Sentado
em uma confortável poltrona da sala de estar de sua novíssima e
milionária cobertura de veraneio, o Ilusionista admirava a árvore
de Natal. Essas épocas de festas lhe causavam certa nostalgia. Ainda
sentia saudades dos anos em que comandara Gigante Adormecido. O mais
popular e adorado rei que esse reino já tivera, disso podia se
orgulhar, pensava ele, bebericando seu caro whisky. Estar longe do
trono não lhe tirara o mando do jogo, mas não era exatamente a
mesma coisa. Carecia de certo glamour. O poder inebria e vicia quase
tanto quanto os aperitivos que tanto apreciava. E, esta noite, já
havia saboreado várias doses que o faziam sentir-se um tanto
lânguido.
Observando
o piscar das luzes da árvore, deteve-se na grande estrela posta bem
no topo. Uma estrela mudara sua vida. Soubera no momento certo
agarrar-se a ela para se fazer brilhar. Astúcia era outra de suas
qualidades, refletia passando a mão no queixo para acariciar a barba
que há alguns anos deixara de usar. Hábito de décadas que ainda
não esquecera por completo. Meio hipnotizado pelo piscar cadenciado
das luzes de Natal, percebe um movimento ao seu lado. Voltando-se, dá
de cara com um sujeito barrigudo e barbudo que o olhava com
interesse.
- Quem
é você? - pergunta um pouco assustado, embora o homem lhe
parecesse conhecido.
- Eu
sou você no passado. Não me reconhece mais companheiro? -
responde-lhe aquela estranha criatura, de barba negra e densa, em
um tom rouco e característico que lhe soava bastante familiar.
- Não
pode ser! Devo ter extrapolado minha cota de whisky. - responde o
Ilusionista com idêntico timbre de voz.
- É
normal. As duas coisas. Nós sempre exageramos no whysky, e você
está muito diferente do que era há quase vinte anos. - afirma o
barbudo, sentando-se a sua frente e acendendo um de seus charutos.
- Eu
não uso mais essa barba e o branco cobriu meus cabelos. - continua
o Ilusionista, tentando se acostumar a esdrúxula situação.
- Você
deixou de usar muitas das velhas coisas, companheiro. Seus
discursos de hoje quase me fazem enrubescer. - afirma o homem,
servindo-se de uma dose de whisky. - E as companhias, então?
Enquanto eu, preso no passado, esbravejo bravamente contra
colloridos corruptos e oligarcas maranhenses, você, aqui, anda de
braços com eles e praticamente lhes beija as mãos. É um pouco
constrangedor para mim, confesso.
- Você
ainda não conhece o poder. Em breve vai mudar de ideia, pode
esperar. - afirma o Ilusinista, entre um gole e outro.
- Sabe
o que mais me insulta? É ver você chamando essa atual
oposiçãozinha mequetrefe de golpista. Oposição é o que eu
faço! Conclamar minha militância fiel para ir as ruas pedir o
impeachment de meu adversário corrupto. Bradar, todos os anos nos
palanques, contra presidentes neoliberais. Articular a
companheirada para votar contra todos os projetos dos donos do
poder. Organizar invasão de terras, greves, passeatas! Isso sim é
oposição! Não essa coisa que vocês têm hoje por aqui.
- Eram
outros tempos, e outros os lados. - esclarece, servindo um pouco
mais de bebida ao seu fantasma do passado.
- Os
seus dois reinados foram mesmo surpreendentes, companheiro, devo
admitir. Uma mescla de economia neoliberal e populismo digna de aplausos.
Quem diria! Uma surpresa até para mim. - afirma o barbudo,
admirado. - Você está de parabéns.
- Eu
criei e implantei o neoliberalismo populista! - gargalha o
Ilusionista, jogando a cabeça para trás. - Impressionante para um
reles metalúrgico e ex-sindicalista, não é mesmo Barba?
- Com
toda certeza. Enquanto eu critico, aos berros, o assistencialismo e
a compra de votos do povo pobre e ignorante com esmolas, você usa
a companheirada para fazer terrorismo com os miseráveis em troca
de votos. Inacreditável!
- É
fácil para você criticar as armas que não dispõe. Quando
conseguir colocar as mãos nelas, vai ver o quanto é fácil e
lucrativo usá-las. Esmolas e ignorância andando juntas garantem
nosso velho projeto de poder. - orgulha-se o Ilusionista.
- Você
não acha isso um pouco imoral? - pergunta o barbudo, batendo as
cinzas do charuto.
- Moral
é uma questão de perspectiva, Barba. Depende de que lado do poder
se está, e de que lado se pretende permanecer. Não existe moral
do lado de cá. - ensina o mestre.
- Nunca
existiu. Apenas nos discursos, não é mesmo companheiro? Mas eu,
ao menos, disfarçava melhor. - acrescenta o outro, tragando o
charuto. - Mas me diga, não houve baixas em nossa militância
ferrenha? Todos aqueles que acreditavam em nossa ética, coerência
e o tal ideal socialista?
- Muitos
se perderam pelo caminho. - responde o Ilusionista dando de ombros
e servindo-os de mais uma dose. - Mas já não eram mais
necessários. Para cada idealista desiludido temos dúzias de
pobres cabresteadamente convertidos, agora.
- Vejo
que ainda há muitos ditos intelectuais que continuam seguindo
cegamente nossa estrela. Como isso é possível com toda a fraude
que demonstramos ser? - questiona o outro, ávido por aprender com
seu mestre as lições que usaria na vida.
- Nossa
ideologia, companheiro, é como uma religião. É muito trabalhoso
questioná-la, e seria uma temeridade abandoná-la. Sem ela,
ficaríamos sozinhos com nossos erros e pecados, sem ninguém a
quem culpar. - filosofa o eterno messias das universidades,
enrolando um pouco mais a língua pelo efeito da bebida.
Pensativo,
o barbudo apaga seu charuto e ergue-se lentamente, anunciando:
- Já
é quase meia noite. É hora de eu partir. Um novo ano se aproxima
e tenho várias reuniões com sindicalistas e movimentos sociais.
Estamos organizando manifestações de rua pedindo a saída do rei
Fernando II.
- Golpista!
- gargalha o Ilusionista.
- Nos
meus tempos, chamamos isso de lutas populares e liberdade de
expressão das minorias! - responde o outro, também rindo.
- Você
vai chamar essas arruaças de “golpe da elite branca” muito em
breve. Espere só mais alguns anos. - afirma o Ilusionista,
piscando um olho, sorridente e matreiro.
- Foi
um prazer conhecê-lo, companheiro! - despede-se o barbudo,
dirigindo-se para a escuridão.
- Foi
interessante revê-lo, Barba. - responde o Ilusionista, vendo-o
desparecer como fumaça.
Ainda
um pouco aturdido pela estranha experiência que vivenciara,
dirige-se um tanto trôpego para árvore de Natal. A estrela no topo
da árvore pendia para o lado, quase caindo. Ergue os braços e a
recoloca no lugar. Sente uma umidade pegajosa nos dedos. Um líquido
negro e viscoso lambuzava suas mãos. Petróleo! - constata ele
preocupado. - “Melhor eu ir dormir, antes que fantasmas do futuro
resolvam me visitar hoje também!” - resmunga o homem, assustado,
correndo para o quarto sem olhar para trás.
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