domingo, 21 de dezembro de 2014

O fantasma barbudo de Natais passados


Sentado em uma confortável poltrona da sala de estar de sua novíssima e milionária cobertura de veraneio, o Ilusionista admirava a árvore de Natal. Essas épocas de festas lhe causavam certa nostalgia. Ainda sentia saudades dos anos em que comandara Gigante Adormecido. O mais popular e adorado rei que esse reino já tivera, disso podia se orgulhar, pensava ele, bebericando seu caro whisky. Estar longe do trono não lhe tirara o mando do jogo, mas não era exatamente a mesma coisa. Carecia de certo glamour. O poder inebria e vicia quase tanto quanto os aperitivos que tanto apreciava. E, esta noite, já havia saboreado várias doses que o faziam sentir-se um tanto lânguido.
Observando o piscar das luzes da árvore, deteve-se na grande estrela posta bem no topo. Uma estrela mudara sua vida. Soubera no momento certo agarrar-se a ela para se fazer brilhar. Astúcia era outra de suas qualidades, refletia passando a mão no queixo para acariciar a barba que há alguns anos deixara de usar. Hábito de décadas que ainda não esquecera por completo. Meio hipnotizado pelo piscar cadenciado das luzes de Natal, percebe um movimento ao seu lado. Voltando-se, dá de cara com um sujeito barrigudo e barbudo que o olhava com interesse.
- Quem é você? - pergunta um pouco assustado, embora o homem lhe parecesse conhecido.
- Eu sou você no passado. Não me reconhece mais companheiro? - responde-lhe aquela estranha criatura, de barba negra e densa, em um tom rouco e característico que lhe soava bastante familiar.
- Não pode ser! Devo ter extrapolado minha cota de whisky. - responde o Ilusionista com idêntico timbre de voz.
- É normal. As duas coisas. Nós sempre exageramos no whysky, e você está muito diferente do que era há quase vinte anos. - afirma o barbudo, sentando-se a sua frente e acendendo um de seus charutos.
- Eu não uso mais essa barba e o branco cobriu meus cabelos. - continua o Ilusionista, tentando se acostumar a esdrúxula situação.
- Você deixou de usar muitas das velhas coisas, companheiro. Seus discursos de hoje quase me fazem enrubescer. - afirma o homem, servindo-se de uma dose de whisky. - E as companhias, então? Enquanto eu, preso no passado, esbravejo bravamente contra colloridos corruptos e oligarcas maranhenses, você, aqui, anda de braços com eles e praticamente lhes beija as mãos. É um pouco constrangedor para mim, confesso.
- Você ainda não conhece o poder. Em breve vai mudar de ideia, pode esperar. - afirma o Ilusinista, entre um gole e outro.
- Sabe o que mais me insulta? É ver você chamando essa atual oposiçãozinha mequetrefe de golpista. Oposição é o que eu faço! Conclamar minha militância fiel para ir as ruas pedir o impeachment de meu adversário corrupto. Bradar, todos os anos nos palanques, contra presidentes neoliberais. Articular a companheirada para votar contra todos os projetos dos donos do poder. Organizar invasão de terras, greves, passeatas! Isso sim é oposição! Não essa coisa que vocês têm hoje por aqui.
- Eram outros tempos, e outros os lados. - esclarece, servindo um pouco mais de bebida ao seu fantasma do passado.
- Os seus dois reinados foram mesmo surpreendentes, companheiro, devo admitir. Uma mescla de economia  neoliberal e populismo digna de aplausos. Quem diria! Uma surpresa até para mim. - afirma o barbudo, admirado. - Você está de parabéns.
