Em reunião de emergência, a alta cúpula do clã estrelado discutia
o delicado momento de crise. Não que assistir um companheiro sendo
preso pudesse ser visto como crise nos dias atuais, era quase uma
programação semanal. Mas esse companheiro era especial. Tinha a
chave do cofre que sustentava toda a constelação, e era preciso que
se tomassem medidas rápidas para estancar o prejuízo. Entre
lástimas, choramingos e gritos de guerra com os punhos erguidos, a
companheirada quebrava a cabeça para decidir a melhor estratégia.
- Um homem tão bom. Verdadeiro guerreiro. Exemplo de luta por nosso
projeto socialista. Socializava tão bem as propinas! Uma covardia
estar sendo perseguido dessa forma por Justiça! Essa conspiração
de Justiça contra nosso clã está passando dos limites.
- É verdade companheiro, mas precisamos decidir o futuro do nosso
amigo, pois o seu presente está enlameando ainda mais a imagem de
nosso clã. Se é que isso é possível.
- Vocês acham que devemos afastá-lo do cargo de tesoureiro?
- É evidente que sim, seus energúmenos! - grita a Rainha Mãe, com
sua costumeira falta de tolerância com perguntas idiotas.
- Nós sabemos, rainha, que precisamos passar um certo ar de
moralidade, mas tratá-se de um antigo companheiro nosso.
- Que moralidade que nada! Nós com merda até as orelhas quem é que
vai se preocupar com moralidade? Precisamos ser práticos!
Práticos! O homem tá preso. No chilindró. Vendo o sol nascer
quadrado. Cês entendem o que isso significa? - questiona sua
alteza, impaciente.
- Que a imagem pública de nosso clã esta cada vez mais desgastada.
- responde o outro, desiludido.
- Desgastada?! - irrita-se a Rainha Mãe. - Desgastada tá a minha
cara! A imagem do nosso clã estrelado tá em frangalhos, seus
estúpidos.
- Também não é assim, rainha! Nós temos nosso exército de
militantes sempre prontos a irem às ruas por nosso clã. -
indigna-se um general do MSTT (Movimento Só Tramoia e Trago).
- Ora, vão carpi um lote, você e seu exército! Se é que algum de
vocês sabe para que serve uma enxada. - tripudia a monarca, cada
vez mais azeda. - Não sei no que, um bando de sem serventia como
vocês, destruindo mudinhas de eucalipto, possa melhorar a imagem
de alguém. Chega de palhaçada! Precisamos tomar decisões firmes
antes que esse lodo todo chegue ao meu palácio.
- Então, afastamos ou não o companheiro do cargo?
- Ele já esta afastado, seu cretino! - grita a rainha, perdendo a
paciência e atirando uma barra de proteínas de sua famosa dieta
real em direção ao outro. - Ele está preso! E presos não
corrompem empreiteiros. Só os que estão na mesma cela. Não
arrecadam dinheiro sujo, nem distribuem propinas! Portanto, ele não
serve mais ao nosso clã. Precisamos trocá-lo.
- Mas, Rainha Mãe, se nós o afastarmos, poderá parecer ao povo que
estamos assinando uma confissão de culpa. - argumenta Abutre, o presidente
do clã.
- Queridinho, a essas alturas do campeonato o povo não precisa da
nossa confissão, já nos declarou culpados. Se é que cê me
entende. Vamos afastá-lo e depois você assina uma daquelas cartas
do nosso clã recheadas de baboseiras. Não precisa nem fazer um
texto novo, é só copiar o mesmo que divulgamos quando os
mensaleiros foram presos. Basta repetir a velha ladainha da última
década: que somos perseguidos pela imprensa, por Oposição e pela
Justiça. E acrescentar que hoje existe uma elite reacionária,
intransigente e que odeia a inclusão social promovida por nosso
clã, tentando ganhar as ruas, como se as ruas fossem de todos. O
povo vai achar ridículo, mas nossa militância alienada vai
delirar, como sempre.
- E quem colocaremos no lugar dele? - pergunta o presidente Abutre.
-É preciso que sejamos criteriosos, afinal nossos dois últimos
tesoureiros acabaram em cana. Não podemos cometer erros nas nossas
escolhas. - acrescenta outro companheiro
- Que critérios adotaremos?
- Critérios rigorosos!
- Isso mesmo! - concorda o grupo.
- Nada de barba!
- Apoiado!
- Mochila, nem pensar!
- Nem cuecas!
- Maletas executivas me parecem adequadas para o transporte das
propinas.
- Perfeito!
- Não pode estar na cadeia. Ainda.
- Evidente.
- Mas deve estar preparado para ir para lá. Em alguns anos.
- Tem que ter panturrilhas grossas. - opina a rainha, saboreando sua
barra de proteínas, causando espanto nos presentes pela sugestão.
- Panturrilhas, alteza? - questiona um companheiro, curioso.
- Claro, companheiros. Vocês já viram como são as privadas no
cadeião? É preciso panturrilhas preparadas para se defecar com
alguma dignidade em nossos presídios.
- Tem razão, alteza. Bem, está decidido! - anuncia o presidente do
digníssimo clã estrelado, apanhando o telefone e fazendo uma
ligação. - Alô! Marcola, meu querido! Que satisfação falar com
você. Quanto tempo! Eu tenho um carguinho disponível, e gostaria
que você me indicasse um dos seus homens de confiança. É negócio
do bom. Coisa pra profissional! - pausa, enquanto escutava a
resposta do outro lado da linha. - Como assim não se mete em
negócios com nosso clã?! - nova pausa – Que papo é esse de
moralidade, mano? - longa pausa – Também não precisa
esculachar! - enrubesce Abutre – Chega de lição de
moral, Marcola! Vamos encerrar o assunto por aqui. - conclui a
atordoada estrela, Abutre, desligando o telefone e fazendo nova ligação.
- Fernandinho! Há quanto tempo!... O que é isso Fernandinho?!
Isso é jeito de tratar os amigos?!... Filha do quê?! Isso são
modos, Fernandinho?!....
E assim, por longas horas, se deu a difícil tarefa de encontrar
alguém com a dignidade e a moralidade a altura desse importante
cargo do digníssimo clã estrelado e sua constelação de inocentes
úteis.