A vasta comitiva de bobos e pajens reais ensaiava-se,
receosa, em frente à redoma de vidro fumê da rainha. O momento prometia mais
uma das conhecidas crises de destempero de Poliana, e era preciso cautela e
muito jogo de cintura da corte real para evitar mais um escândalo no reino. O
dia fatídico chegara, não havia mais como adiar. As rótulas em frente ao castelo
seriam finalmente reabertas, atendendo ao clamor do povo, a lógica, e aos
estudos de trafegabilidade urbana realizados. Apenas Poliana, a democrática
rainha, era radicalmente contrária a medida. E todos os bobos da corte sabiam o
quanto sua majestade podia ser intransigente e birrenta quando seus interesses
eram contrariados. Por isso, o sudorético grupo temia adentrar no recinto, onde
ela, soberana, descansava como sempre, alheia a realidade fora de sua redoma.
- Podem parar de tremer meus bobos! – anuncia a rainha,
surpreendendo sua corte ao sair precipitadamente da redoma – Eu de boba, não
tenho nem o salário. Já sei o que vocês vieram fazer aqui, seus molóides. As
insubordinadas redes sociais só falam nisso nos últimos dias. Vocês vão remover
minhas adoráveis barricadas das rótulas em frente ao castelo! – ergue a voz a
monarca, com o dedo acusadoramente apontado para o quase disforme bobo do trânsito.
- Não é bem assim, adorada Poliana! – gagueja o novo bobo,
mais vermelho que um tomate da agricultura familiar. – Essa será apenas uma
diminuta medida perto de todas as melhorias que o seu reinado está realizando no reino.
- Pois, muito bem! Eu decidi ver pessoalmente essas tais
melhorias. Vamos pra rua! – sentencia a sempre decidida rainha, virando-se para
o corredor. – Como é que se sai mesmo desse castelo? – questiona a perdida Poliana,
pouco acostumada à vida fora de sua ilusória e perfumada redoma.
- Por aqui, alteza. - conduz um dos pajens, enquanto os outros
se questionavam quem teria sido o energúmeno que permitira o acesso da rainha
ao facebook.
Poucos minutos depois, caminhando pela avenida principal do
reino, cercada e quase sufocada por seu séquito de bajuladores bem remunerados
pelo dinheiro público, Poliana é apresentada as novas modificações no trânsito
do reino.
- Essas são nossas novas faixas de segurança elevadas para
pedestres, rainha. – explica prestativo, o bobo da trafegabilidade. – O objetivo
é dar maior visibilidade e preferência aos transeuntes.
- Nooosa! – surpreende-se Poliana - Mais visível que isso, só
o Monte Everest! – exclama a rainha, olhando para cima. – Se algum pedestre
cair aí de cima vai acabar fraturando o crânio, isso sim!
- Não tínhamos pensado nisso, alteza. Como é importante sua
visão de soberana! Vamos providenciar um mecanismo de amortecimento de quedas,
tipo airbags, para esses casos. Brilhante contribuição, magnânima! – adula o
bobo.
- É por isso que fui eleita e reeleita, seu bobão. Eu vejo o
que quase ninguém quer ver. É só eu sair da minha redoma. – vangloria-se a
monarca – E com lombadas, ou faixas de segurança elevadas, dessa altura, dá até
para praticar rapel! – anima-se Poliana, a eterna desportista.
- A idéia é justamente essa rainha! – assume a liderança o
bobo do esporte, empurrando para o lado o expert
em tráfego e trânsito. – Se as nossas novas medidas não fizerem o trânsito
fluir, podemos, ao menos, fazer os cofres públicos e a publicidade render. Já nos
inscrevemos para o campeonato anual de Enduro e de MotoCross em vias urbanas. E
fomos aprovados com louvor! Nenhum reino propiciará tantos saltos e tantos
buracos por metro quadrado! Nós somos os únicos! Inovadores como sempre,
magnânima.
- Que maravilha, meus bobos! – exulta deslumbrada, Poliana. –
E o rally do ano que vem poderá ser em frente ao castelo! Eu nem vou precisar
sair de minha redoma! Mais um verdadeiro projeto de inclusão desportiva de
nosso democrático reinado. E ainda tem gente que ousa criticar Poliana! Elite
golpista e de direita, com certeza!
- Essa gentinha que abarrota nossas maravilhosas e
esburacadas vias públicas com seus carrinhos financiados pelo sistema
capitalista, Poliana, não merece qualquer consideração. – acrescenta um dos
ortodoxos companheiros da rainha.
