sábado, 31 de maio de 2014

O gigante do futebol curva-se à terra do rally


   Que belo espetáculo proporcionava o povo desse lugar. Espetáculo bem maior que o colorido dos carros, o show de luzes, ou o ronco dos motores. Milhares de pessoas se reuniam para prestigiar o evento. Não havia frio ou chuva capaz de arrefecer a paixão de um povo. Paixão por carros e velocidade? Com certeza. Mas paixão ainda maior mostravam por essa sua terra. Não se tratava de um evento desportivo qualquer. Essa multidão ali reunida, de todas as idades, exibia nos rostos a mensagem clara: esse era o nosso evento. Nossa casa. Nosso lugar. Puro bairrismo, confundem alguns, menos observadores ou mais cínicos. Orgulho verdadeiro, sente quem é capaz de sentir.
   E que diferente mistura era esse povo. Capaz de confundir até os estudiosos do assunto. No país onde se conclama que todos vistam verde e amarelo e torçam pela maior paixão nacional, o futebol, eles se vestem com pesados agasalhos, enfrentam o frio cortante da noite, para assistir ao rally. Boa parte daquela gente, não torcia por uma equipe, um carro, ou um país. Mas todos torciam por sua cidade. Queriam mostrar ao mundo, que esse seu lugar, quase perdido na imensidão de um país, era o lugar certo para sentir orgulho. E orgulhar-se de sua terra, não era tarefa fácil para quem vive nesse país. Mas esse povo, tinha motivos de sobra de orgulhar-se de sua história, sua hospitalidade, seus valores e suas conquistas, e de não ter vergonha de mostrar ao mundo esse orgulho. Quem sabe um dia, o país do futebol, aprenda com essa gente de Campo Pequeno, a vestir-se de dignidade e paixão por sua terra. Nesses dias, chuvosos e frios, o gigante país do futebol orgulhava-se do povo e da terra do rally. Um dia, quem sabe, o povo dessa terra possa voltar a se orgulhar de seu país.