- Eu criei e implantei o neoliberalismo populista! - gargalha o Ilusionista, jogando a cabeça para trás. - Impressionante para um reles metalúrgico e ex-sindicalista, não é mesmo Barba?
- Com toda certeza. Enquanto eu critico, aos berros, o assistencialismo e a compra de votos do povo pobre e ignorante com esmolas, você usa a companheirada para fazer terrorismo com os miseráveis em troca de votos. Inacreditável!
- É fácil para você criticar as armas que não dispõe. Quando conseguir colocar as mãos nelas, vai ver o quanto é fácil e lucrativo usá-las. Esmolas e ignorância andando juntas garantem nosso velho projeto de poder. - orgulha-se o Ilusionista.
- Você não acha isso um pouco imoral? - pergunta o barbudo, batendo as cinzas do charuto.
- Moral é uma questão de perspectiva, Barba. Depende de que lado do poder se está, e de que lado se pretende permanecer. Não existe moral do lado de cá. - ensina o mestre.
- Nunca existiu. Apenas nos discursos, não é mesmo companheiro? Mas eu, ao menos, disfarçava melhor. - acrescenta o outro, tragando o charuto. - Mas me diga, não houve baixas em nossa militância ferrenha? Todos aqueles que acreditavam em nossa ética, coerência e o tal ideal socialista?
- Muitos se perderam pelo caminho. - responde o Ilusionista dando de ombros e servindo-os de mais uma dose. - Mas já não eram mais necessários. Para cada idealista desiludido temos dúzias de pobres cabresteadamente convertidos, agora.
- Vejo que ainda há muitos ditos intelectuais que continuam seguindo cegamente nossa estrela. Como isso é possível com toda a fraude que demonstramos ser? - questiona o outro, ávido por aprender com seu mestre as lições que usaria na vida.
- Nossa ideologia, companheiro, é como uma religião. É muito trabalhoso questioná-la, e seria uma temeridade abandoná-la. Sem ela, ficaríamos sozinhos com nossos erros e pecados, sem ninguém a quem culpar. - filosofa o eterno messias das universidades, enrolando um pouco mais a língua pelo efeito da bebida.
Pensativo, o barbudo apaga seu charuto e ergue-se lentamente, anunciando:
- Já é quase meia noite. É hora de eu partir. Um novo ano se aproxima e tenho várias reuniões com sindicalistas e movimentos sociais. Estamos organizando manifestações de rua pedindo a saída do rei Fernando II.
- Golpista! - gargalha o Ilusionista.
- Nos meus tempos, chamamos isso de lutas populares e liberdade de expressão das minorias! - responde o outro, também rindo.
- Você vai chamar essas arruaças de “golpe da elite branca” muito em breve. Espere só mais alguns anos. - afirma o Ilusionista, piscando um olho, sorridente e matreiro.
- Foi um prazer conhecê-lo, companheiro! - despede-se o barbudo, dirigindo-se para a escuridão.
- Foi interessante revê-lo, Barba. - responde o Ilusionista, vendo-o desparecer como fumaça.
Ainda um pouco aturdido pela estranha experiência que vivenciara, dirige-se um tanto trôpego para árvore de Natal. A estrela no topo da árvore pendia para o lado, quase caindo. Ergue os braços e a recoloca no lugar. Sente uma umidade pegajosa nos dedos. Um líquido negro e viscoso lambuzava suas mãos. Petróleo! - constata ele preocupado. - “Melhor eu ir dormir, antes que fantasmas do futuro resolvam me visitar hoje também!” - resmunga o homem, assustado, correndo para o quarto sem olhar para trás.


