Sentado em
frente a televisão, o velho acompanhava as notícias com o desconfortável
sentimento de déjà vu. Todo feriado eram as mesmas velhas e trágicas manchetes
de dezenas de acidentes nas estradas. Sangue e morte pareciam escorrer pelas
telas dos gigantes aparelhos. E que estranho fascínio pareciam ter tais cenas
de tragédias e desgraças para as pessoas. Desde tenra idade acostumam-se as
crianças com absurda e descabida de sentido, violência. As telas ficavam cada
vez maiores como que a garantir aos espectadores que nenhuma réstia de agonia passasse
desapercebida. Nessas horas o velho sentia saudades dos velhos aparelhos em preto
e branco. Talvez fosse o diminuto tamanho de suas telas, ou quem sabe o tempo
considerável que levavam para aquecer os fusíveis, o fato é que toda a família
se amontoava em frente a TV em, hoje longínqua, comunhão. Sentia saudades do Vigilante
Rodoviário, recorda o velho enquanto assiste as coloridas imagens de ônibus
sendo incendiados. Nos antigos seriados não se precisava de cores para separar
os mocinhos dos bandidos. Talvez fosse o excesso de cor que ofuscava o bom
senso de seu povo, considera o velho. Ou quem sabe o tamanho exagerado das
telas fizesse com que todos tivessem perdido o foco. Talvez precisasse retornar
mais cedo a revisão com seu oculista, reflete o velho sentindo inquietante falta
da turbidez que a catarata, extirpada pela precisão da tecnologia médica, lhe
causava na distinção de cores e formas. Graças a maravilhosa evolução da
ciência, hoje não se ficava mais refém de muitas das limitações da idade que
antes lhe terminariam com a autonomia e independência. Liberdade era uma dádiva
que este velho sabia apreciar e valorizar. Essa, assim como a TV preto e branco,
em breve, não teria muita serventia a julgar pelo que mostravam as imagens do noticiário.
Quando presos eram capazes de comandar atentados organizados em tantos lugares
desse país sem que as autoridades conseguissem conter o terrorismo instaurado,
algo virtualmente insano, pelo menos para um velho tolo, devia estar sucedendo.
Devia ser a tal realidade virtual que tanto ouvira falar sem nunca compreender
o sentido. Virtuais deviam ser as grades que, se supunha, privava a liberdade
dos presos. Virtuais seriam os conceitos de certo e errado que deviam aquecer
as leis que regem o virtual conceito de Estado de Direito. Virtual, com toda certeza,
era a presença do Estado como mantenedor da ordem e da segurança de um povo,
pensa o velho acompanhando a imagem de uma mãe com seu bebê dando uma entrevista
de trás de um imenso portão de ferro. Liberdade
dependia de que lado, e de qual grade, se está. As coisas deviam estar muito
mais desfocadas do que seu cérebro senil era capaz de entender, suspira o velho
cansado. E podiam ficar piores, resigna-se o ancião com o semblante marcado
pelos anos de experiências. Em épocas, nem tão distantes, o seio dos presídios produziram
quadrilhas tão organizadas e ardilosas que foram capazes de dominar a toda uma
nação sem a necessidade de fuzis e granadas, lembra o velho astuto. Não se
detém ratos com grades. E os maiores ratos de sua pátria ainda estavam bem
longe das grades e muito próximos do poder, lastima o idoso mudando de canal.
Era hora da novela preferida de sua velha e já pressentia os passos lentos, mas
decididos de sua companheira de décadas de alegrias e decepções. Não importava
o tamanho do aparelho ou a precisão das imagens, sua véia ainda olhava para a
tela com o mesmo deslumbre e devoção que há cinqüenta anos. Graças a Deus
algumas coisas, virtualmente, não mudavam com o evoluir dos tempos, pensa o
velho com seu enrugado sorriso.
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