sábado, 24 de maio de 2014

A prospecção de consciência de Poliana


Uma encarangada Poliana descansava em seu divã nesses primeiros dias em que o frio chegara ao reino. O tempo acinzentado e chuvoso causava certa depressão na sempre otimista e vívida rainha. Para superar as baixas de humor, costumava ler e assistir todas as matérias e propagandas oficiais de seu reinado. Toda a cor e a alegria, temperadas com boas doses de fantasia e ilusionismo, que sua competente equipe divulgava, eram o elixir perfeito para levantar o ânimo de sua alteza. Mas nesse dia não estava dando certo. Poliana achava-se mais crítica que de costume.
- Às vezes, Espelho Mágico, eu fico pensando se nós não exageramos na ilusão de ótica em nossos discursos e propagandas. - reflete sua majestade, folheando os jornais da semana.
Ora, Poliana! É claro que sim! Nosso objetivo como corte real é mostrar o que o povo gostaria de ver, não o reino  ou a realidade como ela é. Isso sempre foi consenso. - responde o outro, sem entender a tal crise de consciência da rainha.
- Eu sei disso, mas não sei se não andamos abusando na dose. Nem todo mundo é estúpido, você sabe. Ainda tem gente que consegue ler e interpretar. Cada vez menos, é verdade, mas eles ainda existem. Você, por exemplo, sabe o que é prospecção?
-  É uma palavra que toda nossa corte usou esta semana para enaltecer o sucesso de nossa última feira. O que quer dizer eu não sei, mas é pomposa e faz boa figura nos discursos.
- Prospecção, Espelho, é algo que poderá vir a acontecer. - explica Poliana, com ar professoral, surpreendendo o companheiro que desconhecia esse intelecto mais apurado da rainha.
- Sei... e daí?
- Nós divulgamos, para todos os ventos, que na feira de negócios imobiliários foram movimentados milhões em prospecções. Você entende o que isso quer dizer em termos de negócios práticos? Absolutamente nada!
- Ainda não entendi, milhões é muita coisa.
- Milhões de intenções, seu estúpido. - responde a rainha, já começando a perder a paciência. - Quer dizer que cada um que entrou na tal feira e manifestou seu sonho de comprar um apartamento de 100 mil, nós contabilizamos como 100 mil em prospecção. A imensa maioria, nós sabemos, não comprou, nem vai comprar nada. São só números idiotas, para idiota ver. 
- Entendi! Nessa nossa lógica, se cada um que sonhar em ter uma Ferrari for contabilizado pela montadora, vai faltar zeros no mercado! - conclui o Espelho Mágico.
- Exatamente! - deprime-se ainda mais a monarca.
- Mas isso não deve preocupá-la, rainha. O povão, assim como eu, não tem a menor ideia do que quer dizer prospecção. Eles só vão enxergar nas propagandas os milhões movimentados e acreditar que são todos ricos no reino. E graças a nós! É perfeito!
- Sei. Assim como dizer que quem vive com salário mínimo é classe média. - ironiza a rainha, ácida.
- Credo Poliana! Hoje você está com o humor mais negro que piche!
- Por falar em piche, olha só essa matéria com nosso bobo das obras. O que você vê nessas fotos?
- Nossos serviçais de carreira, abaixo de chuva, pisoteando asfalto grudento em uns buracos de nossas vias.
- O que você pensaria, ao ver essa cena, se você fosse um contribuinte e não um adestrado e alienado membro de nossa corte?
- Que se trata de um número do circo de palhaços que está acampado no reino. - confessa.
- Exatamente! - afirma a monarca, deprimida.- Pois é. E o que é que nosso bobo das obras anunciou na imprensa? Que trata-se de um novo material, ultramoderno, melhor que o asfalto tradicional para tapar buracos. E que tem uma característica peculiarissima para uma tecnologia tão avançada. Precisa ser compactada com os pés, para melhores resultados. E abaixo de chuva! - enfatiza sua alteza, com escárnio.
- Interessante, mesmo. Talvez devêssemos abrir cotas para gordos no próximo concurso. Para essa atividade específica. Os resultados dos tapa buracos seriam ainda melhores. - sugere o visionário companheiro.
- Sim, pois a cota de caras de pau eu já esgotei com nossa corte. - desilude-se sua alteza. - E para ir mais além, nosso bobo ainda afirmou que esse troço grudento é muito mais caro que piche ou asfalto, e que só usamos em buracos emergenciais que surgem em dias de chuva. Ora, tenha santa paciência! Todos os súditos sabem que nós deixamos por anos os buracos no asfalto se procriarem a vontade. Agora, tiramos do chapéu uma meleca cara para tapar os buracos em períodos de chuva. Como se, de repente, o reino tivesse sido assolado por meses de chuvas torrenciais e nós por uma súbita preocupação com os solavancos dos motoristas. O que você pensaria, Espelho, ao ouvir tanta bobagem?
- Que nós arrumamos um jeitinho de faturar com os tais buracos.
- Isso mesmo! E o que você acha que eu, como soberana responsável, eleita e aclamada por meu povo, devo fazer?
- Cancelar a compra desse produto caro e dar um puxão de orelhas no bobo das obras?
- Claro que não, seu estúpido! Tenho que torcer para que esse inverno seja muito, mas muito chuvoso! - declara a monarca, esfregando as delicadas mãozinhas, e já refeita de sua súbita crise de consciência. - E de hoje em diante, não leio mais os jornais. Traga-me apenas as previsões do tempo. E trate de me fazer um chocolate quente! Detesto esse frio, mas adoro uma chuvinha. “Tomara que as prospecções de chuva sejam fartas e que se concretizem nesse inverno.” - pensa Poliana, com a consciência sempre bem lavada com dinheiro público.