- Olha só isso aqui! Que maravilha vai ser no verão! Um buraquinho
desses do asfalto, no pé dessa lombadona, com toda essa chuvarada dos últimos
dias, até o final do ano vai virar um piscinão. O criaredo vai se esbaldar
escorregando como tobogãs, das imensas e politicamente corretas travessias de
pedestres, direto nos buracões do asfalto cheios de água! Vai ser a inclusão do
povão excluído de diversão em pleno centro da cidade!
- Fantástico, alteza! Mais um projeto para divulgarmos na
mídia. – entusiasma-se o bobo da comunicação e marketing real.
- E em frente ao castelo rainha, vamos tirar todo esse espaço
para estacionamento de carros. Vamos criar um amplo espaço sem serventia
alguma. Tudo para desestimular ainda mais a elite golpista a sair de casa de
automóvel. Quanto menos vagas de estacionamento existir, menos essa gentinha
metida à besta e a fazer manifestações, vai sair às ruas. – esclarece o bobo
mor da fluidez do tráfego.
- Ótima idéia! Quanto mais os carros circularem, mais o trânsito
flui. Essa sempre foi nossa lógica. Não podemos mudar o rumo de nosso coerente
pensamento. – elogia a monarca, convicta.
- Eu ainda me preocupo com o os automóveis, rainha. – começa
um dos bobos presentes. – Todas essas medidas são muito vistosas, mas acho que
ainda precisamos de ações mais eficientes para melhorar a mobilidade dos automóveis
e evitar congestionamentos no reino. O povo tem demonstrado claro descontentamento
com isso.
- Esse tipo de medida prática de melhoria na mobilidade
urbana é assunto para estudo. – responde, emblemático, o bobo da mobilidade
urbana.
- Mas nós já estamos estudando isso há quatro anos! –
questiona o outro, mais objetivo e simplório. – Já tem gente dizendo que dava tempo
para fazer uma faculdade na área.
- Oposicionistas, com certeza. – afirma o bobo, MBA em
trafegabilidade cidadã. – Por enquanto, é urgente elevarmos bastante as
travessias de pedestres, pintarmos as desbotadas faixas de segurança, e reabrirmos
as rótulas obstruídas... (ops!)-
interrompe-se a espera de uma severa crítica da rainha.
- É isso mesmo! – concorda Poliana, apalermando o grupo. – Vocês
achavam que eu ia me opor a reabertura das rótulas que eu mesma fiz questão de
fechar, seus bocós? – pergunta a monarca, gargalhando a riso solto. – Vocês são
mesmo amadores! Precisam aprender com Poliana, a rainha da ilusão e do
ilusionismo! Eu sou uma visionária, vocês e o povo são uns estúpidos, isso sim.
Meu objetivo sempre foi claro e coerente. Trancando as rótulas na avenida
central, tornei o trânsito caótico e insuportável no reino. Criei, no início do
meu reinado, um problema que até então não existia. Levei, por anos, os
motoristas ao limite do desespero. Agora, passado tanto tempo, eu, a magnífica
e eficiente soberana, Poliana, vou oferecer, com muita mídia e marketing, a
solução para o caos instalado. Vou abrir um novo acesso que possibilitará melhor
fluidez ao trânsito. Vou “criar” rótulas no anel central do reino! Que
brilhante idéia de Poliana, pensarão meus adoráveis súditos e eleitores! -
gargalha um pouco mais a rainha, quase se afogando com as lágrimas. – A lógica
é simples, está na cartilha de nosso clã, página 171: “crie um problema que não
existia e depois ofereça ao povo a solução que ele não precisaria se você não
tivesse nascido”. É como jogar plebiscito e médicos cubanos para manifestantes
revoltados. Simples assim!
- Nossa, rainha! Nós nunca íamos conseguir acompanhar um
raciocínio assim tão apurado! – impressiona-se o bobo da mobilidade urbana,
mais perdido que os motoristas do reino em horário de pique.
- É por isso, queridinho, que eu sou monarca, e você é só um
bobo sem serventia na iniciativa privada. – sorri debochada, a maquiavélica
Poliana, dando as costas ao grupo – Podem reabrir as rótulas. Esse projeto já
está concluído. Meu próximo grande e muito lucrativo projeto, é o do
asfaltamento das vias públicas. Esse sim, irá me render mais do que popularidade.
Afinal, semeei por anos buracos no asfalto, agora é a hora de colher polpudos recursos
públicos! – anuncia a prática e despudorada monarca, voltando tranquilamente
para sua adorada redoma, onde o único tráfego é o de bobos da corte, e o
congestionamento constante é o dos eternos aduladores do poder.
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