha. Ainda existia o
photoshop que transformava dezenas em milhares, e nisso a companheirada era imbatível.
Além de tudo, não devia esquecer do alinhamento fisiológico que já lhe
garantira a coroa uma vez e certamente lhe livraria da guilhotina iminente.
Justiça não é páreo para nosso grupo, Poliana! – asseguravam seus fieis e
influentes companheiros. A Justiça serve aos fortes e se aplica aos fracos,
esse é o lema de nosso clã e nós daremos um jeito de fazer com que Justiça não se esqueça disso novamente. “Tomara que eles
estejam certos e que Justiça não conteste essa nossa velha máxima, afinal já
havia jurisprudência em contrário.” – suspira a desarranjada rainha, arrumando
desajeitadamente a escorregadia coroa na cabeça.
Muito Bom, ja era pro fantoche
ResponderExcluirMais uma vez escreveste com muita criatividade e dentro do que vem ocorrendo na nossa cidade. Parabéns.
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