domingo, 18 de maio de 2014

Fala Sério! A cretinização da sociedade


  A ideologia do politicamente correto tornou-se uma praga que parece estar transformando as pessoas em idiotas sem discernimento. A ideia ridícula e inviável de um mundo cor de rosa, onde não existe sofrimento, contrariedades, desigualdades ou preconceitos de qualquer espécie, abandonou o imaginário pueril dos livros de histórias infantis e vem invadido de forma assombrosa as entranhas de nossa sociedade. Seguindo essa lógica, travestidas de políticas públicas inclusivas, o Estado tem tomado para si o direito de tutelar até o comportamento e as convicções de seus cidadãos.
   No fantasioso mundo politicamente correto todos precisam ser eternamente felizes. Para conquistar esse estado de catarse utópica, os idólatras da ideologia do politicamente correto, defendem e implantam verdadeiros absurdos, que seriam dignos de piada se não estivessem imbecilizando cada vez mais nossa sociedade. As crianças não podem mais ser frustradas ou conhecer o fracasso. Se não conseguem aprender o suficiente no ano escolar, não podem repetir o ano e retomar o que foi perdido. Precisam seguir em frente, claudicantes, pois precisamos “valorizar o saber dessas crianças”, mesmo que elas não consigam formar três ou quatro frases ao final do ensino fundamental. Temos, hoje, adolescentes semianalfabetos, incapazes de calcular o troco na compra de figurinhas da Copa do Mundo, mas com certeza com a autoestima nas alturas. Certamente o mercado de trabalho não terá a mesma condescendência politicamente correta ao bater com a porta na cara desses pobres jovens no futuro. Jovens que, por omissão e negligência do Estado, se tornarão vítimas permanentes da mais definitiva – e prevenível - das exclusões. A exclusão social.
   Com a alegação de proteger do sofrimento todas as crianças órfãs, de pai ou mãe, ou as filhas de casais homoafetivos, nos últimos anos circulam projetos que buscam abolir as comemorações nas escolas dos dias das mães e dos pais. Projetos com ares de inclusão que só incluem fantasias distorcidas nas cabeças alienadas de quem as propõe. Essas crianças convivem, como sempre conviveram em todas as épocas, no seu dia a dia com suas próprias realidades. Sabem que suas realidades são diferentes da maioria de seus colegas de escola. Não devem ser excluídas ou discriminadas por isso, mas tão pouco se pode negar, ou simplesmente excluir, a realidade da maioria das crianças, e da sociedade, apenas para contentar a realidade de uma minoria. Isso é mais que exclusão é aberração. Aprender a conviver e lidar com nossas diferenças pessoais faz parte do crescimento de um ser humano, desde a infância. Assim como a frustração é parte essencial na formação de nosso caráter. Só alguém desprovido de bom senso não é capaz de compreender conceitos tão básicos e fundamentais.
   A discriminação de raça, cor ou opção sexual são em todas as formas inaceitáveis. Mas quando os intelectualóides politicamente corretos resolveram abraçar essas bandeiras e temperá-las com discursos de políticas públicas de inclusão social e correção de dívidas históricas, conseguiram o inimaginável: reacender conflitos étnicos e preconceitos que, aos poucos, caminhavam à extinção em nosso país. O preconceito é inerente ao ser humano. Todos tendemos a olhar com estranheza aquilo que não faz parte de nossa cultura, nossas vivências, nossas convicções. Portanto, é perfeitamente natural que a maioria das pessoas ache “esquisito” e estranhe casais homossexuais. Isso é natural e absolutamente aceitável. O que não pode jamais ser aceitável é que se discrimine pessoas por suas opções sexuais. Ninguém precisa entender ou concordar, basta apenas respeitar. É o que se espera em uma sociedade civilizada. E ao Estado cabe coibir toda forma de discriminação. Mas quando os ativistas das causas das minorias LGBT – lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros - passaram a adotar o discurso,  (com vasto apoio governamental), ou a postura, de que quem não concorda com suas práticas é naturalmente homofóbico, criou-se um sentimento de ressentimento em boa parte da maioria heterossexual que se sentiu agredida e injuriada. O mesmo vale para as questões étnicas. Com a desculpa de corrigir dívidas históricas pretende-se devolver terras aos índios. Mesmo que para isso seja preciso despejar de suas casas centenas de famílias que há mais de um século trabalham, produzem e criaram suas raízes nessas terras. Pequenos agricultores. Pessoas simples, que jamais mataram ou expulsaram os índios dessas terras. Gente humilde que nesses campos fizeram suas vidas e criaram suas famílias. Uma gente que hoje vive a incerteza de não saber para onde irão e como vão sobreviver. Essa gente que antes nunca tivera raiva de índio, hoje remói rancor e ressentimento. Não se pode corrigir uma injustiça cometendo outra. São coisas que os alienados politicamente corretos jamais vão conseguir enxergar. Para eles, basta levantar a bandeira de um mundo cor de rosa e que danem-se as consequências. Eles flutuam, sonhadores, em seus mundinhos de fantasias utópicas, com seus discursinhos sem fundamento concreto, pregando sorrateiramente o ódio entre as classes e etnias. Não conseguem perceber que talvez o mundo fosse um lugar melhor sem eles para atrapalhar.

