O lugar era escuro e o calor insuportável
e escaldante. O mormaço desconfortável tornava a respiração pesada e difícil. O
suor lhe escorria na fronte e já pingava pelos fios grisalhos da barba um tanto
rala. O ambiente era claustrofóbico e úmido. Um labirinto. O homem apertava os
olhos embaçados para tentar descobrir o caminho certo a seguir. Uma encruzilhada
à frente lhe fizera parar e relutar, em dúvida.
- Avante, General! À esquerda!
Essa sempre foi sua escolha! – ordena uma autoritária voz, com um sotaque bem
diferente do seu.
Acostumado a mandar, o homem
ainda titubeou um pouco antes de decidir por seguir as ordens daquela voz, um
tanto fina, mas firme, decidida, e definitivamente arrogante. Um pouquinho de
seu orgulho já se esvaíra com o suor que lhe empapava a farda verde-oliva. Caminhou
por quilômetros. Ou teriam sido metros? Os coturnos nunca lhe pareceram tão
pesados. Que falta lhe faziam seu tênis Nike. Malditos Imperialistas Ianques! O
embargo, que não lhe perseguira em sua longeva e farta vida material, pelo
visto lhe atingiria por toda o resto de sua existência infernal.
No final do úmido e mormacento
túnel, havia, não luz, mas uma solitária brasa. E em direção à brasa o general
se dirigiu, com os pesados passos de noventa anos bem vividos e o peso de
muitas vidas bem fuziladas. Vendo-se livre daquela masmorra opressora, suspira
aliviado. Mas é acometido por um surto de tosse, ao inalar o ar carregado com o
forte cheiro de enxofre do local.
- Heil, Fidel! - saúda o homem
baixote e empertigado, de farda engomada e impecável, ralos fios de cabelo lambidos
e repartidos para o lado, com o diminuto bigodinho negro sobre os lábios, e a
reluzente e imponente suástica no braço. –
Beienvenido, el general! – improvisa o ariano, em raro momento de concessão
com raças inferiores. Trazia, Adolf,
entre os dedos, um charuto. Que maravilhosa constatação, pensa Fidel, entre uma
tossida e outra, ter sido justo a tênue chama de um charuto que o conduzira no
labirinto do inferno. A essas alturas, toda ilha devia estar em prantos por sua
súbita e precoce ausência, lastima el
capitan.
- Beba isso, comandante! –
Oferece o alemão, seco, uma dose de Rum com gelo. – A travessia dos portais do
inferno sempre é árdua para nós, os grandes.
O homem, em grandes e sedentos
goles, rapidamente esvazia o copo, que novamente é enchido pelo outro. Já na
terceira dose, Fidel lança pela primeira vez o olhar para o local. Era uma
diminuta sala, com uma cama estreita, uma latrina e uma pia. Só se diferenciava
de uma cela pela presença de uma poltrona em frente a uma tela. Curioso, pensa
o revolucionário, pelo visto há entretenimento no inferno.
Voltando novamente os olhos para
seu anfitrião, surpreende-se com o aspecto do mesmo. Já não lhe parecia o mesmo
homem de minutos atrás. Talvez o calor tivesse turvado sua percepção inicial,
constata. A pele acinzentada revestia um rosto ossudo e encovado, e o corpo
encurvado parecia mal conseguir sustentar o peso da farda. Não lembrava em nada
o empertigado Adolf Hitler das fotos dos livros de história.
- Então é aqui que eu vou ficar? –
pergunta.
- Sim. – responde o ariano.
- É bem melhor do que eu esperava.
Sou um líder revolucionário. Já dormi em lugares muito piores que este. Vou me
adaptar facilmente. – constata Fidel, estufando o peito rejuvenescido após a
passagem. – E a comida é boa?
- Depende.
- Depende do quê? Do meu
comportamento aqui no inferno?
- Não, comandante. – responde Adolf,
com um discreto suspiro. – Depende da comida que você mandou dar aos presos de seu
tempo.
Tentando disfarçar o desconforto
com a notícia, Fidel resolve mudar de assunto e questiona ao outro:
- E essa tela? Vou assistir a
mesma programação que obriguei os cubanos a assistirem esses anos todos? Eu
posso ver a repercussão mundial com a minha morte? Estou louco para ver o
pronunciamento de Barack! E o pesar
legítimo da maravilhosa América Latina nas palavras de Maduro, Evo, Luís Inácio
e Fernando Henrique.
