sexta-feira, 6 de abril de 2012

Nostalgia de Páscoa


Sentado no banco da praça o velho enrolava lentamente seu palheiro. Os dedos calejados pelo trabalho e as juntas retorcidas pelo tempo tornavam essa simples tarefa, hábito de tantos anos, cada vez mais lenta e difícil. A visão também não era mais a mesma, pensava correndo os olhos cansados pelo largo e observando o tremular da imensa bandeira. A paisagem mudara tanto nessas décadas que quase não reconhecia o local onde nascera. Ainda sentia saudades da velha igreja, quase tanto quanto sentia saudades dos velhos valores. Achava-se perdido nesse mundo moderno onde uma procissão de veículos ocupa as ruas em que antes se jogava futebol e bolita. O pequeno castelo parecia ainda mais mal tratado do que o corpo enrugado desse ancião. Era uma lástima vê-lo assim, como a lembrar a esse velho, que o tempo passa para todos, sem piedade ou compaixão.
Folhando o jornal, refletia sobre os despautérios de conceitos que regiam essa sociedade que se dizia evoluída. Com toda a idade que carregava nas costas, cada vez mais curvadas, ainda não conseguia identificar em que momento os valores humanos haviam se depreciado tanto.
Os meios de comunicação se difundiram de maneira fantástica e em tão pouco tempo e, no entanto, a este velho, parecia que as pessoas cada vez se comunicavam menos. Sentia falta dos almoços de domingo em família. Tinha saudades até da algazarra do criaredo. Hoje, poucos se sentavam a mesa e a algazarra que existia era do tique irritante do dedilhar frenético de seus netos naqueles formidáveis telefones onde se pode até mandar e receber mensagens. Por vezes, tinha curiosidade em saber que assuntos importantes poderiam estar discutindo crianças ainda tão pequenas a ponto de não se respeitar nem a hora das refeições. Mas era melhor nem perguntar, pois são muito temperamentais as crianças hoje em dia e, afinal de contas, melhor estarem a mesa com os tais aparelhos do que no quarto com os bem ditos computadores portáteis. Pelo menos assim podia vê-las de vez em quando e acompanhar-lhes o crescimento. E como cresciam rápido as crianças nesse mundo moderno! E quanta ânsia elas tinham de chegar logo a idade adulta. Vestiam-se desde pequenas como miniaturas de gente grande. Ou talvez fosse o fim da vida que lhe dava impressão de que tudo se esgotava mais rápido do que gostaria. Como os ovos de açúcar de sua Páscoa de menino. Açúcar! Sentia saudades desse também, cortado há quase duas décadas por seu sério e impiedoso cardiologista. Mais um avanço dos novos tempos. Descobria-se hoje, doenças que nem se sabia da existência no passado. A ciência, por vezes cruel e contraditória, era mesmo assim fabulosa.
Continuando a passar rapidamente a vista pelas manchetes do jornal, pensa nas reviravoltas que o mundo da política também sofrera. Ainda estranhava ver lado a lado pessoas que, em seu tempo, tinham opiniões e ideologias tão diversas. Todos tinham a mesma cara hoje em dia. A mesma cara e nenhuma vergonha de verem-se envolvidos em tantos escândalos de corrupção. Foi-se o tempo em que honestidade e hombridade tinham valor para as pessoas. Não conseguia recordar em que momento o fio de bigode e a palavra de um homem foram trocados de maneira tão vil por propinas e dinheiro sujo. Nem conseguia entender, em sua caduquice de velho, que estádios de futebol - esporte que adorava - fossem mais importantes que hospitais e escolas. Parecia-lhe absurdamente perturbador que em um país onde doentes agonizam em emergências lotadas o tema que mais mobilizava as massas era a reforma de um imponente estádio, mesmo em se tratando do gigante estádio de seu amado Colorado. Em outras épocas se diria que se tratava de pão e circo para os tolos. Visões simplórias de um velho decrépito e nostálgico, com certeza. Até as prioridades ficavam turvadas e fora de foco com o passar dos anos. Melhor parar de pensar, outro hábito que parecia ultrapassado. Era hora de voltar para casa. Sua véia, parceira de meio século, ainda virava uma jaguatirica quando ele se atrasava para o almoço. Isso, ao menos, não mudara com os anos. Nessa idade não podia ser a tal falada TPM, uma explicação moderna para as conhecidas crises de mau humor das mulheres. Olhando o relógio de pulso, mais um item em fase de extinção, apreçava com certa dificuldade, os passos a cada dia mais curtos. Ainda precisava esconder os ninhos de Páscoa para o dia seguinte. Tomara seus filhos e netos tirassem um pouco de seus preciosos minutos para procurá-los. Não via a hora de chegar em casa e aquecer as juntas em volta do borraio, enquanto mateava e tragava mais um de seus palheiros. Esse vício, afirmava seu médico, cedo ou tarde, iria lhe matar. Ao que parecia, lhe matava mais lentamente que a saudade que sentia de tudo que deixara de entender com o avançar dos anos e o evoluir assombroso dessa maravilhosa sociedade moderna.

3 comentários:

  1. É UMA MATÉRIA QUE TEM QUE SER PUBLICADA EM TODOS OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO POOSSÍVEIS...É UMA LIÇÃO DE VIDA !!!
    MAS QUE INSPIRAÇÃO AMIGA !!!

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  2. Querida, vc sabe o qto te admiro, Poliana veio p ficar, e uma reflexao sobre a nossa sociedade, independente de ideologias. Tenho meus contos preferidos, mas esse em especial é sem sombra de duvida o de melhor conteudo. Obrigada p nos brindar c suas analises, se causa temor em alguns, criticas de alguns, contentamento de tantos, instiga a pensar. Isso e o mais importante. Feliz Pascoa!

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  3. Chorei, amiga! Real, muito real.

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