domingo, 11 de maio de 2014

Mãe

Desde bem cedinho a mãe lidava na cozinha, numa profusão de pratos, panelas e vasilhames. A casa toda recendia a diversos e apetitosos aromas das guloseimas que preparava para esse dia. No Dia das Mães, uma velha mãe trabalhava mais que em qualquer outro dia. Afinal, sua prole viria passar o domingo com ela. E como não podia deixar de ser, na lógica clara de uma mãe, era o dia de preparar o prato preferido de cada um dos filhos. Presente para mãe, era acarinhar a seus filhos, mesmo no seu dia. Filhos com gênios, temperamentos, convicções e gostos por vezes tão distintos, que nem pareciam terem sido gerados na mesma barriga, pensa a mãe, ajeitando algumas almofadas no sofá. A casa estava em ordem. Bem diferente dos tempos em que eles eram crianças. Controlar o rebuliço e as travessuras daquela escadinha de arteiros, quase a levara a loucura. Por vezes, chegara a pensar em desistir. Mas ser mãe é para vida inteira, e ainda além. Hoje tinha saudades do tempo em que eram pequenos e bagunceiros, mas estavam todos por perto, ao alcance de suas mãos - ou do seu chinelo! Nesse domingo das mães, sua pequenina não viria, suspira. Um oceano inteiro as separava. Seria uma ausência sentida na mesa do almoço, e um vazio enorme no seu coração de mãe. A distância que separa pessoas, para uma mãe chamava-se saudade. E saudade de mãe é permanente. Começa no dia em que o filho sai de seu ventre. Continua quando ele começa a caminhar e aprende, lentamente, a abandonar a proteção do seu colo. E culmina quando ele, enfim, levanta voo e passa a ser dono de sua vida, deixando na mãe a eterna saudade de quando o colo da mãe era todo o mundo de sua criança. Ensinar um filho a caminhar e seguir sozinho, às vezes para longe, seu caminho, era a tarefa mais difícil e dolorida de uma mãe. E ser mãe é aprender a perder um pouquinho de si cada vez que um filho cresce, amadurece e faz suas próprias conquistas. As conquistas de um filho geram orgulho e também saudades em uma mãe. Coisas que só mãe entende, reflete, remexendo nas panelas.
Para adoçar a vida das mães, havia os netos! Logo, logo, sua neta chegaria, como um furacão de energia e alegria a adentrar pela casa. Em pouco tempo colocaria fim na tediosa ordem das almofadas colocadas no sofá. Com que expectativa essa avó esperava para ver a profusão de brinquedos espalhados pelo chão. Depois dos sessenta, vejam só, sentia-se alegre e satisfeita com a mesma bagunça de crianças que antigamente a enlouqueciam! Coisa de avó, que só avó entende – motivo de piadinhas de seus filhos adultos, diferentes em quase tudo, mas todos igualmente debochados e sarcásticos. Em breve teria mais uma netinha. Sua pequenina, lá do outro lado do mundo, em poucos dias lhe daria outra neta. Gostaria de estar com ela no momento do parto. Afagá-la em suas dores naturais. Consolá-la no seu primeiro momento de saudade. Mas ser mãe, é estar presente, mesmo estando distante. E saber que o afeto e os ensinamentos dados na infância e inicio da juventude, são legados que ficam marcados para sempre no caráter e no cerne de cada um de seus filhos. Essa é a única herança de verdadeiro valor que uma mãe pode deixar aos filhos. Coisa que só filho entende. E se todos nós, filhos, não dizemos ou dissemos a nossas mães, estejam elas presentes ou já ausentes, de sua importância e valor inquestionável em nossas vidas, saibam todas que sabemos. Sempre soubemos. Se deixamos de falar ou demonstrar, é, ou foi, por pura imaturidade, receio de nos expor, ou mera covardia de sentir. Coisas que nenhuma mãe sente ou compreende. Coisas, que com vergonha, nós, filhos, nos desculpamos. Obrigada mãe! E desculpa toda a bagunça e confusão que fizemos ou ainda fazemos. Parabéns pelo seu dia!