- Não, Fidel. – reponde Adolf,
parecendo cada vez mais cansado e até um pouco triste. – Nessa tela não passará
nenhum de seus intermináveis e cansativos discursos. Muito menos as lamúrias de
políticos idiotas e hipócritas por sua morte. Essa tela, el comandante, é a sua penitência.
- Um telão?! - pergunta o general, olhando com descrédito
para o objeto branco. Se soubesse que a pena seria esta, talvez tivesse se
entregado bem antes dos noventa.
- Nessa tela, comandante,
passarão continuamente, não a sua vida, mas a vida e a história de cada cubano
que você prendeu, perseguiu, torturou ou matou. – informa o outro.
- Eu não cheguei onde cheguei
sendo um fraco, Adolf! – empertiga-se Castro. – O sofrimento e a morte nunca me
acovardaram. Sou o que sou por me dedicar a uma causa.
- Interessante, Fidel. Usei palavras
parecidas quando Mussolini aqui me recepcionou há tanto tempo. Ele chegara aqui poucos dias antes de mim. – relembra
o ariano, fixando os olhos no recém chegado. Olhos sem nenhum brilho e que
pareciam carregados de uma agonia que fizeram o socialista se arrepiar. – Mas, el comandate, você não vai apenas
assistir. Seria uma pena branda, não é verdade? Você vai sentir, Fidel. Sentir
tudo o que sentiram suas milhares de vítimas. A raiva, a revolta, o sofrimento,
a fome, a angustia, o medo, a dor. Vais sentir a morte, Fidel. Milhares de
mortes! E vais senti-las, milhares de vezes, até que tenhas entendido a imensa
inutilidade de cada uma delas. Até que te arrependas de todas. Essa é tua pena.
E aqui, como em tua ilha, ou em minha Alemanha nazista, não há recursos. –
informa Adolf, dirigindo-se cansativamente para o labirinto. – Boa sorte,
Fidel. – deseja o outro, em um quase sussurro de despedida.
- Espere! – grita o comandante. –
Isso não é justo! – argumenta, exaltado. – Tudo o que fiz, fiz em nome de um
ideal de justiça social e igualdade! Almejava uma ilha sem desigualdades ou
privilégios burgueses, com saúde e educação para todos! Fiz tudo em nome de um
bem maior! Sempre tive as mais justas e boas intenções! – argumenta o ícone
socialista, nababo caribenho que degustava lagostas enquanto seu povo se prostituía
para complementar a ração mensamente fornecida pelo Estado.
Sob o umbral da saída, Hitler para
por um breve momento e voltando lentamente a cabeça reponde ao revolucionário comunista:
- É como se diz lá no mundo terreno, Fidel: de boas intenções o inferno está
cheio! Hasta la vista, el capitan! – despede-se
o ariano, abandonando o recinto.
Sozinho, Fidel vê o lugar tornar-se
escuro e a tela, que agora lhe parecia imensa, se iluminar com imagens
espetacularmente reais de uma mata, Sierra Maestra! Era como se ele tivesse
sido jogado para dento da tela. Sentia-se ofegante, como se tivesse corrido
milhas. Sentia medo! Um medo sufocante que lhe oprimia o peito. Estava sendo
perseguido. Precisava escapar! Não conseguira. Fora capturado. Sentia a dor dos
golpes e o gosto de sangue na boca. Perdera a consciência. Acordara e sentira
um cheiro nauseante. Virara o rosto tentando identificar de onde vinha o odor
asqueroso. Então, o vira. Che! Neste momento, Che ergue uma faca imunda em sua
direção. Fidel tenta lutar, o pavor lhe faz tentar resistir. Mesmo apavorado,
enxerga um outro jovem atrás de Chê, que gargalha com outros, assistindo a
degola eminente. Era ele mesmo, Fidel! Dono de todas as certezas e confiante de
que todos os meios justificam qualquer louvável fim. – Não! – grita Fidel para
ouvidos moucos. – Sou eu! Sou eu camaradas! – tenta argumentar antes de
sucumbir a primeira das milhares de mortes que o aguardavam no inferno.
Assim passou Fidel, sua primeira
morte no inferno. A primeira de milhares.
Mas este é só um conto, uma ficção.
Fidel sempre será o revolucionário idealista e utópico das esquerdas. E um ditador
assassino e cruel para os demais.
Onde quer que estejas Fidel
Castro, que lhe sejam justos teus julgadores, da mesma justa forma como justo fostes
com os teus opositores.