sábado, 10 de setembro de 2011

NOVOS VALORES, VELHAS MOEDAS


Na sede do poder maior do Reino do Gigante adormecido, a Rainha Mãe - a Escolhida - assistia compenetrada ao desfile cívico. Como era estranho assistir a este espetáculo de patriotismo sendo agora uma estrela ainda mais brilhante do que antes fora. Estranhava a mesmice de verde, amarelo e azul anil. Sentia ainda, certa saudade condoída do escarlate de sua juventude. Lembrava os tempos onde presenciar a esses eventos seria considerado um ato reacionário e inadmissível, de alienação e entreguismo. Eram outros tempos, tolices de juventude, hoje ela sabia. Mas não era fácil abandonar assim, tantos anos de convicções e discursos. Como era difícil evitar os velhos jargões dos tempos de artilharia. Ser vidraça mudava as convicções e reformulava as certezas. Sorte sua, seu povo cultivar candidamente sua característica mais marcante, a falta de memória. A Rainha Mãe sorria disfarçadamente, ao pensar na remota possibilidade de algum de seus súditos comparar sua postura combativa em discursos de outrora e sua atual amizade e favorecimento a antigos adversários. Até ela, por vezes, estranhava se ver de mãos dadas com quem tantas vezes xingara de corruptos e imorais. O poder ensinou a ela e a seu clã, que moralidade é só uma questão de ponto de vista. Visto de cima, do ápice do poder, imoral é perder o trono. Todo o resto é justificável. Sorte sua de seu povo ser tão desmemoriado e crédulo. Não precisavam lutar diariamente com essas complexas questões existenciais.
Mas o cacoete de décadas de discursos vazios por vezes cismava em se manifestar. Era preciso refrear a língua ao falar de saúde. Lembrava-se, ao olhar para os lados, de seus companheiros de clã bradando em uníssono nas ruas contra a criação de impostos para a saúde pelos governos indecentes de outrora. Chegava a tremer ao recordar da temida ameaça neoliberal. Graças a Deus nos livramos dessa desgraça! Sabe-se lá o que fosse isso, pensa a Escolhida. Agora, passados poucos anos, ela e seu clã estão novamente juntos em uma nova e promissora batalha: a criação de mais um tributo para saúde. Mas, claro que não se trata do mesmo tipo de tributo dos tempos dos infames governos neoliberais. Qualquer coincidência é mera semelhança. Trata-se apenas de uma contribuição irrisória, de fins puramente complementares para subsidiar de forma estritamente temporária a saúde provisória dos eleitores permanentes do clã absoluto no reino da inconsistência perene. Tudo muito simples, claro e objetivo. Só oposição, saudosa do neoliberalismo, não conseguia entender. Povo Honesto, como sempre trabalhava, dormia, e assistia ao futebol nas horas vagas, não tinha tempo para acompanhar estratégia tão elaborada. Nesses novos moldes só contribuirá quem tiver renda. Muito justo e coerente, digno dos mais profundos dogmas socialistas. Se a renda for demasiado grande, maior a sonegação, e menor a contribuição. Tudo coerentemente organizado para manutenção das minorias de volumosas fortunas patrimoniais excluídas do sistema público de saúde, num claríssimo processo de resgate da cidadania dos menos favorecidos. Só quem tem cérebro é que não consegue entender lógica tão racional.
O problema da Rainha Mãe era o mesmo calo doloroso que tanto transtorno trouxera ao seu antecessor, o Ilusionista: a língua afiada e maledicente da temível Imprensa Livre. Essa criatura torpe e de conceitos distorcidos tinha o péssimo hábito de dizer tudo aquilo que convinha permanecer sem ser dito. A impertinência dessa maléfica criatura andava semeando estranhas idéias nas mentes volúveis de Povo Honesto. Uns ideais absurdos de retidão e moralidade no submundo do poder. Um completo disparate! Uma conspiração midiática, que em tempos muito, muito longínquos alguns chamavam de transparência, ética e liberdade de expressão. Mas esse era um capítulo encerrado na história desse grandioso Império. Eram tempos de pedras. Nos tempos de vidraça, ética, moralidade, transparência e, é claro, Imprensa Livre, devem ficar esquecidos e amordaçados como os famosos arquivos confidenciais dos temíveis anos de chumbo.

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