domingo, 4 de maio de 2014

O clamor do povo no aniversário do reino


Da ampla janela do castelo, por trás da blindagem do vidro fumê que sempre protegera a rainha de qualquer imagem menos romântica e mais realista do lado de fora de seu palácio, Poliana observava extasiada o povo que se aglomerava lá embaixo. Eles vinham chegando aos poucos e já eram mais de uma centena, pelos cálculos da monarca. Era aniversário do reino. Nada mais justo nessas horas, que seus súditos viessem louvar sua alteza, afinal,mesmo que os livros e registros históricos teimassem em dizer o contrário, a rainha e sua corte estavam convictos de que o pequeno reino só passara a existir depois da chegada da desbravadora Poliana ao poder.
Que bela imagem da legítima participação e reconhecimento popular, emociona-se sua alteza. O povo abanava pequeninas bandeiras e gritavam com idolatria o nome de Poliana, a rainha mãe dos excluídos e defensora dos assalariados. Nunca antes na história desse reino os súditos haviam se mobilizado de forma tão espontânea para reconhecer o valor de uma monarca.
- Preparem minha vestimenta de sair da redoma, eu vou descer para ser saudada por meu povo. - ordena a rainha para seus pajens.
- Que fantasia sua alteza vai querer usar nessa ocasião? Popstar socialista? Operária em campo de obras? Agricultora calejada? Empreendedora de sucesso? Matriarca benevolente dos desfavorecidos...
- Hoje é um dia especial. Precisamos compor um figurino diferente. O povo quer ver a rainha que sozinha colocou esse reinozinho mequetrefe no mapa. - anuncia a monarca passando os olhos pelas fantasias e adereços disponíveis. - Vou colocar o capacete de operária para mostrar que eu mesmo ajudo a levantar cada parede de crescimento por essas bandas.
- Não seria mais interessante o chapéu de agricultora, mostrando suas históricas raízes de colona? - indaga um dos pajens.
- Nem   pensar! Detesto esse chapelão. Fico parecendo uma jeca desengonçada. E além do mais, é só eu abrir a boca nos discursos que todo mundo percebe minhas raízes coloniais.- constata a rainha, continuando a compor o figurino.- Vou colocar uma camiseta do movimento sindical, afinal o Dia do Trabalhador está próximo. E minhas botas amarelas, mostrando que sou também uma desbravadora.
- Suas botas amarelas estão cobertas de piche, majestade. A senhora as usou na última vez que inaugurou um buraco  do asfalto recém coberto, lembra?
- É mesmo! Me atolei até o joelho naquela meleca mal feita. Tiveram de chamar um guincho pra me içar. Foi um fiasco! - recorda-se Poliana – Mas vou usar as botas mesmo assim. Mostrarei meu empenho na repavimentação da malha asfáltica e com a trafegabilidade no reino. - continua a rainha terminando de se vestir.
Enquanto isso, adentra apressado na redoma, o bobo do marketing e mídia, olhando estarrecido a confusão de fantasias espalhadas pelo local. - O que significa toda essa quinquilharia? - questiona um tanto irritado.
- Eu estou me fantasiando para receber os cumprimentos de meus súditos. Que tal estou, queridinho? - pergunta a monarca, dando voltinhas na sala.
- Ridícula! - rosna o outro, esquecendo-se momentaneamente de que lado do poder e do senso crítico se encontrava nesse momento. - Onde você pensa que vai vestida desse jeito, Poliana?
- Ora, meu caro. Me atirar nos braços do povão, é lógico! Me admiro de alguém tão bem informado quanto você, meu fiel bobo, não conseguir enxergar um palmo diante do nariz. Você não viu a multidão lá fora clamando por sua magnífica monarca? Abanando bandeirinhas em minha homenagem? O povo quer carregar novamente nos braços sua adorada rainha. Por isso, vá até lá e diga ao povo que vou! - ordena a deslumbrada Poliana, fazendo caras e poses em frente ao espelho.
- Você vai é tratar de tirar já essa roupa horrorosa e colocar algo bem prático e confortável. Precisamos tirar você daqui o mais depressa possível.- informa o marqueteiro atirando um par de tênis para a rainha.
- Mas por que? - questiona Poliana já cruzando os braços emburrada e ensaiando um beicinho de contrariedade.
- Porque, minha alteza – começa o outro impaciente – aquele povo todo lá fora está ameaçando invadir o castelo. E não é para beijar suas adoradas mãozinhas, mas para torcer seu pescoço real! As bandeirinhas que você enxerga da embaçada vidraça de sua janela, são os carnês do IPTU que os contribuintes acabaram de receber. Eles querem o seu fígado, não seus discursos fajutos! Agora, trate de calçar esses tênis e arrumar sua mala. Nós vamos fugir pulando a janela dos fundos e escondê-la por uns dias em um lugar onde ninguém possa vê-la, até os ânimos esfriarem.
- Vão me mandar de novo para a torre de marfim?! - choraminga Poliana.
- Não. Escolhemos um lugar mais discreto dessa vez. Você vai se esconder nos canos da transposição do rio. São quilômetro de área para sua alteza usufruir, e não passa nada de útil, nem mesmo água, por lá. - conclui o marqueteiro, arrastando Poliana sorrateiramente pelos fundos do castelo.
  Enquanto isso, em frente ao castelo, os contribuintes indignados questionavam em uníssono para que bolsos seriam transpostos os salgados reajustes que com o suor de seu trabalho estavam pagando este ano.