domingo, 14 de dezembro de 2014

Uns mais iguais que outros


Poliana e seus companheiros estavam orgulhosos de seu mais fiel amigo e parceiro no parlamento. Quanta satisfação sentiam por terem andado de braços dados e carregado nos ombros essa ilustre estrela que orgulhava a toda sua espécie. De mais gente assim é que precisávamos! Gente que sabia respeitar o bom e velho lema: é dando que se recebe. Uma secular máxima dos prostíbulos e parlamentos. Essa estrela reluzente, quase um cidadão do reino de Poliana - dadas as sólidas amizades e trocas de favores que por aqui negociava - se despontava como uma das mais importantes figuras da constelação da grande Rainha Mãe de Gigante Adormecido. Depois de presidir o Parlamento, coubera ao companheiro Maracutaia chefiar o seleto grupo da CPI (Confecção de Pizzas Indigestas). E com que desenvoltura desempenhara a tarefa para qual fora escolhido a dedo. Saíra-se um pizzaiolo de primeira. Entraria para o guines como o único pizzaiolo capaz de confeccionar uma complicada e elaborada pizza, tamanho gigante, sem jamais abandonar a posição de cócoras. Só ele seria capaz de tal feito. Poucos teriam tal envergadura. É certo que a ausência de coluna vertebral lhe favorecia, mas é preciso reconhecer os méritos dos invertebrados.
Os servos da Rainha Mãe e seus seguidores aplaudiam, como sempre de joelhos, a capacidade inigualável desse curioso espécime mutante de, como um morcego, tornar-se cego à luz dos acontecimentos escrachados e revoltantemente públicos; escorregadio como um peixe, no momento de responsabilizar os responsáveis ou coniventes com a roubalheira do patrimônio do povo; e invertebrado como uma lombriga, na hora de rastejar subserviente aos interesses de seus padrinhos. Um companheiro exemplar para seu clã. Uma vergonha para qualquer povo que almeje andar com a espinha ereta. Mas vergonha é característica dos que tem cerne, dignidade e caráter, e os mutantes companheiros da realeza sequer enrubescem com suas indignidades. Vestem-se de vermelho apenas na hora de venderem suas ideologias. Socialismo para eles é isso: distribuir bilhões de recursos públicos entre o seu – o deles – seleto grupo social, estatizar a corrupção e tornar todo o resto do povo miseravelmente igual na desgraça. Mas, mesmo no socialismo sonhado por essa turma, o todo jamais será igual. Eles, apesar de todo poder, estarão mais perto do chão que seu povo, pois, desprovidos de espinha vertebral, sempre rastejarão como os vermes vermelhos, verdadeiros parasitas que são e eternamente serão.

sábado, 6 de dezembro de 2014

O Bordel da Rainha Mãe


Em Gigante Adormecido, a Rainha Mãe estava cada vez mais saudosa de Horário Eleitoral. Que falta fazia seu marqueteiro de campanha na equipe de governo. Até Oposição era mais doce e comportadinha em Horário Eleitoral. Mal terminara a temporada de ilusões e pirotecnia, e o povo já sentia na pele os aumentos de combustível, energia elétrica e juros. As manchetes mostravam que o PIB era pífio e a roubalheira nos engenhosos esquemas de corrupção era estratosférica. A inflação batia no teto e ameaçava desabar na cabeça dos seus eleitores, principalmente os mais pobres. E até sua adorada base aliada, mostrava as garrinhas para abocanhar mais e mais carguinhos. Os dias finais de seu reinado anunciavam um novo reinado ainda mais melancólico, dramático e recheado de escândalos.
E para encerrar esse velho reinado, nada como um último açoite na legislação. Se nossa Rainha, faxineira e gestora criteriosa, não fora capaz de cumprir a lei e cometera crime de responsabilidade, então muda-se a lei e se dá anistia a sua alteza! Tudo perfeitamente ético, aceitável e transparente, defendem seus apoiadores – nem um pouco rubros de constrangimento. E se o povo não concordar com a manobra afrontosa à legislação? O povo não foi convidado a se manifestar. É preciso que se entenda, na atual democracia de cooptação, só é legítimo o direito de pensar e gritar daqueles cooptados pela corte da rainha. O povo que se achar ofendido será mantido do lado de fora da antigamente chamada Casa do Povo, transformada em casa de tolerância financiada com recursos públicos. Pelo menos esse mérito ninguém arrancaria de nossa monarca. Conseguira, com a sutileza e traquejo que lhe eram característicos, anunciar no Diário Oficial quanto valia cada uma de suas concubinas no parlamento. Setecentos e quarenta e oito mil por uma única noitada. Mas que noitada! Dezoito horas ininterruptas de trabalho árduo e cansativo. E desempenharam seus serviços com o costumeiro companheirismo e dedicação, mesmo com todo barulho desrespeitoso dos poucos gatos pingados de Oposição. Os parlamentares cooptados pelo poder, sabiam pelo que e por quanto se vendiam. Agora, o povo também sabe quanto cobra, cada uma das cortesãs da rainha no parlamento, para ficarem de cócoras por uma noite, e de joelhos pelos próximos quatro anos. Pelo menos não se vendiam por poucos trocados. Mas, trocados era o máximo que valiam as ilustres messalinas da Rainha Mãe.